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Estado não pode exercer atividade econômica diretamente

17/12/2008 às 00:00
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Parecer entendendo pela possibilidade de o Estado do Ceará executar atos preparatórios para a instalação de usina de energia eólica, desde que as atividades produtivas não sejam exercidas diretamente pelo Estado, mas por empresas privadas.

PARECER N.º /2004-PF/ANEEL

Referência: 48500.001792/03-23

Interessado:Estado do Ceará

Assunto:Implantação da Central Eólica de Paracuru, no Estado do Ceará.

Ementa:Produção de energia. Atividade econômica em sentido estrito. Necessidade de autorização. Atividade econômica é área própria da atuação privada. Atuação excepcional do Estado desde que presente imperativo da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definição em lei. Exploração da atividade econômica pelo Estado se faz por pessoa jurídica de direito privado com criação autorizada por lei específica (art. 37, XIX, da CF/88). Inexistência de lei estadual que preveja a produção de energia, para fins de comercialização, pelo Estado, como de relevante interesse coletivo. No caso, solicitação, pelo Estado, de autorização para implantação de parque eólico; dar-se-á por licitação a seleção de empresa privada para construção do parque e exploração da atividade de produção independente de energia. Possibilidade, desde que o Estado não atue na ordem econômica. Deferimento do pedido.


O Estado do Ceará requereu à Agência Nacional de Energia Elétrica, em 5 de maio de 2003, autorização para a implantação da Central Eólica de Paracuru, como produtor independente de energia elétrica.

I. RELATÓRIO

2. Informa-se que o projeto é de propriedade do Estado do Ceará e possui financiamento por meio de acordo bilateral firmado entre o Brasil e o Japão. A empresa privada responsável pela construção do parque eólico será selecionada por meio de processo licitatório internacional, envolvendo contrato da espécie "turn-key".

3. Conforme consta do Parecer Técnico n° 455/2004-SCG/ANEEL, "no processo de implantação do Parque Eólico Paracuru, na seqüência da licitação de construção e montagem, e obedecendo a determinações do Acordo de Financiamento BZ_P12 com o Japan Bank for International Cooperation – JBIC, a propriedade do parque, bem como a autorização de implantação e operação do mesmo serão transferidas para uma sociedade de propósito específico - SPE, empresa que será responsável pela operação e manutenção, e pela comercialização da energia gerada pela central geradora."

4. A Superintendência de Concessões e Autorizações de Geração – SCG, após as análises de estilo, elaborou parecer técnico favorável "à emissão de Resolução Autorizativa, na forma da minuta anexa, que visa autorizar a Secretaria da Infra-Estrutura do Estado do Ceará - SEINFRA a implantar a central geradora termelétrica denominada Paracuru, e o respectivo sistema de transmissão de interesse restrito, no Município de Paracuru, Estado do Ceará."


II. ANÁLISE

5. Antes de enfrentar a questão relativa ao deferimento ou não do pedido de autorização para que o Estado do Ceará promova a implantação da Central Eólica, entendo pertinente trazer breves considerações sobre a atuação do Estado na ordem econômica. Não que o pedido do Estado do Ceará se destine a possibilitar a exploração, por ente público, de atividade econômica. As considerações que seguem possuem as seguintes finalidades:

I-chamar a atenção para a excepcionalidade da atuação estatal no âmbito das atividades econômicas, que, como se verá, é área destinada à atividade dos particulares, bem como demonstrar que, no caso, não se poderia permitir que o Estado viesse a explorar atividade econômica de forma direta, eis que ausentes os pressupostos previstos no art. 173 da Constituição Federal de 1988;

II-situar o abrangência da autorização que pode ser deferida ao Estado do Ceará;

III-alertar a ANEEL para a importância de se acompanhar de perto todo o procedimento de implantação e início da operação da Central Eólica, com vistas a espancar qualquer possibilidade de o Estado, diretamente, explorar atividade econômica.

II. 1. Atuação do Estado na ordem econômica

6. Nos termos da Constituição Federal de 1988, a interferência do Estado na ordem econômica ocorre de duas formas distintas.

7.Em primeiro, conforme disposição constante do art. 174 da CF/88, o Estado pode atuar como agente normativo e regulador da atividade econômica. Eis sua redação:

"Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado."

8. Em segundo, conforme prevê o art. 173 da CF/88, o Estado, por meio de pessoas jurídicas de direito privado criadas especificamente para o exercício de atividades determinadas, poderá explorar atividade econômica. Quanto a esta forma de interferência do Estado na economia, que nos interessa em particular, cabe transcrever integralmente o art. 173 da CF/88, nos termos abaixo:

"Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;

II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;

IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;

V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores."

§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

§ 3º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros."

9.Pelo dispositivo constitucional acima transcrito, resta patente que a ordem econômica é própria dos atores privados. Nela o Estado ingressa excepcionalmente, o que faz apenas quando presente imperativo de segurança nacional ou relevante interesse público, reconhecido por lei.

