A realização de atividades conexas, geradoras de fontes acessórias de receita, por Sociedade de Economia Mista prestadora de serviço público
Sumário:1. Fatos. 2. Consulta. 3. Possibilidade de execução de atividades acessórias por Sociedade de Economia Mista. 4. Concessão da atividade à Consulente com dispensa de licitação. 5. A constituição de subsidiária integral para exploração dos recursos minerários. 6. Resultado da Consulta.
1. FATOS:
A Consulente Companhia de Saneamento de Minas Gerais – COPASA MG, através de sua Presidência e Procuradoria Jurídica, honra-nos com a presente consulta quanto à possibilidade de constituição de subsidiária para futura concessão dos direitos minerários para envasamento das águas minerais de Caxambu, Cambuquira, Lambari e Araxá para posterior distribuição.
Para tanto, foram apresentadas as seguintes circunstâncias:
-A Consulente, buscando realizar os objetivos descritos em seu Estatuto Social, pretende negociar junto à CODEMIG a concessão dos direitos minerários, equipamentos e instalações de envasamento de águas minerais de Caxambu, Cambuquira, Lambará e Araxá para posterior distribuição;
-Em relação a tais direitos, a CODEMIG já realizara Concorrência Pública para o seu arrendamento, por duas vezes, tendo sido o primeiro certame revogado e o segundo deserto;
-Considerando a possibilidade de adoção de tal objeto, adaptado ao Estatuto Social da Consulente, pretende esta a constituição de subsidiária integral para tal específico propósito.
2. CONSULTA:
Diante disso, pergunta-se:
- É possível a incorporação de tal objeto pela Consulente?
-Se positiva a resposta, de que forma essa incorporação deve se dar?
- Seria possível a concessão à Consulente com dispensa de licitação?
- Se positiva a resposta, qual o fundamento legal?
- Para a realização desse objeto é possível que essa se dê através de subsidiária integral?
- Se positiva a resposta, de que forma essa constituição deve se dar?
3. POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO DE ATIVIDADES ACESSÓRIAS POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA:
A Consulente é sociedade de economia mista estadual, tendo sido criada para a realização do serviço público de saneamento básico, conforme descreve o Art. 4º de seu Estatuto e Art. 1º da Lei nº 6084/73 na redação dada pela Lei nº 13363/00, ambas estaduais e que dispõe sobre as atividades da Consulente.
Como dito pela administrativista Lúcia Valle Figueiredo, sociedade de economia mista "é forma de cometimento estatal, para prestação de serviços públicos ou para intervenção no domínio econômico" [01], exatamente porque, como entidades que integram a Administração indireta do Estado, funcionam como "instrumentos de descentralização de seus serviços", como dito por Hely Lopes Meirelles [02].
Entre esses "cometimentos estatais" enquadra-se o serviço de saneamento básico como serviço público, vez que se adapta ao conceito comumente utilizado para definir este último. Veja-se, a propósito, a definição clássica dada por Celso Antônio Bandeira de Mello:
Toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais-, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo
Conforme Hely Lopes Meirelles, "serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado" [04].
Na definição de Luís Roberto Barroso, saneamento básico significa "um conjunto de ações integradas, que envolvem as diferentes fases do ciclo da água e compreende: a captação ou derivação da água, seu tratamento, adução e distribuição, concluindo com o esgotamento sanitário e a efusão industrial" [05].
Exatamente em razão desses serviços que satisfazem necessidades essenciais da coletividade - e representam exigências de saúde pública - é que se os deve conceituar como serviços públicos.
Como dito por Caio Tácito, "o saneamento básico, incluindo serviços de águas e de esgotos, é, por sua essencialidade, um serviço público de prestação às comunidades" [06].
Conforme Art. 1º do Decreto Estadual nº 43753/04, regulador das atividades desenvolvidas pela Consulente, "ficam regulamentados os serviços públicos de água e de esgoto prestados pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais", deixando clara a natureza jurídica dos serviços prestados por esta.
Portanto, a Consulente é sociedade de economia mista prestadora de serviço público.
Em princípio, e em razão disso, mantém-se a tradicional idéia de que toda e qualquer atividade exercida pela Consulente deve circunscrever-se a serviço público e ao serviço público que constitui o seu objeto. Contudo, essa concepção restritiva não se coaduna com o sentido que hodiernamente se deve atribuir às atividades desenvolvidas pelo Estado.
