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Parecer sobre a possibilidade de criação dos Tribunais Regionais Federais por Emenda Constitucional

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25/10/2013 às 09:10
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A Constituição não impede a criação de TRFs por via de Emenda Constitucional. O poder de iniciativa do Judiciário para a criação ou extinção de tribunais incide apenas sobre o processo legislativo ordinário.

EMENTA:

O art. 96, II, c, da Constituição não impede a criação de Tribunais Regionais Federais por via de Emenda Constitucional. O poder de iniciativa conferido pela Lei Fundamental ao Judiciário para a criação ou extinção de tribunais incide apenas sobre o processo legislativo ordinário, não integrando, ademais, o núcleo duro da atividade jurisdicional. Por isso, eventual Emenda Constitucional com idêntico propósito é incapaz de vulnerar a separação dos poderes enquanto cláusula pétrea. Também as limitações constitucionais ao poder de emenda parlamentar aos projetos de lei de iniciativa dos demais Poderes, particularmente no que concerne ao aumento de despesas, incidem exclusivamente sobre o processo legislativo ordinário, não alcançando a atividade normativa exercida pelo Poder Constituinte Derivado. Por fim, tratando-se de Emenda à Constituição, alteração formal de menor importância no texto aprovado pela primeira Casa, mesmo introduzida por meio de substitutivo introduzido pela segunda Casa, não implicando alteração de natureza substantiva, não é suficiente para justificar a negativa de promulgação da nova obra legislativa, pois já aprovada. Promulgação necessária pelas Mesas das duas Casas do Congresso Nacional na forma do art. 60, par. 3º. da Lei Fundamental da República.


1. – A Consulta

Aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 544/2002 criando quatro novos Tribunais Regionais Federais, o Presidente do Senado Federal, provavelmente diante de oposição manifestada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, recusa-se a providenciar, nos termos da Constituição, a sua promulgação, pretextando que a medida:

1) viola cláusula pétrea, particularmente a que cuida da separação dos poderes, já que a iniciativa legislativa para a criação de Tribunais incumbiria exclusivamente ao Poder Judiciário.

2) implica censurável aumento de despesas;

3) padece de vício formal, já que os textos aprovados na Câmara e no Senado são distintos.

Consulta-me o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio do ilustre Conselheiro Lúcio Glomb, a propósito da pertinência dos argumentos referidos, constituindo cada um deles quesito a merecer resposta positiva ou negativa.


2. – O Parecer

Sobre o primeiro dos questionamentos supracitados apresentei ao Congresso Nacional, há alguns anos, Parecer com o seguinte teor:[1]

1. A Consulta

Tramita no Congresso Nacional proposta de Emenda Constitucional visando a criação de mais de um Tribunal Regional Federal, inclusive no Estado do Paraná. Trata-se de saber, afinal, se a referida PEC não ofenderia a Constituição Federal, designadamente o especificado no art. 96, inciso II, letra c, conferindo ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais a prerrogativa da iniciativa legislativa para criação ou extinção de tribunais inferiores.

Há, portanto, um único quesito demandante de resposta.

2. O Parecer

Assim dispõe o art. 96, inc. II, letra c, da Constituição Federal:

“Art. 96. Compete privativamente:

Inc. II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:

c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;”

O art. 169 dispõe, por sua vez:

“Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

§ 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas: (Renumerado do parágrafo único, pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes;

II - se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista.”

O art. 96, inc. II, letra a da Constituição atribui iniciativa vinculada ou reservada a específicos órgãos do Poder Judiciário para apresentação de projeto de lei versando sobre a criação ou extinção de tribunais inferiores. Como se sabe, a iniciativa constitui sempre manifestação de um poder[2] que dá início ao procedimento legislativo com vista à modificação ou inovação da ordem jurídica preexistente.     

A regra do art. 96, inc. II, letra c, deve ser lida em conjunto com as demais inscritas no inc. II, do art. 96. Isto porque o ato de criação de Tribunal, supondo um conjunto de medidas, depende de lei de iniciativa do Poder Judiciário quanto à alteração do número de membros do Tribunal inferior (letra a); também quanto à criação ou extinção de cargos e fixação de vencimentos de seus membros, dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver, dos serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados (letra b); e, por fim, quanto à alteração da organização e da divisão judiciária (letra d).

O art. 169 da CF/1988 também faz sentido para o cuidado da matéria já que os novos tribunais, uma vez criados por lei, exigirão, para o regular funcionamento, estrutura física e corpo funcional implicando a realização de despesas que devem ser autorizadas nos limites formais impostos pelas regras constitucionais informantes do sistema financeiro e orçamentário.             Neste ponto, cumpre lembrar que, com a iniciativa, o Poder Judiciário exerce função atípica participando da função legislativa nos moldes de um Estado onde a rígida separação dá lugar a uma importante colaboração entre os poderes.[3]

A criação de Tribunal inferior – no caso Tribunal Regional Federal do Paraná – por meio de emenda à Constituição Federal envolve a consideração dos limites ao poder constituinte derivado explicitados no art. 60, §4º que proíbe as emendas tendentes a abolir: I - a forma federativa de Estado, II - o voto direto, secreto, universal e periódico, III - a separação dos poderes, IV - os direitos e garantias individuais. O enfrentamento do tema reclama também o cotejo do poder constituinte derivado com o poder constituinte decorrente, uma vez que o Supremo Tribunal Federal já concedeu medida cautelar suspendendo os efeitos de dispositivo da Constituição do Paraná que criava novos Tribunais de Alçada[4]. Ultrapassados estes pontos, cumpre examinar a viabilidade de emenda ao ato das disposições constitucionais transitórias, e, portanto, se a criação de Tribunal Regional Federal pode ser realizada nos mesmos termos do art. 27, §6º do ADCT.

