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Lei paulista de cessão de crédito tributário é inconstitucional

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06/12/2009 às 00:00
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5 Da lesão ao patrimônio e à moralidade do Estado de São Paulo

A implementação das medidas previstas na Lei nº 13.723/2009, mormente a constituição da ‘sociedade de propósito específico’ de que cuida o seu art. 8º é lesiva ao patrimônio do Estado de São Paulo que terá que dispor da quantia de até R$ 100.000,00 para a integralização do capital social dessa sociedade, constituída para receber as prestações de sua dívida ativa objeto de parcelamento, tarefa essa já devidamente realizada pela sua Procuradoria Geral do Estado no cumprimento de sua missão constitucional.

A Lei nº 13.723/2009 também é lesiva a moralidade pública uma vez que é imoral se criar uma lei com a finalidade de burlar as normas constitucionais e legais que visam assegurar a gestão fiscal responsável, o que também caracteriza o seu nítido desvio de finalidade.

De fato, não faz menor sentido confiar à CPP ou à SPE o serviço de recebimento de créditos tributários, implícito na atribuição do órgão estatal específico que detém o poder de cobrar privativamente a dívida ativa do Estado. Caracteriza-se verdadeiro ato ilegal, em sentido amplo, e lesivo ao patrimônio do Estado.


6 Medidas Judiciais Cabíveis

Em face de todo o exposto no corpo do parecer cabem as seguintes medidas judiciais:

a) Ação direta de inconstitucionalidade – Adin – perante o STF com fundamento no art. 102, I, a, da CF a ser proposta por pessoas arroladas no art. 103, da CF. No caso, a consulente teria que promover representação para um dos órgãos legitimados a propor a Adin.

b) Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – prevista no § 1º, do art. 102, da CF, para a qual estão legitimadas as mesmas pessoas referidas no art. 103, da CF.

c) Ação Popular, com fundamento no art. 5º, LXXIII, da CF a ser interposta por cidadão brasileiro nos termos da Lei nº 4.717/65.

d) Caso venham a ser implementadas as operações previstas na Lei nº 13.723/09 cabível será a Ação Civil Pública com base na Lei 7.347/85 e art. 25, IV, a, da Lei 8.625/93. A consulente, como associação de classe, teria dificuldade na demonstração da pertinência temática, pelo que aconselhável a representação para que o órgão ministerial ingresse com a ação.

e) Realizadas as operações previstas na Lei nº 13.723/09 caberá, também, o ajuizamento de ação por improbidade administrativa com fundamento na Lei nº 8.429/92. Para tal fim a consulente deve promover representação ao Ministério Público.


7 Respostas aos quesitos formulados

1- As operações de cessão onerosa dos direitos creditórios acima mencionadas têm amparo no Convênio ICMS nº 104/2002, do CONFAZ, publicado no DOU de 30.08.2002. Ao dispor sobre transações envolvendo a cessão onerosa dos direitos creditórios de recebimento do produto do adimplemento das prestações dos contribuintes do ICMS teria o CONFAZ exorbitado de suas atribuições constitucionais?

R: As operações de cessão onerosa têm fundamento no Convênio ICMS nº 104/2002, porém, esse Convênio é nulo de pleno direito, quer por ausência de assinatura de todos os Estados-membros, quer por extrapolar os limites de sua competência, versando sobre matéria de Direito Financeiro que nada tem a ver com a outorga de isenção e demais incentivos fiscais do ICMS (art. 155, § 2º, XII, g, da CF). O CONFAZ usurpou a competência do Poder Legislativo e agiu contra seu regimento interno.

2- É possível considerar os direitos creditórios de recebimento do produto do adimplemento das prestações dos contribuintes do ICMS como um direito autônomo e destacado do imposto subjacente?

R: Não. A cessão implica necessariamente a transferência ao cessionário de todos os direitos relativos ao bem objeto de cessão, principalmente, o direito de ação.

3- Tais transações constituiriam antecipação da receita que se realizaria nos próximos dez anos (considerados os parcelamentos concedidos dentro do Programa de Parcelamento Incentivado- PPI) e, como tal, caracterizariam apropriação de receita futura obtida mediante empréstimo captado com a distribuição de valores mobiliários pela Sociedade de Propósito Específico e, desse modo, estariam vedadas pela legislação em vigor?

R: Sem dúvida alguma as cessões de crédito de que cuida a Lei nº 13.723/09 caracterizam operações de crédito na modalidade de antecipação de receitas de créditos tributários parcelados, modalidade essa sem previsão na CF e na LRF. Conforme demonstrado no corpo do parecer, trata-se de uma manobra legislativa para tentar caracterizar uma coisa que não é (cessão de crédito) para se ver livre dos rígidos princípios que regem as operações de crédito estabelecidos na CF, na LRF e nas Resoluções do Senado Federal.