O serviço público exercido pela Consulente é remunerado essencialmente pela tarifa paga pelos usuários [07], fórmula considerada intrínseca à própria noção de concessão desses serviços. Além da tarifa, tem direito a Consulente, como concessionária dos serviços públicos de saneamento básico, à obtenção de lucro com a atividade exercida, recebendo retorno de seu investimento à razão de 12% (doze por cento) [08].
Contudo, é determinação legal que as tarifas sejam módicas [09], compreendido o termo em seu real sentido, como exposto por Marçal Justen Filho, ou seja, "a modicidade da tarifa corresponderá à idéia de menor tarifa em face do custo e do menor custo em face da adequação do serviço" [10], idéia essa que, à evidência, não se confunde com gratuidade, transferindo-se o custo do serviço para os usuários.
Segundo Leandro Sabóia Rinaldi de Carvalho, com base em Benedicto Porto Neto, "o princípio da modicidade das tarifas implica, em síntese, no dever do Estado de fixá-la em valor que viabilize o acesso da coletividade ao serviço, para que este valor não represente um obstáculo à fruição dos serviços pelos usuários" [11].
Por outro lado, afirma o autor, "a tarifa deve refletir, em princípio, o capital investido, o custo operacional, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico e o lucro do concessionário".
Conforme Marcos Juruena Villela, em sua obra sobre concessões:
Um dos conceitos basilares na prestação do serviço público é o de serviço adequado, que previsto no artigo 6º, §1º da Lei nº 8987/95, tem, na modicidade das tarifas, um de seus elementos. Com vistas à modicidade, o artigo 11 da Lei nº 8987/95 dispõe que o concedente pode prever, em favor da concessionária, receitas alternativas, complementares, acessórias ou projetos acessórios
Na realização dessa modicidade e mantendo a adequação do serviço, inclusive quanto à atualização técnica/tecnológica na sua prestação, é possível que o prestador busque outras fontes de custeio [13], sejam elas alternativas, acessórias [14] ou complementares.
É possível, até mesmo, que a implantação de fontes acessórias sequer chegue a repercutir na tarifa, complementando exclusivamente a remuneração do prestador. Isso porque a modicidade necessária à tarifa – e até mesmo a noção de tarifa social - impede, muitas vezes, que seja possível ao prestador o retorno do investimento nos parâmetros estabelecidos pelas normas aplicáveis à espécie.
Havendo retorno do investimento feito pelo prestador, esse disporá de recursos próprios para a implantação de outros serviços e para a ampliação e melhoramento dos já existentes, até mesmo evitando a via dos financiamentos – sujeitos à incidência de taxas de juros, que encarecem o custo do serviço –.
Além disso, a busca de fontes outras pode significar – como acontece neste caso – no melhor aproveitamento da própria estrutura do prestador, como decorrência mesmo da natureza econômica do serviço, trazendo-se para a seara pública as experiências de investimento e lucro ditadas pelo mercado privado.
Segundo Marçal Justen Filho,
Trata-se de incorporar ao setor público uma das inovações mais significativas observadas no âmbito da iniciativa privada, que consiste na integração de atividades inter-relacionadas, para ampliar sua eficiência. A organização dos fatores da produção vai além dos limites de uma atividade unitária, de objeto circunscrito, para abarcar inúmeras oportunidades conexas, propiciando a ampliação do lucro. No campo dos serviços públicos, essa concepção se justifica especificamente porque a ampliação da lucratividade permite a redução da tarifa, senão a ampliação da qualidade
As observações do autor vão muito além:
Ofenderia aos princípios constitucionais fundamentais que a prestação do serviço público fosse custeada por tarifas mais elevadas do que o necessário para assegurar a viabilidade da exploração. Quando o desempenho do serviço público comportar a exploração de atividades conexas, os ganhos econômicos correspondentes devem ser aproveitados para integração na equação econômico-financeira. Infringiria a ordem jurídica produzir a dissociação entre a prestação do serviço público e exploração de atividades econômicas conexas, eis que isso equivaleria à elevação da tarifa imposta ao usuário
Essas "oportunidades conexas", na terminologia escolhida por Marçal Justen Filho, são verdadeiras atividades econômicas e não se destinam a fornecer utilidades essenciais aos usuários. São atividades econômicas em sentido estrito, próprias da livre iniciativa [17] e livre empresa e que podem ser desempenhadas por qualquer sujeito.