10.Quando o Estado, autorizado por lei, atuar diretamente na ordem econômica, do dispositivo constitucional exulta a obrigação de fazê-lo em igualdade de condições com os atores privados, ou seja, despojado de seus normais deveres-poderes. Tanto é assim que o Estado apenas está constitucionalmente autorizado a explorar atividade econômica por meio de sociedades de economia mista e empresas públicas, que, a sua vez, devem se sujeitar ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.

11.Pudesse o Estado atuar na ordem econômica de posse de privilégios estatais – como, por exemplo, a imunidade tributária –, estaria profundamente periclitada a livre concorrência, eis que ele, um dos atores econômicos, fruiria de vantagens jamais alcançáveis pelos demais, o que acarretaria visível violação ao art. 170, IV, da CF/88:

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

IV - livre concorrência;

(...)."

12.Celso Antônio Bandeira de Mello encarece a necessidade de o Estado, ao atuar na ordem econômica, desfrutar de igualdade de condições com os particulares:

"No que concerne à última modalidade de interferência do Estado no domínio econômico, isto é, de sua atuação empresarial (por si mesmo ou por criatura sua), uma vez que poderia ser danosa para a ‘liberdade de iniciativa’ – que é um dos fundamentos expressos da ordem econômica brasileira, consoante dispõe o art. 170, caput, da Constituição – e perigosa para a ‘livre concorrência’ – que é um dos princípios obrigatórios de nossos sistema (art. 170, IV) –, o art. 173 tratou de balizar estritamente as possibilidades de o Estado atuar como empresário.

(...).

Percebe-se, pois, que o propósito do versículo em questão, em sintonia, aliás, com as diretrizes da ordem econômica na Constituição, foi o de impedir que o Poder Público, ao atuar nesta esfera – que é a própria dos particulares –, pudesse fazê-lo em condições privilegiadas, gerando, por assim dizer, uma ‘concorrência desleal a estes últimos." (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, ed. Malheiros, p. 645 e ss.)

13.De outra parte, o reconhecimento de imperativo de segurança nacional ou relevante interesse público, para efeito de atuação estatal na atividade econômica, não restou delegado à apreciação discricionária do Poder Executivo, mas deve ser reconhecido expressamente por lei editada formalmente, nos termos da própria CF/88. Nos termos da doutrina de Celso Ribeiro Bastos, tal norma há que ser genérica e abstrata:

"O texto constitucional impõe a regulamentação por via de lei do que seja segurança nacional e relevante interesse coletivo. Essa norma há que ser genérica e abstrata. De outra forma, há que se levar em conta que estas atividades econômicas serão cumpridas por pessoas jurídicas demandantes de lei par sua criação. Trata-se de empresas públicas e sociedades de economia mista, que nos termos do art.37, XIX, deverão fazer praça dos objetivos para os quais são criadas, uma vez que a Constituição exige para tanto lei específica." (Bastos, Celso Ribeiro, Comentários à Constituição do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988, Ed. Saraiva, 1988, p. 75)

14.No sentido do breve raciocínio ora desenvolvido se posicionam, ainda, José Afonso da Silva e Eros Roberto Grau.

"Há duas formas de exploração direta da atividade econômica pelo Estado, no Brasil. Uma é o monopólio, que estudaremos depois. A outra, embora a Constituição não o diga, é a necessária, ou seja, quando o exigir a segurança nacional ou interesse coletivo relevante, conforme definidos em lei. (art. 173). Não se trata aqui de participação suplementar ou subsidiária da iniciativa privada. Se ocorrerem aquelas exigências, será legítima a participação estatal direta na atividade econômica, independentemente de cogitar-se de preferência ou de suficiência da iniciativa privada.

E isso não cabe só à União. A expressão exploração direta da atividade econômica pelo Estado abrange todas as entidades estatais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Quando a Constituição emprega a palavra ‘Estado", no sentido de ordenação jurídica soberana, refere-se a todas as unidades integrantes da República Federativa do Brasil. Quando não quer assim, menciona especificamente a União, ou qualquer outra unidade da Federação.

Instrumentos de participação do Estado na economia são a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades estatais ou paraestatais, como são as subsidiárias daquelas. As empresas e entidades que explorem atividade econômica deverão ter sua criação autorizada por lei específica, assim como depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de suas subsidiárias (art. 37, XIX e XX), cabendo à lei complementar definir as áreas de sua atuação (art. 37, XIX, enunciado da EC-19/98), a qual também estabelecerá o seu estatuto jurídico, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

Recordemos que essas exigências não se aplicam às empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades estatais ou paraestatais que explorem serviços públicos.

E, como qualquer entidade estatal pode explorar diretamente atividade econômica, bem se vê que União, Estados, Distrito Federal e Municípios podem, sempre por lei específica, criar e manter empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades destinadas à exploração das respectivas atividades econômicas, evidentemente segundo suas competências, sendo de lembrar, o que já dissemos antes, que pouco sobra para Estados, Distrito Federal e Municípios nessa matéria." (José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivo, 22ª edição, Ed. Malheiros, p. 780).

"Isto posto, a determinação dos sentidos que assume a expressão atividade econômica nos arts. 170, 173 e seu § 1° e 174 da Constituição de 1988 pode ser operada.

