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Construção de armário em vaga de garagem de condomínio

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13/01/2004 às 00:00
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4. Breves considerações da posse no direito comparado : preponderância da teoria objetiva

            Ainda que superficialmente, analisemos alguns sistemas de direito comparado para verificar que a teoria objetiva goza de maior prestígio para a Ciência Jurídica, conferindo, portanto, proteção possessória mesmo ao sujeito que eventualmente não seja dono da coisa.

            4.1 Direito alemão

            O Código Civil alemão (18) (BGB – BÜRGERLICHES GESETZBUCH), de 18 de agosto de 1896, influenciou, e muito, Clóvis Beviláqua na elaboração do projeto do Código Civil brasileiro de 1916, uma vez que, a exemplo do CC alemão, o Código brasileiro também foi sistematizado com uma Parte Geral, onde são tratadas as disposições sobre a pessoa, os bens, os fatos e atos jurídicos.

            No Livro III do BGB, sob o tópico de "Direito das Coisas" (SACHENRECHET), logo de início aparece a conceituação da posse (Besitz) para o direito alemão:

            § 854 (Aquisição da posse imediata)

            A posse de uma coisa é adquirida pela obtenção do poder de fato sobre a coisa.

            O consentimento do possuidor anterior e do adquirente, basta para a aquisição, quando o adquirente estiver em situação de exercer o poder sobre a coisa.(negrito e destaque de agora)

            Tal conceituação deixa evidente a opção do legislador tedesco em imprimir à posse todas as características da teoria objetiva proconizada por Ihering. Nota-se que ao se referir à posse imediata (posse direta do Direito Civil brasileiro – CC, art. 486), o Código Civil alemão deixa claro que a posse é um poder de fato (19), e não um poder de direito, como seria caso tivesse o sistema de direito civil alemão adotado as diretrizes da teoria subjetiva, uma vez que falar em poder de direito é o mesmo que falar em aninum rem sibi habendi e, portanto, em propriedade, esta sim o poder de direito sobre a coisa. A observação de Ihering quanto a esse aspecto é irreparável. "O fato e o direito: tal é a antítese a que se reduz a distinção entre a posse e a propriedade. A posse é o poder de fato, e a propriedade o poder de direito, sobre a coisa". (20)

            Portanto, quando o direito alemão diz que a posse é o poder de fato sobre a coisa, de imediato já está traçando uma distinção jurídica entre e a propriedade. Esta, a propriedade, como foi dito é um poder de direito sobre a coisa. Se existe, pois, diferença entre posse e propriedade, resta claro que o sistema alemão confere proteção possessória também ao possuidor não-proprietário, como é o caso do locatário, comodatário, credor pignoratício etc., numa clara demonstração das diretrizes da teoria objetiva.

            Além do mais, o direito civil alemão também admite a existência da posse mediata (posse indireta do Direito Civil brasileiro – CC, art. 486), dando mais um evidência de que a posse pode ser exercida por aquele que não traz consigo o elemento psíquico do animus, teoria objetiva, portanto. Mas não é só. A consagração de que o direito civil alemão filiou seu sistema à teoria objetiva de Ihering está expressa no § 985 do BGB, sob a rubrica "Pretensões derivadas da propriedade", onde se lê "O proprietário pode exigir do possuidor a devolução da coisa."

            4.2 Direito suíço

            O Código Civil suíço (21), originalmente escrito em alemão, e com grande influência do direito civil tedesco, à luz da teoria objetiva também confere proteção possessória ao possuidor (Besitzer) não-proprietário, reconhecendo, portanto, distinção entre posse e propriedade. Aquela, o poder de fato sobre a coisa; esta, o poder de direito sobre a coisa.

            Ao preceituar a noção geral da posse (Besitz), o art. 919 do CC suíço preceitua que "Aquele que tem o poder efetivo sobre uma coisa é seu possuidor". Logo na seqüência, o art. 920, numa clara demonstração de que a posse no sistema de direito positivo suíço é passível de desdobramento e, portanto, conferindo a condição de possuidor também àquele que não seja proprietário, distingue a posse originária, que é a posse do proprietário, da posse derivada, que é a posse do não-proprietário.

            Art. 920 (II. Posse originária [selbständiger] e derivada [unselbständiger])

            Se o possuidor confiar a coisa a um outro, para estabelecer um direito real limitado ou um direito pessoal, serão ambos possuidores.

            Aquele que possui a coisa como proprietário, tem posse originária; o outro, posse derivada.

            Percebe-se claramente que o direito civil suíço admite que a posse se desdobre nas mãos do proprietário como do terceiro não-proprietário, e se assim o faz é porque confere proteção possessória aquele que tem o poder de fato sobre a coisa, independentemente de qualquer intenção – animus, portanto – do possuidor (Besitzer) em possuir a coisa como se dono fosse. Dessa forma, aquele que legitimamente possui determinado bem terá em seu favor os benefícios jurídicos da proteção possessória.