2.1. Poder Constituinte Derivado e Cláusulas Pétreas

Tanto a fiscalização da constitucionalidade como a reforma constitucional são garantias da “supremacia permanente da Constituição”.[5]

A questão da reforma constitucional implica, necessariamente, o problema dos limites à mudança constitucional. O poder constituinte derivado, porque criado pela Constituição e regulado por ela quanto ao modo do seu exercício, deve ser compreendido dentro de determinados parâmetros. Como ensina Jorge Miranda, a função do poder de reforma não é a de fazer Constituições, mas possibilitar a preservação da identidade e continuidade da Constituição considerada como um todo.[6] A afirmação de cláusulas pétreas no sistema brasileiro exige a aceitação de certas notas características da (i) limitabilidade da função reformadora, de sua (ii) imprescindibilidade dada a necessidade de ordenação constitucional do processo de atualização das normas constitucionais frente às novas conjunturas, sem a aniquilação do seu perfil essencial e da (iii) insuperabilidade em face da impossibilidade de modificação ou remoção das regras constitucionais que dispõem sobre as cláusulas de limites (processo de dupla reforma).    

Daí porque o art. 60, §4º, veicula limites materiais explícitos, não excluindo a presença de limites implícitos ou tácitos[7]. A vedação ao processo de dupla reforma constitui limite material implícito, sabendo-se que o elenco dos limites expressos  não menciona o próprio sistema de reforma. E aqui se explica a insuperabilidade antes destacada[8].

Os limites expressos (art. 60, §4º) cumprem o papel de explicitação e certificação dos limites inerentes da revisão. Eles são uma espécie de interpretação autêntica (porque feita pelo próprio poder constituinte) dos limites intrínsecos da revisão[9].

O art. 60, §4º não garante propriamente a intocabilidade dos preceitos constitucionais concernentes à forma federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos poderes; direitos e garantias individuais, mas sim certos princípios ou regimes materiais. A Constituição não retira estas matérias do campo de atuação do poder constituinte derivado. Estão vedadas as emendas tendentes a abolir as cláusulas do art. 60, §4º e não propriamente as emendas que tenham por objeto a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.

Assim, a forma federativa de Estado não pode ser abolida pelo poder reformador, embora as regras constitucionais que informam o princípio federativo possam ser alteradas desde que não impliquem ruptura com o que se entenda por essencial à federação. Ora, tanto as emendas como a revisão “cumprem a mesma função de reformar para corrigir, e não de ‘reformar’ como procedimento juridicamente espúrio de descontinuidade ou ruptura constitucional”.[10] Para o que aqui interessa, cumpre ponderar que a iniciativa legislativa dos órgãos do Poder Judiciário para criação ou extinção de Tribunal não consta do art. 60, §4º. Justamente por isso, a sua reforma será possível desde que não afete tendendo a abolir (e aqui emerge a vedação de uma espécie qualificada de afetação que é aquela com finalidade de destruir, aniquilar, descaracterizar o núcleo essencial da Constituição)  a forma federativa de Estado, o voto secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.

O que está em jogo na criação de Tribunal via emenda à Constituição Federal não é propriamente o art. 96, II, letra c. Mas, sim, se a regra constitucional inscrita no art. 96, II, letra c, da CF/1988 (a) encontra fundamento em algum dos princípios apresentados como cláusulas pétreas, e (b) em caso afirmativo, se da sua alteração pode decorrer inaceitável quebra da identidade.

2.2. A criação de Tribunal por emenda constitucional e o princípio da separação dos poderes

Como foi dito antes, o art. 96, inc. II, c, da CF/1988 confere ao Poder Judiciário a iniciativa para o procedimento legislativo que trate da criação ou extinção de Tribunais inferiores. A previsão toca diretamente no tema da colaboração entre os poderes no processo legislativo pois, neste caso, ao Poder Judiciário caberá a iniciativa legislativa, ao Poder Legislativo, a discussão e aprovação  ou rejeição do projeto e ao Executivo, a sanção ou veto. O sistema de interdependência no processo legislativo informa a ideia de controle recíproco entre os poderes, integrante da nossa compreensão a propósito do Estado com poderes divididos.

O princípio da separação dos poderes, expressamente afirmado no art. 2º – são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário – e elevado à condição de cláusula pétrea dá suporte às regras constitucionais que regulam as relações entre os poderes no desempenho de suas funções precípuas. Como salienta José Afonso da Silva, o princípio fundamenta-se em dois elementos: (i) especialização funcional no sentido de que cada órgão é especializado no desempenho precípuo de uma função – o Poder Legislativo cuida  da função legislativa, o Poder Executivo da função executiva, e o Poder Judiciário, da função jurisdicional; e (ii) independência orgânica que significa inexistência de subordinação[11].

