Processo Administrativo nº
Parecer nº
Interessado:
EMENTA: A existência de mínima dúvida acerca da subsunção do fato à norma, no tocante à possibilidade de contratação direta, exige a realização do procedimento licitatório, por cautela.
A Administração pode, a qualquer momento e de ofício, rever seus próprios atos, a fim de evitar possível gravame ao interesse público, consubstanciado na realização de procedimento ilegal.
À Dra.
Trata-se de análise e manifestação procedida ex officio, em que se analisa a possibilidade de contratação de profissional de psicologia para fins de apoiar a equipe técnica-pedagógica e os dirigentes da rede municipal de ensino, nos trabalhos de inclusão sócio-educacional, conforme justificativa do Sr. Secretário de Educação e Cultura, às fls.
Às fls., o antigo Consultor-Geral opinou pela contratação direta, tendo em vista a inexigibilidade de licitação.
O parecer foi acolhido pelo antigo Sr. Secretário de Assuntos Jurídicos, às fls., passando-se às fases posteriores do procedimento de contratação, com a autorização para a contratação dada pelo Sr. Secretário de Educação e Cultura às fls., publicação às fls. e Nota de Empenho às fls..
Remetidos os autos para esta Consultoria Geral, a fim de se analisar os termos da minuta do competente Contrato, nos termos do §1º do art. 38 da Lei nº8.666/93, resolvemos reanalisar a questão, a fim de verificar a regularidade material no tocante à inexigibilidade de licitação no caso vertente, evitando-se assim, possível gravame ao interesse público, tendo-se em vista vício em relação ao seu objeto.
É o breve relatório do processado. Passamos ao parecer.
O tema analisado merece tratamento destacado em nossa doutrina e jurisprudência. Isto porque se tem como regra a realização do procedimento licitatório, e, como medida em extremo excepcional, a sua inexigibilidade.
Tanto que o art. 25 da Lei nº8.666/93, em seus incisos, traz os casos em que não se exige a realização de licitação. Frise-se que o rol em referência é taxativo, exauriente, não podendo ser ampliado por vontade do Administrador. Ademais, tratando-se de direito excepcional, sua interpretação deve ser restritiva, conforme princípios consagrados da Hermenêutica Jurídica.
Assim, feitas tais considerações, passamos a analisar a questão que exsurge dos autos, respeitantes ao conceito de "serviços especializados", "profissionais de notória especialização" e "serviços de natureza singular", que nortearam o parecer de fls. e seu acolhimento às fls.
Assim, temos três requisitos a serem cumpridos: a) o legal, referente ao enquadramento dos serviços no rol exauriente do art. 13 da Lei nº8.666/93 (serviço especializado), b) o subjetivo, consistente nas qualificações pessoais do profissional (notória especialização) e c) o objetivo, consubstanciado na singularidade do objeto do contrato, ou seja, do serviço a ser contratado.
Antônio Roque Citadini (1), esclarece que os serviços especializados, à que alude a lei, são aqueles expressamente previstos no art. 13 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, quais sejam: estudos técnicos, planejamento e projetos básicos ou executivos; pareceres, perícias e avaliações em geral; assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; restauração de obras de arte e bens de valor histórico.
Hely Lopes Meirelles (2) define a notória especialização como uma característica daqueles profissionais que, além da habilitação técnica e profissional, exigida para os profissionais em geral, foram além em sua formação, participando de cursos de especialização, pós-graduação, participação em congressos e seminários, possuindo obras técnicas (artigos e livros) publicadas, além de participação ativa e constante na vida acadêmica.
Assim, a mens legis quis permitir a contratação direta de tais profissionais, inexigindo o procedimento licitatório, tendo em vista a "impossibilidade lógica" de a Administração pretender o melhor serviço pelo menor preço, nessas condições.