Como ressalta a constitucionalista mineira Carmen Lúcia Antunes Rocha, hoje Ministra do Supremo Tribunal Federal, em sua obra sobre Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro, "o que se nota é uma tendência que fortalece mais e mais a possibilidade de se acolherem esses modelos de fontes alternativas de receitas" [18].
Contudo, o que ocorre nestes casos é a articulação, sob o prisma econômico, entre a atividade conexa e o serviço público, o que não desnatura a atividade econômica em tela, mantendo esta sua natureza jurídica. O que ocorre, apenas, é que se funcionaliza a atividade econômica privada conexa à prestação do serviço público [19].
Considerando, portanto, a repercussão econômica trazida pelo exercício dessa atividade conexa é que afirma, com respaldo em Marçal Justen Filho, o dever do prestador do serviço público de buscar esses incrementos de receita.
Segundo o autor, "o concessionário está não apenas autorizado a desenvolver atividades econômicas conexas. Mais do que isso, é seu dever assim proceder" [20]. E completa: "em última análise, o desenvolvimento de atividades empresariais conexas, de cunho lucrativo, por parte do concessionário satisfaz o interesse público".
Esta questão foi prevista pelo legislador, ao disciplinar as concessões e permissões de serviço público, especialmente na regra do Art. 11 da Lei nº 8987/95, ou seja, "no atendimento às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vista a favorecer a modicidade das tarifas".
O dispositivo legitima a pretensão da Consulente e encontra respaldo no próprio Estatuto, especialmente Art. 4º, §3º, ou seja, "atendido o requisito de sua rentabilidade global, a Companhia orientar-se-á por uma política de expansão que contribua, no mais curto prazo possível, para o progresso econômico e o bem estar social das regiões do Estado, em consonância com a política de saneamento formulada pelos órgãos competentes" [21], dispensando a necessidade de outras autorizações legislativas.
Na clássica expressão de Seabra Fagundes, administrar é "aplicar a lei de ofício" [22].
Com respaldo em Marçal Justen Filho, afirma-se não ter o prestador disponibilidade em relação à aplicação do Art. 11 da Lei de Concessões. Inobstante a redação legal tenha utilizado o vocábulo "poderá", é certo ser dever do Estado buscar a realização do interesse público como dever-poder – e não meramente poder-dever -.
Segundo Cirne Lima, "a atividade administrativa obedece, cogentemente, a uma finalidade, à qual o agente é obrigado a adscrever-se" [23]. Segundo Afonso Rodrigues Queiró, "a essência do direito público, do direito administrativo in specie, está na obrigação para os respectivos agentes de realizarem os interesses que as leis lhes entregam para que deles curem" [24].
Isso se dá porque a atividade administrativa é de caráter serviente [25], em verdadeira situação coativa [26]. É o próprio princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública que traduz a situação de dever em que se encontra a Administração – direta ou indireta – em face da lei [27].
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, "nela não há apenas um poder em relação a um objeto, mas, sobretudo, um dever, cingindo o administrador ao cumprimento da finalidade, que lhe serve de parâmetro" [28].
Em verdade,
Antes se qualificam e melhor se designam como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações
A propósito já proclamava o extinto Tribunal Federal de Recursos que o "vocábulo poder significa dever quando se trata de atribuições de autoridades administrativas" [30]. Idêntica é a doutrina exposta por Carlos Maximiliano ao sustentar que "para a autoridade, que tem a prerrogativa de ajuizar, por alvedrio próprio, da oportunidade e dos meios adequados para exercer as suas atribuições, o poder se resolve em dever" [31].
Conclui-se, então, que o prestador terá o "dever de aproveitar todas as oportunidades para benefício da comunidade. Não é possível que a Administração ignore oportunidade que propiciariam redução de custos de tarifas" [32]. E mais: "logo e sempre que estiverem presentes circunstâncias propiciando obtenção de outras receitas, a Administração terá o dever de aproveitar tais oportunidades" [33].
Diante disso, conclui-se ser dever da Consulente executar atividades conexas às atualmente exercidas a fim de incrementar seus lucros, propiciando o cumprimento das disposições legais que lhe cabe realizar.