Na Constituição de 1988, a regra constitucional que autoriza a participação do Poder Judiciário na função legislativa mediante a previsão de iniciativa de lei que crie Tribunal encontra fundamento na separação dos poderes, revelada como princípio de colaboração onde cada um deles, a par do desempenho de sua função típica, interfere atipicamente nas outras funções conformando uma cadeia  de freios e contrapesos.

A iniciativa do Poder Judiciário insere-se num quadro de “deslocamento parcial da atividade legislativa para outros titulares, aos quais as Constituições contemporâneas permitem, através de técnicas e de procedimentos apropriados, o exercício de competência legislativa”,[12] ou de parcela dela.

Porém, a circunstância do art. 96, II, c, encontrar fundamento no princípio da separação dos poderes (não na forma federativa de Estado que se relaciona com a divisão espacial do poder; não no voto direto, secreto, universal e periódico; não nos direitos e garantias individuais) não garante, por si só, a sua imodificabilidade.  É preciso algo a mais: -  a previsão constitucional deve integrar o núcleo essencial do princípio em questão, sinalizando, a sua alteração, tendência de abolição.

O deslinde do assunto desafia a delimitação do cerne do “princípio da separação dos poderes”.

Como se sabe, os princípios apresentam-se como fundamentos das regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite “ligar” ou cimentar objetivamente todo o sistema constitucional.[13] São normas jurídicas de “otimização”, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos, enquanto as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida.[14]

Nesta óptica, os princípios não seguem a lógica do “tudo ou nada”, permitindo o balanceamento entre valores[15] e interesses.[16] Carmem Lúcia Antunes Rocha alude à “poliformia principiológica”:  - a substância política ativa dos princípios faz com que as alterações das instituições políticas e sociais atinjam o seu sentido e alcance.[17]

Esta abertura é responsável pela maior vulnerabilidade das normas principiológicas às mutações constitucionais, ou seja, ao “evoluir permanente do sentido da ordem constitucional para o efeito de acompanhar a história e o seu progresso”[18]. É por isso que se o núcleo essencial do princípio da separação dos poderes é condição sine qua non para o implemento de um sistema de limites ao poder constituinte derivado, ele, ao mesmo tempo, não fica imune às novas compreensões constitucionais derivadas de renovadas necessidades sociais. Afinal, “a identidade da Constituição não significa a continuidade ou permanência do ‘sempre igual’, pois num mundo sempre dinâmico a abertura à evolução é um elemento estabilizador da própria identidade”[19].

Desde esta perspectiva, derivada dos deslocamentos teóricos mais adequados em matéria de Direito Constitucional, é que se deve extrair do texto constitucional um núcleo intangível do princípio da separação dos poderes funcionalmente adequado à preservação da Constituição.

Ensina José Joaquim Gomes Canotilho, em lição apropriada ao direito brasileiro, que em geral o núcleo essencial do princípio da separação dos poderes é entendido como:

“(...) a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outro. Quer dizer: o princípio da separação exige, a título principal, a correspondência entre órgão e função e só admite excepções quando não for sacrificado o seu núcleo essencial. O alcance do princípio é visível quando com ele se quer traduzir a proibição do ‘monismo de poder’, como o que resultaria, por ex., da concentração de ‘plenos poderes’ no Presidente da República, da concentração de poderes legislativos no executivo e na transformação do legislativo em órgão soberano executivo e legiferante.”[20]

Por conseguinte, uma emenda constitucional estaria, certamente, a ferir o princípio da separação dos poderes quando (i) transferisse para um poder a função constitucional precípua de outro, quebrando com a especialização funcional, (ii) ou, em outro sentido, (ii) estabelecesse um sistema de interferências entre poderes que fosse além dos fins constitucionais de freios e contrapesos de forma a afetar gravemente  a independência funcional de cada um.

A função precípua do Judiciário é a jurisdicional. Possível exceção ao monopólio da jurisdição exercida pelo Judiciário substancia a competência atribuída ao Senado Federal para o julgamento de algumas autoridades pela prática de crime de responsabilidade[21]. Assim, quando o Judiciário participa da função legislativa através de iniciativa reservada exerce função atípica e acidental.

Nada obstaria, em princípio, eventual emenda constitucional que retirasse a iniciativa. O núcleo essencial do princípio da separação dos poderes garante que não se atribua a um órgão exterior ao Poder Judiciário a competência jurisdicional para quebrar a especialização funcional.

A emenda introduz modificação pontual no Texto Constitucional com o objetivo de melhor instrumentar o Poder Judiciário ante a dinâmica das relações sociais. Sim, porque se a “validade de uma Constituição decorre de sua eficacidade”,[22] a criação de novos Tribunais  facilita o acesso dos cidadãos à justiça implementando a garantia fundamental da inafastabilidade da tutela jurisdicional[23].