Tal "impossibilidade lógica", na expressão de Hely Lopes Meirelles, deve ser analisada em seu duplo aspecto: o primeiro consiste no grau de renome atingido por esses profissionais, a ponto de sua autoridade no assunto se ter tornado notória. Perde-se, assim, a necessária competibilidade, essência da licitação, tendo-se em vista que todos atingiram um mesmo patamar de eficiência técnico-científica, tornando-se quase impossível optar-se por um ou por outro, mediante a análise pura e simples de sua competência profissional. Por outro lado, atingido tal patamar, surge o desinteresse desses profissionais em se submeterem à licitação, que se presta, grosso modo, à análise de seu trabalho e preço.
"... o pressuposto fático da inexigibilidade é, indubitavelmente, a inviabilidade da competição. Em seguida, o dispositivo em causa refere-se, em especial, aos casos dos incisos I a V. Evidencia-se, porém, que somente é inexigível a licitação nesses casos, quando se torna inviável a competição, ou seja, a disputa entre 2 ou mais licitantes. Existindo 2 ou mais competidores capazes de oferecer condições de exame de suas propostas, na forma do edital, a Administração terá de submeter-se à licitação, consoante os dispositivos do Decreto-lei nº2.300/86." (3) (Destaques no original).
Como visto, a notória especialização não é bastante para a inexigilidade da licitação. Ora, nada impede que haja profissionais que queiram competir. Assim, a singularidade da natureza do serviço é o que justifica, ipso facto, a excepcionalidade da inexigibilidade.
Essa singularidade consubstancia-se, no ensinamento de Antônio Roque Citadini (4), no fato do objeto do contrato ser de natureza pouco comum, com razoável dose de complexidade, de tal forma individualizadora, que justifique a dispensa de todo o procedimento licitatório.
Assim, qualquer dúvida que paire acerca do enquadramento do caso vertente à Lei em comento, deve ser dirimida no sentido de se realizar o procedimento licitatório. Esse o posicionamento de nossos Tribunais:
"Licitação. Área tributária. Notória especialização. Recomenda-se a realização de procedimento licitatório para a contratação de profissional na área tributária, tendo em vista a dificuldade de se enquadrar o caso em tela entre aqueles passíveis de dispensa e baseado em notória especialização, previstos no artigo 25, §1º da Lei nº8.666/93."
No caso dos autos, não vislumbramos motivo suficiente para não se exigir a realização da licitação.
Isso porque não há nos autos demonstração suficiente da notória especialização da contratada. O currículo da profissional e a documentação acostada aos autos denotam o seu louvável esforço pela busca de seu aperfeiçoamento profissional, mas nem de longe pode se inferir de sua análise a notória especialização exigida. Note-se que se tratam todos de cursos de curta duração, em universidades de pouco renome.
Por outro lado, o serviço contratado há de ter natureza singular, o que também não se vislumbra pela análise do objeto do contrato e pelo currículo da profissional.
Cremos que há no mercado profissionais com igual capacidade técnico-científico que acorrerão a um procedimento licitatório devidamente instruído e ao qual seja dado a devida publicidade.
"Veja-se que a expressão de natureza singular comanda a inteligência da norma. Não basta que o profissional ou a empresa tenham notória especialização. É indispensável que os serviços técnicos sejam de natureza singular. Vamos à definição do vocábulo:
Singular (Aurélio) – do latim singulare – Adj. 2 g. Pertencente ou relativo a um; único, particular, individual... especial, raro, extraordinário... Diz-se do número que indica uma coisa ou pessoa...
Ora, certamente não se considera de natureza singular aquilo que pode ser executado por numerosos profissionais ou empresas.
Caso o legislador não pretendesse conjugar a notória especialização do profissional ou empresa com a natureza inédita ou incomum do serviço a ser prestado, teria simplesmente omitido a expressão natureza singular no dispositivo mencionado. Pois singular, inédito, incomum são, na verdade, sinônimos. É princípio comezinho de hermenêutica que a Lei não deve conter expressões supérfluas ou desnecessárias (verba cum effectu sunt accipienda). Se o dispositivo alude à natureza singular, este fato teria de ser levado em consideração ao interpretar-se a norma." (5) (destaques no original).