            Portanto, o direito suíço outorga proteção àquele que esteja na posição de possuidor, ainda que não seja ele proprietário da coisa possuída, importando, apenas, a legitimidade da posse e o efetivo poder de fato sobre a coisa.

            4.3 Direito italiano

            O direito civil italiano não discrepa do que até agora foi examinado no plano do direito comparado. O sistema do Código Civil da Itália (22) alberga em suas disposições a já examinada dicotomia entre a posse e a propriedade, poder de fato e poder de direito, respectivamente, considerando possuidor, e conferindo proteção possessória, ainda que o sujeito não seja proprietário do bem possuído.

            Disposta a posse no último Título do Livro III do Código Civil italiano, sob a rubrica "DA PROPRIEDADE", nesse sistema jurídico a posse também é tratada com as devidas distinções da propriedade, numa clara demonstração de que o possuidor – seja ele proprietário ou não – terá para si dispensada a proteção possessória.

            No CC italiano, está a posse descrita dessa maneira:

            Art. 1140 (Posse)

            A posse é o poder sobre a coisa que se manifesta em uma atividade correspondente ao exercício da propriedade ou de outro direito real.

            Art. 1141 (Mudança da detenção em posse)

            Presume-se a posse naquele que exerce o poder de fato¸ quando se provar que começou a exerce-la simplesmente como detenção.(...)

            Da análise conjugada dos artigos supracitados, nota-se que a posse "se manifesta em uma atividade correspondente ao direito de propriedade" quando alguém exerce o "poder de fato" sobre a coisa. Quando o legislador italiano fala em atividade correspondente ao direito de propriedade, quis se referir ao direito que tem o proprietário de "gozar e de dispor das coisas de modo pleno e exclusivo" (CC italiano, art. 832). Ora, atividade correspondente ao gozo e disposição da coisa quem de fato tem é o possuidor, seja ele proprietário ou não, uma vez que o proprietário exerce atividade efetiva de gozo e disposição.

            Além disso, o art. 1141 diz que se presume a posse naquele que exerce o poder de fato sobre determinada coisa. Quando determinado sujeito é considerado possuidor não importa se ele é, ou não, titular da respectiva propriedade sobre a coisa possuída. O que na verdade importa é que a coisa esteja subordinada ao poder de fato de um determinado sujeito, que dessa forma será considerado possuidor e, portanto, terá em seu favor a proteção possessória.

            4.4 Direito português

            A noção de posse no Código Civil português (23) vem expressa no art. 1251 da seguinte forma:

            Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real.

            O direito português considera possuidor aquele que atua de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, além de, no item "2" do art. 1252, considerar que "em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de fato...". Ora, se é considerado possuidor o sujeito que atua de "forma correspondente ao exercício do direito de propriedade", a conclusão que daí se extrai é no sentido de que também se considera possuidor o não-proprietário que age de maneira correspondente ao exercício da propriedade, que tradicionalmente redunda no poder de usar, gozar e dispor da coisa (jus utendi, fruendi e abutendi). Tais poderes inerentes à propriedade também podem ser plenamente exercidos pelo possuidor não-proprietário, quando este exerce tais poderes sem, contudo, trazer consigo o elemento intelectual do animus. É o que ocorre, por exemplo, com o locatário, que usa e goza da coisa locada sem que em nenhum momento lhe ocorra a idéia de o estar fazendo como se dono fosse, eis que lhe é plena a consciência de que o bem objeto da locação a outro pertence.

            Ao que tudo indica, a consagração no direito português quanto à existência da posse configurada paralelamente à propriedade, está expressa no art. 1311 do Código Civil lusitano que, ao prever a "Defesa da propriedade", afirma que "O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a conseqüente restituição do que lhe pertence".

            Dessa forma, fica nítido que pode haver possuidor que não seja proprietário, caso contrário não haveria razão para o legislador português ter distinguido o possuidor do detentor para efeito de viabilização do remédio petitório previsto no art. 1311.

            4.5 Direito francês

            Diferente é a sistemática da posse no Código Civil francês (24), haja vista que, talvez pela época de sua publicação (1804, auge do liberalismo na Europa), optou o legislador pelas diretrizes do subjetivismo que marcou a teoria de Savigny (25).

            A preponderância do subjetivismo na posse do direito francês vem marcada pelo art. 2228 do CC da seguinte forma: "A posse é a detenção ou o gozo de uma coisa ou de um direito que temos ou que exercemos por nós mesmos, ou por um outro que a tem ou que a exerce em nosso nome".