A emenda concretiza a obra do poder constituinte. Inserida nos limites próprios ao poder de reforma, cumpre a função de adequar a Constituição às exigências do tempo. Como acentua Carl Friedrich, “o excesso gera a instabilidade (...) quando as normas constitucionais não conseguirem se ajustar aos novos reclamos sociais, algo inadmissível em todo o mundo.”[24]

2.3. Poder Constituinte decorrente dos Estados Membros

Tudo se passa diferente quando se trata de manifestação do poder constituinte decorrente derivado, aquele próprio das Coletividades Federadas. A atividade do poder constituinte estadual é sucessiva à do constituinte federal.[25] Daí porque o poder de reforma conferido ao constituinte federal não possui idêntica natureza àquela do poder de reforma atribuído ao constituinte estadual.

Segundo Raul Machado Horta,

“(...) como conseqüência da subordinação da Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-Membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo das normas de preordenação”[26].

O poder constituinte decorrente submete-se a um regime específico de limitações: princípios constitucionais enumerados que autorizam a intervenção federal em caso de descumprimento, princípios constitucionais estabelecidos (repartição de competências, organização dos poderes) e regras de preorganização do Estado-Membro.

Bem por isso que na criação de Tribunal Estadual via emenda constitucional estadual  não estão em jogo os limites do poder de reforma constitucional – no caso o art. 96, II, c – porque, certamente, o Estado Membro não tem competência para alterar a Constituição Federal. Sim, porque a questão reside em saber se a regra tem ou não de ser reproduzida pelo Estado-Membro.

O controle da constitucionalidade das normas das Constituições Estaduais leva em conta a adequação do poder de organização estadual à supremacia da Constituição Federal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as normas básicas de processo legislativo – incluindo a iniciativa para o projeto de lei – são normas de reprodução compulsória. Haverá, então, inconstitucionalidade formal quando as Emendas às Constituições dos Estados transportam para o domínio da Constituição matéria de lei ordinária de modo a contornar o impedimento de sua iniciativa pelo legislador ordinário que obedece a um rito de iniciativa reservada.

2.4. O Supremo Tribunal Federal e o poder constituinte decorrente

O Supremo Tribunal Federal declarou que o tema da observância, pelos Estados-Membros, das normas constitucionais federais sobre processo legislativo envolve “o alcance do poder constituinte decorrente que é atribuído aos Estados”[27]. A Suprema Corte decidiu que o “modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Carta da República, impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à observância incondicional dos Estados-Membros”.[28] Nesta linha, “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros. Precedentes do STF”.[29] A Suprema Corte posiciona-se, portanto, no sentido de que “(...) a cláusula de reserva pertinente ao poder de instauração do processo legislativo traduz postulado constitucional de observância compulsória, cujo desrespeito – por envolver usurpação de uma prerrogativa não compartilhada – configura defeito jurídico insanável. As normas restritivas inscritas no art. 63 da Constituição Federal aplicam-se ao processo de formação das leis instaurado no âmbito dos Estados-Membros”.[30]

A questão específica de criação de Tribunal estadual mediante Emenda à Constituição Estadual já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal:

Paraná. Constituição Estadual. ADCT. Criação de Novos Tribunais. Extensão do poder constituinte da Assembléia Legislativa local. Suspensão cautelar. O relevo jurídico do tema suscitado evidencia-se pela singular circunstância de que o poder constituinte do Estado Membro traduz função jurídica necessariamente sujeita aos condicionamentos normativos postos pela Constituição Federal. É na Constituição Federal que se localiza a fonte jurídica do poder constituinte do Estado Membro (Raul Machado Horta). Esta Corte tem concedido a suspensão liminar de atos normativos impugnados em ações diretas – como a presente – onde se discute o tema do autogoverno da Magistratura e o exercício do poder de criar, alterar ou extinguir Tribunais locais sem o necessário concurso do Tribunal de Justiça.[31]

2.5. Sobre a reforma e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias representa, no contexto da Constituição, “técnica de acomodação normativa” direcionada a afastar o colapso que adviria do vazio jurídico gerado pela substituição da Constituição. Assim, as normas de transição regulam situações discrepantes das normas constitucionais permanentes[32]. Os traços marcantes são a temporariedade e a transitoriedade. São normas que vão desaparecer ou perder a eficácia em virtude do cumprimento dos atos ou determinações do Constituinte.

Como se sabe, os Tribunais Regionais Federais existentes foram criados pelo § 6º, do art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Na classificação de Raul Machado Horta, na disposição que criou os Tribunais Regionais residiria, hoje,  norma de eficácia exaurida[33].

A criação dos tribunais mediante Emenda à Constituição Federal constará de emenda aditiva ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Se o poder constituinte derivado -  alguém poderia argumentar - pudesse criar Tribunais mediante emenda ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estaria se alçando ao nível do poder constituinte originário. Isto traria por consequência a igualação entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado.

No entanto, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias integra a Constituição como qualquer outra parte, podendo, por isso, sofrer interferência do poder constituinte de reforma. Para o Supremo Tribunal Federal,

“(...) contendo as normas constitucionais transitórias exceções à parte remanescente da Constituição, não tem sentido pretender-se que o ato que as contém seja independente desta, até porque é da natureza mesma das coisas que, para haver exceção, é necessário que haja regra, de cuja existência aquela, como exceção, depende. A enumeração autônoma, obviamente, não tem o condão de dar independência àquilo que, por sua natureza mesma, é dependente.”