Por fim, afastada a notória especialização exigida, bem como a natureza singular do objeto do contrato, nada justifica a inexigibilidade do procedimento licitatório, nos termos do art. 13, §1º da Lei nº8.666/93, que dispõe:
"§1º. Ressalvados os casos de inexigibilidade de licitação, os contratos para a prestação de serviços técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio ou remuneração."
DA ILEGALIDADE DO OBJETO E DO PODER-DEVER DE AUTOTUTELA.
A Lei da Ação Popular (Lei nº4.717/65), em seu art. 2º, estabelece os elementos do ato administrativo, quais sejam, a competência, a forma, o objeto, o motivo e a finalidade.
Ademais, estabelece o mesmo artigo, em seu parágrafo único, alínea "c", in verbis:
"A ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação da lei, regulamento ou outro ato normativo."
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em relação ao vício quanto ao objeto, discorre que este ocorre quando,
"O resultado é diverso do previsto na lei para o caso sobre o qual incide." (6)
A mesma autora ainda ensina:
"Objeto do ato administrativo: efeito jurídico imediato que ele produz.
O objeto deve ser natural: é o efeito jurídico que o ato produz, sem necessidade de expressa menção; ele decorre da própria natureza do ato, tal como definido na lei." (7)
Assim, vê-se que neste processo, está se inexigindo licitação em hipótese em que ela é perfeitamente cabível, tendo em vista os motivos acima exposados. Isso por conta do parecer de fls. e seu acolhimento de fls., que tornaram vicioso o objeto do presente processo.
Por outro lado, há muito se encontra pacificado o entendimento de que a Administração Pública possui o poder de rever os próprios atos, quando eivados de ilegalidade. Tal poder é chamado, doutrinariamente, de autotutela.
Esse entendimento encontra-se pacificado no Pretório Excelso, com a edição das Súmulas 346 e 473, respectivamente in verbis:
"A administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos."
"A administração pública pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos" (...)
O poder-dever de autotutela pode ser exercido de ofício pela Administração, independentemente de provocação de quaisquer interessados, mesmo porque, constatado os vícios, tem a Administração o dever de anular seus próprios atos como guardiã que é do interesse público.
Eis os ensinamentos ministrados por nossa melhor doutrina:
"Dispondo a administração do poder de autotutela, não pode ficar dependendo de provocação do interessado para decretar a nulidade, seja absoluta seja relativa. Isto porque não pode o interesse individual do administrado prevalecer sobre o interesse público na preservação da legalidade administrativa." (8)
"Pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes e os inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário." (9)
Desta feita, OPINAMOS pela remessa dos presentes autos ao Exmo. Sr. Prefeito Municipal, para que se proceda à anulação de todos os atos praticados em decorrência do parecer lavrado por esta Consultoria-Geral, bem como os demais atos praticados posteriormente ao parecer.
É o que nos parece, s.m.j.
Seguem os autos para superior análise e deliberação.
Ribeirão Pires, 17 de maio de 2.005.
ROGÉRIO SANDOLI DE OLIVEIRA
Consultor-Geral
NOTAS
01
CITADINI, Antônio Roque. Comentários e Jurisprudência Sobre a Lei de Licitações Públicas. 3ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 224.02
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo, p. 98/9903
SANT’ANNA, Reynaldo, Presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, apud PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres, Comentários ä Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública, p. 307.04
Op. cit., p. 230.05
SANT’ANNA, Reynaldo, apud PEREIRA JÚNIOR, op. cit. 307/308.06
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo, p. 223.07
Di Pietro, p. 191.08
Di Pietro, p. 227.09
Di Pietro, op. Cit., p. 73.