            Percebe-se que aqui não se fala em "poder de fato", atividade "correspondente" ao exercício da propriedade, ou coisa do gênero. Para o direito francês, fica clara a existência do elemento subjetivo caracterizado pelo animus na configuração da posse; o art. 2228 refere-se à posse como a "detenção ou o gozo de uma coisa ou de um direito que temos ou que exercemos por nós mesmos."

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            Sequer há no direito francês previsão de proteção possessória, eis que só o que se protege é a própria propriedade em razão de seu caráter absoluto (26), valendo mesmo ressaltar que a posse vem tratada no Código Civil francês dentro da sistemática da prescrição.

            4.6 Direito argentino

            O Código Civil argentino (27) é fruto de projeto elaborado por Vélez Sarsfield, cuja principal fonte normativa fora o antológico Esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas (28), muito embora tenha Vélez deixado de lado a metodologia de dividir o Código em parte geral e parte especial (29), do que se ressente o CC argentino, a exemplo do que acontece com o CC suíço, francês, italiano, dentre outros.

            No que tange à posse, não há dúvida que o direito argentino filiou-se aos regramentos da teoria subjetiva de Savigny, situação facilmente percebida quando analisado o conceito de posse expresso no Código Civil.

            No Título II do Livro III, sob a rubrica "De la posesion y de la tradicion para adquirila", o Código Civil argentino assim conceita a posse:

            Art. 2351

            Haverá posse das coisas quando uma pessoa, por si ou por outrem, tenha uma coisa sob seu poder, com intenção de submete-la ao exercício de um direito de propriedade (30) (destaque de agora)

            Observa-se que o CC argentino é expresso no sentido de exigir do possuidor a intenção de submeter a coisa ao exercício de um direito de propriedade, e quando se fala em intenção, que é o mesmo que animus, está a se falar no subjetivismo caracterizador da teoria de Savigny.

            Mas as evidências de que o sistema jurídico argentino está filiado à teoria subjetiva não param por aí. O art. 2352 do Código de Vélez Sarsfield proclama que "aquele que tem efetivamente uma coisa, mas reconhecendo em outro a propriedade, é simples detentor da coisa, e representante da posse do proprietário, ainda que a ocupação da coisa esteja fundada num direito" (31). Portanto, aquele que não é proprietário e não age como proprietário com relação à coisa – ausência de animus rem sibi habendi –, não é considerado possuidor mas, sim, mero detentor, estando totalmente desprovido da proteção possessória.

            Ao que nos parece, é tollitur quaestio no direito argentino que a matéria possessória tem seu regramento pelos ditames da teoria subjetiva inequivocamente contida no art. 2373 do Código Civil, onde se lê que "a posse se adquire pela apreensão da coisa com a intenção de tê-la como sua". Dessa forma, fica claro que o direito argentino não conhece a posse sem o elemento intelectual do animus rem sibi habendi, numa clara evidência de subsunção à teoria de Savigny, onde o possuidor não-proprietário – aliás, na Argentina sequer esse sujeito seria considerado possuidor, mas, sim, mero detentor – não teria em seu favor qualquer proteção possessória.

            4.7 Síntese do direito comparado

            Os sistemas de direito comparado que foram examinados demonstram a preponderância dos atributos da teoria objetiva em matéria possessória, uma vez que suas regras se apresentam bem mais lógicas em virtude da proteção dispensada, também, ao possuidor não-proprietário, como é o caso do locatário, comodatário, credor pignoratício etc.

            Essa constatação, que, diga-se desde já, também é observada no direito civil brasileiro, serve para demonstrar que não há necessidade do possuidor ser dono da coisa para que a ele seja dispensada a proteção possessória. Basta que o possuidor use e goze da coisa que está sob seu poder de fato, sem que traga consigo a intenção de possuir a coisa como se seu dono fosse. É essa a lógica da teoria objetiva, que permite ao ser-humano possuir determinada coisa – e a partir daí, ser titular de proteção possessória – sem que se passe pela sua mente estar possuindo àquela coisa como se sua fosse. Não é necessário, em relação à coisa, ser dono, pensar que é dono, ou ter a intenção de ser dono. Basta, portanto, usar e fruir determinada coisa, subordinando-a a um poder de fato, uma vez que só quem tem o poder de direito – repita-se – é o proprietário.

            Como se vê, é tendência natural dos mais diversos sistemas jurídicos, em sua maioria, acabarem por se filiar à teoria de Ihering para outorgar proteção possessória ao sujeito que, mesmo não sendo dono da coisa, a possua para dela usar e fruir.

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Sobre o autor
Glauco Gumerato Ramos

Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. Construção de armário em vaga de garagem de condomínio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 191, 13 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16589. Acesso em: 20 abr. 2024.

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