Foi com esta argumentação que a Suprema Corte julgou improcedente ação direta de inconstitucionalidade aforada  contra Emenda Constitucional ao art. 2º, do ADCT da Constituição de 1988.[34]

Logo, admitida a possibilidade de reforma de dispositivos constantes do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, importa também afirmar que o processo legislativo de proposta de emenda apresentada com o objetivo de criação de tribunal, não se submete ao comando do art. 96, II, c, da Constituição. É que, tratando-se de Emenda Constitucional à Constituição Federal, sobre ela não incide a reserva de iniciativa conferida ao Judiciário. Esta vincula o Congresso Nacional no exercício da competência legislativa ordinária (poder constituído), mas nunca no exercício do poder de reforma constitucional (poder constituinte), exceto no âmbito estadual (poder constituinte decorrente).

3. Resposta ao quesito

O art. 96, II, c, da Lei Fundamental não impede a criação de Tribunal Regional Federal por via de Emenda à Constituição Federal. Sobre ser constitucional, a eventual Emenda não feriria o núcleo não abolível representado pelas cláusulas pétreas consignadas no art. 60, §4º da Constituição. Aliás, tratando-se de  reforma constitucional, a limitação em questão incide exclusivamente sobre o Poder Constituinte Decorrente, exercido no âmbito dos Estados-Membros.

É o que me parece.”

2.1. - Ainda sobre o primeiro quesito

A título de reforço, convém remarcar que o Supremo Tribunal Federal tem posição pacífica a respeito da matéria. Com efeito, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) provocou, por meio da ADI 3367/DF, o controle abstrato da constitucionalidade dos artigos 1º e 2º da Emenda Constitucional n. 45/2004  que, entre outras medidas, introduziu na ordem jurídica brasileira, integrando o Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Em seu voto, o Relator, Min. Cezar Peluso, entre outros argumentos, destacou que o CNJ não pode ofender o princípio da separação dos poderes porque é órgão próprio do Poder Judiciário. Aduziu que o Poder Legislativo também tem a função de controle dos Poderes, com o auxílio do Tribunal de Contas, constituindo autêntico “controle externo” e, nem por isso, supõe alguma incompatibilidade com o sistema de separação dos poderes.  Diante disso, o Relator votou pela improcedência da ação, tendo sido a ADI julgada, por maioria, improcedente. O argumento que vale para a Emenda Constitucional 45/2004 também vale para a PEC 544/2002. Sendo constitucional aquela Emenda, é também constitucional a PEC. Se é inconstitucional a PEC, então padece de inconstitucionalidade a reforma do Judiciário providenciada pela Emenda Constitucional 45/2004, particularmente na parte em que (i) introduz no Poder Judiciário um novo órgão, o Conselho Nacional de Justiça, comprimindo inclusive a autonomia dos Tribunais garantida pelo Constituinte Originário (arts. 96 e 99 da CF), (ii) determina a criação da justiça itinerante ou o funcionamento descentralizado dos tribunais ou, por fim, (iii) extingue os Tribunais de Alçada, mediante incorporação de seus membros e competências aos Tribunais de Justiça. No último caso, é de lembrar que ao Judiciário foi conferida, nos termos do art. 96, II, c, da Constituição Federal, a iniciativa não apenas para propor a criação, mas também a extinção de tribunais inferiores.

É possível ir além. A Emenda Constitucional n. 24/1999 extinguiu a representação classista na justiça do trabalho, tendo sido, ainda que de modo reflexo, admitida como válida pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 1878/DF e ADIMC 2149/DF).  A competência do próprio Supremo Tribunal Federal (e de outros tribunais) também foi alterada, mais de uma vez, por Emenda Constitucional  (por exemplo, Emendas Constitucionais números 3/93 e 45/2004), sem que sobre a iniciativa recaísse dúvida quanto à higidez. O argumento, portanto, da usurpação de iniciativa, significando vulneração da cláusula atinente aos poderes divididos, não guarda sentido, inclusive porque a proposta de emenda em questão não diminui, ao contrário, fortalece o Poder Judiciário ampliando a estrutura já existente, significando com isso respeito à função jurisdicional, atividade típica da autoridade judiciária, e, por isso mesmo, ao arranjo constitucional da separação de poderes.

2.2. - Cuidando do segundo quesito

O Presidente do Supremo Tribunal Federal, segundo noticia a imprensa,[35]em pronunciamento manifestamente contrário à medida, estimou que o custo de implantação dos novos tribunais chegaria a oito bilhões de reais. A falta de precisão com a qual algumas autoridades brasileiras falam sobre números já não causa mais espanto.