Por certo que, no art. 173 e seu § 1°, a expressão conota atividade econômica em sentido estrito. Indica o texto constitucional, no art. 173, caput, as hipóteses nas quais é permitida ao Estado a exploração direta de atividade econômica. Trata-se, aqui, de atuação do Estado – isto é, da União, do Estado-membro e do Município – como agente econômico, em área da titularidade do setor privado. Insista-se em que a atividade econômica em sentido amplo é território dividido em dois campos: o do serviço público e o da atividade econômica em sentido estrito. As hipóteses indicadas no art. 173 do texto constitucional são aquelas nas quais é permitida a atuação da União, dos Estados-membros e dos Municípios neste segundo campo.

Da mesma forma, na redação originária do § 1° do art. 173, alterada pela Emenda Constitucional n. 19/98, a expressão conotava atividade econômica em sentido estrito: determinava ficassem sujeitas ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias, a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que atuassem no campo da atividade econômica em sentido estrito; o preceito, à toda evidência, não alcançava empresa pública, sociedade de economia mista e entidades (estatais) que prestassem serviço público." (Eros Roberto Grau, Ordem Econômica na Constituição de 1988, 8ª edição, Ed. Malheiros, p. 93).

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15.O Ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 407.099/RS, do qual foi relator, proferiu voto em que tratou a questão com maestria. Vale transcrever excertos (Informativo do Supremo Tribunal Federal n° 353):

"A atuação estatal na economia, CF, arts. 173, 174 e 177 ocorrerá: 1) mediante a exploração estatal de atividade econômica (CF, arts. 173 e 177), que será: 1.1. necessária (CF, art. 173); 1.1.1. quando o exigir a segurança nacional, ou 1.1.2. ou o interesse coletivo relevante, tanto um quanto outro definidos em lei. Os instrumentos de participação do Estado na economia serão: a) as empresas públicas; b) as sociedades de economia mista; c) outras entidades estatais ou paraestatais, vale dizer, as subsidiárias (CF, art. 37, XIX e XX; art. 173, §§ 1º, 2º e 3º). Ocorrerá, ainda, a atuação estatal na economia: 2) com monopólio: CF, art. 177, incidindo, basicamente, em três áreas: petróleo, gás natural e minério ou minerais nucleares. A intervenção do Estado no domínio econômico dar-se-á (CF, art. 174): figurando o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica, na forma da lei, fiscalizando, incentivando e planejando."

16.Portanto, com respaldo nas disposições constitucionais relativas à ordem econômica, observa-se que acaso o Estado do Ceará explorasse, por si, a atividade de produtor independente de energia elétrica, estaria violada a livre concorrência no setor, eis que o Estado do Ceará disporia de sensível vantagem indevida na produção e comercialização de energia. Vale salientar que, no caso, sequer existe lei estadual definindo a produção de energia, a partir de fonte eólica, como de relevante interesse público, para efeito de exploração da atividade econômica pelo Estado do Ceará por meio de sociedade de economia mista ou empresa pública, razão pela qual também não caberia autorização para uma empresa estatal estadual.

II. 2. O caso concreto

17. No caso em questão, o Estado do Ceará pretende obter autorização para promover a implantação da Central Eólica de Paracuru. Segundo aduz, será realizada licitação para a seleção de empresa privada para firmar contrato de instalação da central eólica e para a posterior exploração da atividade econômica de produção independente de energia elétrica.

18.Desde que tal autorização não contemple a exploração da atividade econômica de produção independente de energia elétrica pelo Estado, não encontro óbice a que se autorize o Estado do Ceará a promover a instalação de Central Eólica. É que, no caso, o Estado não atuará na ordem econômica; pelo contrário, possibilitará apenas a implantação da Central Eólica, que será construída por empreendedor privado, para o qual será transferida posteriormente a sua propriedade. Ademais, a atividade de produção independente de energia elétrica será realizada pelo mesmo empreendedor privado.

19. Como falado acima, entendo pertinente registrar a necessidade de alertar a área de fiscalização competente para que acompanhe todo o procedimento de instalação da Central Eólica, de sorte a visualizar a efetiva exploração da atividade econômica pelo empreendedor privado que será oportunamente selecionado.


III. CONCLUSÃO

20. Ante o exposto, opino pelo deferimento do pedido formulado pelo Estado do Ceará para que receba autorização exclusivamente para a implantação do parque eólico, fazendo-se dele constar a ressalva de que a autorização ora concedida se restringe à promoção, pelo Estado do Ceará, da instalação da Central Eólica, sendo-lhe impossível promover por si a exploração da atividade econômica de produção independente de energia elétrica, que, a sua vez, deverá ser empreendida por empresa privada.

Brasília, 13 de dezembro de 2004.

LUIZ EDUARDO DINIZ ARAUJO

Procurador Federal

Mat. SIAPE n° 1.378.197

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Luiz Eduardo Diniz. Estado não pode exercer atividade econômica diretamente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1995, 17 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16876. Acesso em: 29 mar. 2024.

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