4- Sendo o crédito tributário indisponível, a cessão de direito creditório derivado do parcelamento da dívida tributária incorreria em violação ao CTN?

R: Crédito tributário é bem público indisponível, inegociável e irrenunciável porque existe como instrumento necessário ao cumprimento dos fins do Estado. Logo, ele está fora do comércio não podendo ser objeto de cessão, nos precisos termos do art. 286 do Código Civil. A cessão de crédito tributário esbarra na impossibilidade jurídica. Ele nem é passível de penhora. Quando o inciso IV, do art. 167, da CF ressalva o oferecimento de crédito tributário para a garantia das operações de crédito por antecipação de receita, essa garantia não tem o sentido de uma garantia real que se prestasse à execução direta, porque crédito tributário é bem público indisponível e impenhorável, conforme demonstrado no corpo deste parecer.

5- A vinculação de receita pelo atrelamento do produto proveniente dos parcelamentos a determinado fundo de investimentos em direitos creditórios ou sociedade de propósito específico resvalaria no vício da inconstitucionalidade?

R: Sim. Vide respostas dadas aos quesitos de números 3 e 4.

6- Há algum óbice que impeça tais operações do ponto de vista da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou ofensa de outras autorizações legislativas necessárias?

R: Sim. As operações de crédito por antecipação de receita, além de preencher todos os requisitos previstos no art. 32 (pleito fundamentado perante o Ministério da Fazenda) devem, ainda, observar todas as prescrições do art. 38 da LRF, dentre as quais as proibições enumeradas em seu inciso IV. Tais operações com a SPE ou com a CPP (empresas controladas) incidem na proibição expressa do art. 36 da LRF, além de configurar ato de improbidade administrativa, nos termos dos arts. 10, VI e 11, I da Lei nº 8.429/1992. Outrossim, as operações previstas na Lei nº 13.723/09 configuram verdadeiras operações de crédito ao teor do inciso II, do art. 37 da LRF, que equipara a operações de crédito ao "recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto".

7- Ocorreria quebra do sigilo fiscal na medida em que os créditos públicos sejam auditados por empresas de "ratring", dando-se a conhecer identidade do devedores?

R: Sim, se considerada a hipótese de que estaria havendo cessão de crédito tributário, pois ninguém compraria o crédito tributário sem conhecer previamente o patrimônio econômico do contribuinte-devedor, a menos que o adquirente seja o próprio Estado representado por uma empresa controlada que criou para isso. Mas, como esclarecido nas respostas anteriores, o caso sob exame não cuida de cessão de crédito, mas de operação de crédito disfarçada. Aliás, sintomático o esforço do legislador em tentar descaracterizar a operação de crédito, como se depreende da parte final do parágrafo único, do art. 6º, da lei sob exame. A verdadeira natureza jurídica dos institutos ou categorias de direito não resulta da rotulagem legal, mas do exame dos efeito e da causa do ato legislativo. Pergunta-se, por que criar uma SPE para que esta adquira do ente político, a título oneroso, o direito autônomo de receber o crédito tributário sob parcelamento? Não seria mais lógico o ente político receber esses créditos diretamente dos contribuintes-devedores? Como se vê, a lei sob comento viola o princípio da razoabilidade que é um limite imposto à ação do próprio legislador.

8- No que se refere aos riscos da operação, tendo em vista a disposição do artigo 295 do Código Civil, haveria alguma inconsistência?

R: Como já esclarecido anteriormente não se trata de cessão de crédito. Deu-se o nome de cessão de crédito para tentar encobrir a verdadeira natureza jurídica da operação (operação de crédito por antecipação de receita de créditos tributários parcelados) para burlar os princípios que regem as operações creditícias realizadas pelo poder público. Se tratasse de cessão haveria, efetivamente, a apontada inconsistência na hipótese de cessão de crédito fictício. Mas, de cessão não se cuida, apesar da ênfase dada pelo parágrafo único, do art. 6º (cessão em caráter definitivo, sem responsabilidade do Estado pelo efetivo pagamento do crédito cedido pelo contribuinte), pois o art. 2º da mesma lei reserva para o Estado a prerrogativa da cobrança judicial e extrajudicial do crédito cedido.

9- A lei dispõe sobre cessão definitiva, ou seja, transferência irretratável de titularidade, e assim pode obstar a retomada da execução, se os parcelamentos forem rompidos?