Cumpre observar o problema dos custos a partir de duas frentes. Primeiro, é oportuno remarcar que há, para o funcionamento de qualquer instituição, um custo que deve ser levado em conta. Afinal, os direitos custam, alertam Holmes e Sunstein.[36]

A criação de novos Tribunais Regionais Federais constitui adequada medida para aliviar a sobrecarga da Justiça Federal e efetivar o acesso à justiça. Supõe escolha do Poder Constituinte Derivado que não agride cláusula pétrea alguma, implicando política que atende, ademais, ao disposto no art. 3º, II e III da Constituição Federal. Trata-se, nesse sentido, de democratizar o acesso à justiça e aprimorar a prestação jurisdicional para melhor atingir os jurisdicionados das regiões do país que estão a demandar maior atenção.

Uma segunda linha de argumentação deve ser desenhada. Os números referentes à Justiça Federal são importantes para justificar a pertinência da criação dos novos tribunais. No ano de 2012, tramitavam no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (que tem jurisdição sobre 13 Estados, além do Distrito Federal) 390.782 feitos, perfazendo uma média de aproximadamente 16.000 distribuídos para cada um dos 24 desembargadores com funções judicantes. Há tramitando, por outro lado, atualmente na Justiça Federal, mais de um milhão de feitos.[37] Cerca de 66,6% dos casos distribuídos não são resolvidos no mesmo ano, fator que repercute no congestionamento da segunda instância. Por outro lado, no intervalo entre 1989 e 2013 o número de juízes federais cresceu 668%, enquanto o de desembargadores sofreu incremento de apenas 89%.  Bem por isso, manifesta-se uma taxa de congestionamento de 65,5% nas turmas, segundo o Conselho Nacional de Justiça.[38] Ora, a carga individual de trabalho dos membros dos Tribunais Regionais Federais é cerca de cinco vezes maior que a de seus pares nas Justiças do Trabalho e Estadual.

Há, atualmente, pouco mais de cem desembargadores federais em atividade, número insuficiente para solucionar os pleitos advindos de todos os rincões da Federação. Observa-se, portanto, a dificuldade do acesso à Justiça no segundo grau.

Uma alternativa poderia derivar da aplicação do Art. 107, §3º da Constituição, que autoriza a criação de Câmaras descentralizadas. Ter-se-ia, aqui, uma modo tangencial de enfrentamento da sobrecarga da Justiça Federal. Ora, as Câmaras também implicariam custos de instalação e manutenção, inclusive para o deslocamento dos desembargadores e equipes de apoio da sede do Tribunal para os locais de realização das sessões descentralizadas. As Câmaras, por outro lado, não solucionariam a disparidade estrutural existente entre a 1ª e a 2ª instâncias no âmbito da Justiça Federal.

Ademais, o custo efetivo para a instalação dos Tribunais Regionais Federais pode ser estimado entre 700 milhões de reais e 1,3 bilhão por ano, números bastante menores, portanto, do que aqueles apresentados pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal.[39] A questão do custo da implantação dos Tribunais, entretanto, não constitui argumento suficiente para, do ponto de vista constitucional, impedir a promulgação da PEC 544/2002.  Deveras, observado de um lugar estritamente jurídico, o poder de reforma constitucional está acima deste nível de discussão.

Aliás, sobre a questão dos custos para a instalação dos novos Tribunais, o Conselho da Justiça Federal entendeu, com base em estudos técnicos, que a expansão proposta pela PEC 544/2002 não conflita, desde a perspectiva orçamentária e financeira, com os limites legais que cuidam da responsabilidade fiscal, pois a margem de expansão prevista no Anexo III.2 da LDO de 2012 abrangeria as despesas projetadas com o impacto anual.[40]

Também deve ser lembrado que o Art. 27, §12 do ADCT, de acordo com a redação da PEC 544/2002, estabelece o prazo de seis meses para que os novos Tribunais sejam instalados. A iniciativa do Constituinte, portanto, desafia a ulterior deflagração de um processo legislativo ordinário para a sua concretização. Nesse caso, o projeto de lei cuidando das novas Cortes deverá, consideradas as balizas financeiras, levar em consideração também os demais dados técnicos disponíveis, contando, além do mais, com o discernimento e a experiência dos membros do Conselho da Justiça Federal para a satisfação de maneira ótima, mas igualmente eficiente e econômica, da vontade do poder reformador.  

Sintetizando, a discussão em torno dos custos faz sentido do ponto de vista financeiro ou político. Desde a ótica estritamente constitucional, entretanto, o debate é impertinente. Afinal, as emendas constitucionais providenciadas, no plano federal, pelo Poder Constituinte Derivado não se sujeitam, absolutamente, às amarras constitucionais da atividade legislativa ordinária. Daí porque, as limitações constantes do art. 63 da Constituição, sempre incidentes sobre as emendas parlamentares no processo legislativo ordinário, não vinculam de modo algum o Congresso Nacional no exercício do poder de reforma constitucional.     

2.3. - O frágil terceiro argumento

O Projeto de Emenda Constitucional 544/2002 foi apresentado no distante ano de 2001. Naquele momento tramitava com outro número (PEC n. 29/2001) e, mediante o acréscimo dos §§ 11 e 12 ao Art. 27 do ADCT, cuidava da criação do TRF da 6ª Região, com sede em Curitiba e jurisdição nos Estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, e do TRF da 7ª Região, com sede em Belo Horizonte e jurisdição nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

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Submetida à apreciação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o Relator, Senador Osmar Dias, apresentou parecer favorável, demonstrando, inclusive, que a iniciativa constante do Art. 96, II, c da CF não integraria o núcleo rígido da separação dos poderes, afastando qualquer suspeita de inconstitucionalidade da proposição.