Por último, ressalte-se a evidente conexidade havida entre o serviço de água já prestado pela Consulente e atividade econômica que pretende agora desempenhar. A extração da água mineral é atividade semelhante à extração da água dos rios e lagos já realizada pela Consulente para posterior tratamento. Toda a tecnologia desenvolvida para a análise da qualidade da água tratada e os sistemas de controle de qualidade é atividade semelhante às que terão de ser desenvolvidas em face da água mineral. Além de vários outros aspectos técnicos e de recursos humanos, a conexidade se evidencia, impondo, portanto, o exercício da atividade.
4. CONCESSÃO DA ATIVIDADE À CONSULENTE COM DISPENSA DE LICITAÇÃO:
A segunda questão a ser considerada é a dispensa de licitação para a concessão dos serviços à Consulente, mesmo havendo empresas no mercado que já exerçam tal atividade.
A razão é simples: a CODEMIG instaurou procedimento licitatório por duas vezes sem sucesso, sendo que no primeiro chegou este a ser revogado e no segundo nenhum licitante compareceu. Em relação a este segundo procedimento licitatório importa ressaltar que, conforme informações prestadas pela CODEMIG, 75 (setenta e cinco) empresas adquiriram o Edital e, ao tempo de apresentação de propostas, nenhuma empresa compareceu. Daí a deserção havida e a frustração, por duas vezes, do intento estatal de conceder a atividade em questão.
Considerando a deserção havida, incide a regra do Art. 24, inc. V da Lei nº 8666/93, ou seja, "é dispensável a licitação quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração".
O prejuízo para a Administração no que se refere à repetição do certame é evidente, o que dispensa qualquer tipo de prova, haja vista tratar-se do segundo procedimento licitatório frustrado, restando claro que a iniciativa privada não desejou contratar com a Administração neste caso.
Nesse sentido, precisa a lição de Joel de Menezes Niebuhr em obra específica intitulada Dispensa e inexigibilidade de licitação pública:
Se a Administração opta por repetir a licitação e se, mesmo assim, o novo certame fracassa, já não resta dúvida de que se deve proceder à dispensa, haja vista que foge da razoabilidade obrigá-la a realizar infinitas licitações diante de situação reveladora de limitações do próprio mercado. A repetição da licitação, por mais de uma vez, desnuda o prejuízo previsto no inciso em apreço [34].
Como afirmam Ivan Barbosa Rigolin e Marco Tullio Bottino, "não precisaria este inciso declinar ‘prejuízos para a Administração’, pois é evidente que qualquer repetição de licitação é prejudicial, em vários sentidos, à entidade que licita; toda repetição prejudica (em preços, prazos, condições)" [35].
Mesmo porque "se a licitação fosse realizada novamente, a população ficaria por mais um bom tempo sem o equipamento, em decorrência do que se vislumbra prejuízo bastante para justificar a dispensa".
A advertência a ser feita é que a contratação direta deve se dar nas mesmas condições em que anteriormente licitado, conforme prevê o próprio inc. V do Art. 24 da Lei nº 8666/93, excepcionadas, evidentemente, as cláusulas que levam em conta empresa privada.
Nesse sentido, doutrina de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes sob o título Licitação deserta/fracassada que não pode ser repetida, publicada pela Ed. Fórum:
Efetivamente, não pode a Administração alterar as exigências estabelecidas para a habilitação, tampouco as ofertas constantes do convite ou edital. Essa restrição abrange, inclusive, quando for o caso, a alteração dos anexos do ato convocatório, previstos no art. 40, §2º, da Lei nº 8666/93, como, por exemplo, o preço estimado pela Administração
Isso porque "a contratação direta é autorizada no pressuposto de inexistirem outros interessados em realizar a contratação nas condições estabelecidas no ato convocatório anterior" [37], como dito por Marçal Justen Filho, na esteira do texto legal, haja vista que "o implemento dessa (...) exigência legal tornará impraticável a dispensa se o desinteresse deveu-se ao fato de o edital ou a carta-convite haver estatuído condições inaceitáveis pelo mercado (preço subestimado, especificações técnicas inatendíveis ou inexistentes na praça, entre outros)" [38]como dito por Jessé Torres Pereira Júnior, dentre outros [39].