R: Não, porque de cessão não se trata. Os créditos tributários "cedidos" não saem da esfera do Poder Público, pois essa cessão somente abrange o "direito autônomo ao recebimento do crédito". Se o cessionário não conseguir receber o crédito tributário a Fazenda retoma a cobrança judicial ou extrajudicial, nos precisos termos do art. 2º da lei sob exame. Ora, isso tem outro nome: operação de crédito por antecipação de receita de créditos tributários sob o regime de parcelamento. Aliás, nem poderia ser de outra forma, pois na forma do inciso VI, do art. 99, da Constituição do Estado de São Paulo, e do inciso VI, do art. 2º, da Lei Complementar nº 478, de 18-7-1986, compete privativamente à Procuradoria Geral do Estado a cobrança da dívida ativa do Estado.

10- Os devedores beneficiados pelo parcelamento de suas dívidas poderiam adquirir os valores mobiliários distribuídos pela SPE e depois alegar a extinção da obrigação tributária pelo instituto da confusão?

R: Não, porque o crédito tributário "cedido" continua pertencendo ao Estado cedente. O que a esdrúxula lei permite é apenas a cessão do direito de o cessionário receber o valor do crédito tributário. Não havendo pagamento voluntário por parte do contribuinte-devedor a cessão fica desfeita, ipso fato, para ser o crédito cobrado pela PGE.

11- Haveria risco de responsabilização do Estado, por força de demandas ajuizadas pelos cessionários prejudicados pelo rompimento dos parcelamentos, haja vista que o Estado não assume a responsabilidade pelo efetivo pagamento a cargo do contribuinte ou qualquer outra espécie de compromisso financeiro?

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R: Em uma operação regular de cessão de direitos creditórios o cessionário teria que arcar com as conseqüências do negócio. Nenhuma responsabilidade teria o cedente pela má liquidação do crédito cedido ressalvada a hipótese do art. 295 do CC. Por isso, o cessionário teria que investigar o patrimônio econômico do contribuinte-devedor, bem como adquirir esses créditos com um deságio que compensasse correr o risco do negócio. Mas, no caso sob exame, trata-se de um negócio do Estado consigo mesmo. O cessionário (SPE ou CPP) atuaria como se fosse um "laranja".

12- A subscrição de capital de sociedade de propósito específico mediante cessão de direitos creditórios originários de créditos tributários e não tributários parcelados representa despesa e deveria estar autorizada na lei orçamentária anual, com relação àquelas realizadas no próprio exercício, e na lei de diretrizes orçamentárias as despesas do exercício seguinte?

R: Para contornar o problema levantado no quesito o astuto legislador prescreveu em seu art. 11 a autorização para o Executivo abrir crédito especial até o limite de cem mil reais, por sinal, um capital bem modesto, próprio de uma empresa de "fachada".

13- As despesas dessa natureza relativas a exercícios posteriores ao seguinte deveriam atender as diretrizes, objetivos e metas previstos na lei do plano plurianual?

R: Não sendo despesa obrigatória de caráter continuado não tem aplicação o disposto no art. 17 da LRF.

14- As transações autorizadas pela lei configurariam operação de crédito e dependeriam de análise (endividamento) pela Secretária do Tesouro?

R: Sim. Tais transações equiparam-se a operações de crédito nos precisos termos do inciso II, do art. 37 da LRF. Por isso, em obediência ao disposto no art. 32 da LRF o ente político interessado deve pleitear a competente autorização perante o Ministério da Fazenda em parecer fundamentado de seus órgãos técnicos e jurídicos, demonstrando a relação custo-benefício, o interesse econômico e social da operação e o atendimento das condições previstas nos incisos I a VI do seu parágrafo 1º. Outrossim, o ente político deverá observar todos os requisitos do art. 38 da LRF, notadamente, a proibição do inciso IV, b, concernente à contratação de operação de crédito no último ano de mandato do governante.

É o meu parecer, s.m.j.

São Paulo, 1º de dezembro de 2009.

Kiyoshi Harada

OAB/SP 20.317

Especialista em Direito Tributário e Ciência das Finanças pela FADUSP


Notas

  1. Responsabilidade fiscal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 166.

  2. Ob. Cit. p. 168.

  3. Cf. nosso Direito financeiro e tributário. 18 ed., São Paulo : Atlas, 2009, p. 5.

  4. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 780-781.

  5. Ob. cit., p. 780.

  6. "Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios."

  7. "§ 3º. Não alcançada a redução no prazo estabelecido, e enquanto perdurar o excesso, o ente não poderá:

I - receber transferências voluntárias;

II - obter garantia, direta ou indireta, de outro ente;

III - contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal.

§ 4º. As restrições do § 3º aplicam-se imediatamente se a despesa com o pessoal exceder o limite no primeiro quadrimestre do último ano do mandato dos titulares de Poder ou órgão referidos no art. 20."

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Lei paulista de cessão de crédito tributário é inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2349, 6 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16907. Acesso em: 18 mai. 2024.

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