Apresentadas duas Emendas de Plenário à PEC n. 29/2001, por meio do Parecer n. 1.464/2001, o Senador Osmar Dias aquiesceu com a criação do TRF da 8ª Região, com sede em Salvador e jurisdição nos Estados da Bahia e do Sergipe. Mais tarde, com o Parecer n. 116/2002, o mesmo parlamentar se pronunciou, outra vez, no sentido da aprovação da PEC, agora incluindo o TRF da 9ª Região, com sede em Manaus e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Pará, Amapá e Roraima. O Estado do Espírito Santo voltou a ficar vinculado ao TRF da 2ª Região.

Em 17 de abril de 2002 foi aprovado o substitutivo da PEC n. 29/2001. Com isso, a Proposta de Emenda recebeu nova numeração, sofrendo o acréscimo  do §12 tratando da instalação no prazo de seis meses, reproduzindo aquilo que já havia sido contemplado no §6º, além da disposição no sentido da observância do Art. 107, I e II da CF na composição dos Tribunais. Em 22 de maio de 2002, a PEC foi aprovada em 2º turno.

Encaminhada à Câmara, passou pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), figurando, agora, como Relator o Deputado Ibrahim Abi-Ackel. Este também se manifestou no sentido de que o artigo 96, inciso II, alínea c não obstaria a criação dos Tribunais diante da inexistência de ofensa ao princípio de separação dos poderes, estando a proposta, nos termos do seu Parecer, “em consonância com os princípios constitucionais do ‘acesso ao Judiciário’ e do ‘devido processo legal’”.

Lembrou que a técnica de redação da PEC carecia de aperfeiçoamento, pois a “matéria constante do §12 introduzido ao art. 27 do ADCT deveria constar de dispositivo da Emenda Constitucional e, não, (sic) estar inserida no texto constitucional”. Considerou que o § 12  tratou do prazo para instalação dos Tribunais e, portanto, em benefício da melhor técnica legislativa, nos termos inclusive do  que ensinam o Manual de Redação da Presidência da República e o Manual de Técnica Legislativa do Senado Federal, e considerando que temas provisórios não devem constar do texto permanente da Constituição Federal, sustentou que tal regra deveria residir no texto da própria Emenda Constitucional a ser promulgada, em um novo artigo. A Comissão Especial recebeu a PEC em 24 de junho de 2003, atuando como Relator o Deputado Eduardo Sciarra. Apresentadas emendas, foram elas rejeitadas pelo Relator que, ademais, retirou do texto a menção à forma de composição dos Tribunais, desnecessárias já que apenas reproduziam comando constitucional cuidando do assunto.

Aprovado o Parecer em setembro de 2003, converteu-se no substitutivo da PEC original. Em 13 de março de 2013, depois de um longo período dormitando, a PEC n. 544/2002 foi, finalmente, incluída na ordem do dia para ser votada, em primeiro turno, pela Câmara dos Deputados. Vencendo o substitutivo, ficaram prejudicadas as demais emendas e a proposta inicial. Em 03 de abril de 2013, já em segundo turno de votação, foi definitivamente aprovada. Dispensada a providência da redação final considerado o fato de que o texto aprovado não operou modificação substantiva da proposta original, foi enviada a proposição para a Mesa do Senado Federal, tendo sido a sessão de promulgação marcada para o dia 12 de abril de 2013.

A tramitação na Câmara dos Deputados observou à risca a normativa regimental. De acordo com o Art. 202, §§ 2º e 3º, as emendas às Propostas de Emenda à Constituição deverão ser apresentadas na Comissão Especial para análise de mérito, Comissão esta designada pelo Presidente da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania.[41] No caso, o Substitutivo do Relator, apreciado pela Comissão Especial, simplesmente conferiu maior precisão à redação, inocorrendo, diante disso, qualquer alteração de ordem substantiva na proposta.

Cabe altura, dizer algo a propósito do artigo 367 do Regimento Interno do Senado Federal, nos termos do qual, “Considera-se proposta nova o substitutivo da Câmara a proposta de iniciativa do Senado”. Ora, o dispositivo regimental desafia interpretação pertinente. Parece indiscutível que cuida das situações nas quais o substitutivo introduz alteração de ordem material, substantiva. Não incide, portanto, nas hipóteses em que o substitutivo providencia mera adequação de ordem formal, aperfeiçoando a redação, inclusive para melhor compreensão do conteúdo normativo já aprovado na Câmara iniciadora.

No caso,  reafirme-se, não houve qualquer alteração material que pudesse reorientar o sentido e a finalidade da PEC 544/2002. Ocorreu, na circunstância, insignificante mudança de redação para operar sintonia entre o texto da Emenda e o permanente da Constituição. Assim, não pode ser entendida como “proposta nova” a redação encaminhada pela Câmara dos Deputados.

Ademais, como medida de cautela, a Câmara dos Deputados encaminhou consulta ao então Presidente do Senado, Senador José Sarney, sobre a necessidade do retorno da PEC ao Senado Federal, no caso da supressão da parte final do § 12. Em resposta, o Senador manifestou-se nos seguintes termos:

“A supressão do dispositivo autônomo de proposta de emenda à Constituição pela outra Casa, sem que a matéria retorne à Casa iniciadora – seguindo portanto à promulgação –, é procedimento consagrado no processo legislativo sob a vigência da Constituição de 1988, já tendo merecido, inclusive, manifestação favorável do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIN n. 2.031-5 (DF). (...) Portanto, entendo que a supressão dos termos ‘observado, quanto à sua composição, o estabelecido nos incisos I e II do art. 107 da Constituição Federal’, por caracterizar-se como uma regra autônoma, não implicará o retorno da matéria à Casa iniciadora.”[42]

Como se vê,   não há “erro material” na supressão do §12, sendo a medida  incapaz de alterar, em termos concretos, a forma de composição dos novos Tribunais, continuando ela, aliás, após a manifestação da Câmara, naturalmente submetida ao especificado nos incisos I e II do art. 107 da Constituição da República.

 Nada de novo, portanto, foi aprovado na Câmara implicando alteração do conteúdo da proposição.

Diante disso, não cabendo ao Presidente do Senado o exercício do poder de veto, não há, agora, para ele, outro caminho senão aquele voltado ao integral cumprimento do contido no art. 60, § 3º. da Lei Fundamental da República, nos termos do qual “A Emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem”.  Aliás, neste particular, tratando-se de atribuição das Mesas, a nova Emenda Constitucional pode ser promulgada, eventualmente, mesmo sem a participação do Presidente do Senado Federal. O que não se pode admitir no Estado Democrático de Direito é a ação solitária do Presidente da Câmara Alta impedir a promulgação de uma Emenda Constitucional regularmente processada e aprovada pelos deputados e senadores no exercício do Poder Constituinte de Reforma. Aliás, neste particular, sustenta com absoluta pertinência o eminente constitucionalista José Adércio Leite Sampaio que “a falta de promulgação da PEC, essa, sim é uma atitude inconstitucional. A Constituição não equipara o ato de promulgar, solenidade de publicização dos enunciados normativos aprovados, à sanção presidencial, manifestação de aquiescência ao projeto de lei oriundo do Legislativo. Uma é condição de vigência do ato; outra é seu requisito de validade. Numa, a sanção, admite-se o controle de constitucionalidade preventivo, externado no veto; noutra, a promulgação, não. O eventual desatendimento por parte das Mesas do Congresso à manifestação soberana e qualificada dos congressistas é um desserviço à dignidade da própria Casa”.[43]

2.4. - Por fim, corrigindo um equívoco

O Presidente do Supremo Tribunal Federal, segundo noticia a imprensa, manifestando injusta contrariedade, teria afirmado que os novos Tribunais estariam sendo criados de modo “sorrateiro” e sem consulta ao Conselho Nacional de Justiça.[44] Calha, neste ponto, afirmar que não pode ser sorrateiro um processo legislativo que se arrasta por mais de dez anos, sempre com absoluta publicidade. Além disso, na república brasileira, como parece comezinho, o Poder Constituinte, observado o cerne da Lei Fundamental, continua residindo acima dos poderes constituídos, não precisando a eles se reportar, a não ser como medida de sabedoria política. O Judiciário, incluindo o Conselho Nacional de Justiça, está aí para dar cumprimento à Constituição. A consulta ao Conselho Nacional de Justiça, portanto, órgão aliás criado por Emenda Constitucional, exceto diante de iniciativa orientada pela virtude dialógica (alteridade) ou pela cortesia política (harmonia e cooperação), definitivamente não constitui requisito para a validade da manifestação do Poder Constituinte de Reforma, ainda quando esteja este a cuidar de matéria envolvendo o Judiciário. Ademais, o Conselho Nacional de Justiça não ficou alheio à tramitação da matéria, tendo mesmo tratado do tema em sessão realizada no dia 09 de fevereiro de 2010. Deveras, na 98ª Sessão Ordinária, ao apreciar o feito n. 0200511-29.2009.2.00.0000, como consta da respectiva Ata, o Conselho Nacional de Justiça aprovou proposta no sentido de encaminhar ao Congresso Nacional Nota Técnica para o fim de acelerar a criação dos quatro Tribunais Regionais Federais, tendo sido a proposta aprovada pela maioria dos Conselheiros presentes. É verdade, argumenta José Lucio Munhoz, que tal expediente (a Nota Técnica) jamais foi expedido, “mas isso não afasta o fato de que o Conselho não só oficialmente conhecia a proposta de criação dos quatro TRFs há mais de três anos, como também aprovava a sua criação, a qual deveria até mesmo ser ‘acelerada’, segundo a proposição formalmente aprovada em plenário e jamais revogada”.[45]

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Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Parecer sobre a possibilidade de criação dos Tribunais Regionais Federais por Emenda Constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3768, 25 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/25593. Acesso em: 22 dez. 2024.

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