IV - DO DIREITO
No circuito negocial do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), os mutuários se utilizam do serviço de crédito ofertado pelos Agentes Financeiros para compra de imóvel dos vendedores, sendo que a remuneração desse serviço é representada pelos juros incidentes sobre o valor do financiamento, sobre o qual também incide a correção monetária, a fim de se manter a equação financeira inicial do contrato.
A atividade dos Agentes Financeiros aí vislumbrada configura-se inequivocadamente como atividade ofertada e fornecida indistintamente ao mercado de consumo, mediante remuneração, qual seja, o empréstimo de determinada quantia de dinheiro, sobre a qual incidem juros (remuneração), e que deverá ser ressarcida pelo mutuário em prestações mensais, durante um determinado prazo. Enquadram-se perfeitamente, portanto, no conceito de fornecedor estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu artigo 3º e § 2º:
"Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Esse enquadramento como fornecedores, a que estão submetidas as Instituições Financeiras ofertantes do serviço de crédito remunerado em comento, já foi apontado pelos maiores juristas do país que, reunidos no II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, realizado em Brasília, no mês de março de 1994, assim concluíram:
" 8. O crédito e a poupança popular integram o conceito de serviço, nos termos do art 3º, § 2º, do CDC ". (in Direito do Consumidor, vol. 13, Editora Revista dos Tribunais, pág. 203).
Por sua vez, ao utilizarem-se do serviço remunerado de crédito ofertado pelos Agentes Financeiros no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação para aquisição de imóvel próprio, o mutuário final adquire a posição de consumidor - definida por aquele mesmo estatuto legal, em seu artigo 2º, como "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final" -, encerrando-se uma irrefutável relação de consumo.
Como bem pondera ARNALDO RIZZARDO, Juiz do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul,
"existe, no contrato de .financiamento da casa própria, uma prestação de serviços, dirigida a atividades a consumidores, isto é, aos que necessitam da casa para moradia. Trata-se de uma atividade que certos Bancos exercem, prestada ao público, desde que preenchidos alguns requisitos ou satisfeitas certas formalidades.
(...) Por ser dirigida ao público, ou oferecida a quem tem necessidade dela, cuida-se de uma relação de consumo
"("O Código de Defesa do Consumidor aplicado aos contratos regidos pelo Sistema Financeiro da Habitação", in Revista Ajuris, v. 60, pág. 46).
Cumpre salientar que ditas relações são firmadas através de contratos cujas cláusulas uniformes são dirigidas por Autoridade Governamental (Conselho Monetário Nacional) e preestabelecidas unilateralmente pelo Agente Financeiro, não se facultando ao mutuário a discussão e/ou modificação substancial do conteúdo já escrito.
Limita-se o consumidor-mutuário a aceitar em bloco as cláusulas pré-elaboradas, restando-lhe somente a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não podendo modificá-lo de maneira relevante, mesmo que as cláusulas ali apostas o coloquem em desvantagem financeira.
Não possui o mutuário nem mesmo a liberdade de escolher o seu parceiro contratual, já que muitas vezes o financiamento para a aquisição do imóvel já está previamente vinculado a determinado Agente Financeiro (como no caso de conjuntos habitacionais). Ou então, quando não há esse vínculo anterior, de nada adianta buscar outros Agentes Financeiros, pois os contratos por eles oferecidos terão, essencialmente, as mesmas cláusulas e condições, em virtude da unidade de atuação dessas entidades no âmbito do SFH, regulada pelo Conselho Monetário Nacional (art. 7º, III, Decreto-Lei 2.291/86).
Tratam-se de nítidos contratos de adesão, conceituados pelo artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor como aqueles "
cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo".Por assim se caracterizarem, é induvidoso que os contratos firmados no âmbito do SFH, a partir de 1º.03.91, sujeitam-se ao novo regime estabelecido pela Lei 8.078/90, estando submetidos à obediência incondicional dos princípios da transparência, da boa-fé objetiva, e da eqüidade contratual, bem como à proibição de cláusulas abusivas.
Frise-se que a obediência a esses preceitos estabelecidos expressamente pelo Código de Defesa do Consumidor é incondicional e independente de pacto contratual. É conduta obrigatória, originada de previsão constitucional e mandamento legal de interesse social, de ordem pública e caráter cogente, sendo inderrogável pela vontade das partes
ARRUDA ALVIM assim se manifesta sobre o assunto:
"Em decorrência do estabelecido no art. Iº, a normatização tratada no presente Código do Consumidor é de ordem pública e interesse social, de onde se infere que os comandos dele constantes são de natureza cogente, ou seja, não é facultado às partes a possibilidade de optar pela aplicação ou não de seus dispositivos, que, portanto, não podem ser afastados pela simples convenção dos interessados, exceto havendo autorização legal expressa ". (et alli, Código do Consumidor Comentado, 1995, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, pág. 16).
Ocorre, porém, que não obstante os expressos mandamentos legais insertos no CDC, que deveriam obrigatoriamente regular os contratos firmados a partir de Iº.03.91 pelos mutuários com os Agentes Financeiros no âmbito do SFH, estão esses consumidores, sem exceção, submetidos a práticas repudiadas por nosso ordenamento jurídico, originada de cláusula abusiva que desvirtua e desequilibra a relação contratual, impedindo a realização da função social que lhe é característica.
IV. I -Da Taxa Referencial Como índice de Correção Monetária dos Saldos Devedores
Desde a instituição do Sistema Financeiro de Habitação, através da Lei 4.380/64, estipulou-se que os contratos imobiliários firmados em seu âmbito conteriam cláusula de correção monetária dos saldos devedores, a fim de se guardar o seu valor real diante da defasagem sofrida em virtude da inflação.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, essa lei foi recepcionada como Lei materialmente complementar, por disciplinar o subsistema do Sistema Financeiro Nacional destinado à solução do problema habitacional que a décadas afeta o país.
Aliás, JOSÉ AFONSO DA SILVA ressalta a recepção da Lei 4.380/64 pela Carta Magna com novo e superior status hierárquico, ao tratar dos critérios de aplicação regionalizada dos recursos captados pelo Sistema Financeiro de Habitação que também são disciplinados por aquele estatuto legal. Em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo (l2º edição, 1996, Editora Malheiros, pág. 757) assim leciona:
" (...) tais leis são recepcionadas pela Constituição como materialmente complementares por se tratarem da matéria em causa. Assim, são, por exemplo, os critérios de aplicação regionalizada dos recursos arrecadados para o sistema financeiro da habitação (Lei 4.380/64, arts. 1O, § 3º, 11, § lº, 39, § Iº, e 55), os de regionalização de funcionamento de associações de poupança e empréstimo, conforme disposto no Decreto-Lei 70/66 (arts. Iº e 4º, § 2º), assim como os decorrentes de disposições da Lei 4.595/64, especificamente dos arts. 3º, inc. IV, e 29. A lei complementar, referida no texto, é, porém, de fundamental importância para sistematizar a matéria e dar concreção ao disposto no art, 3º, III, da Constituição. "
O artigo 5º e parágrafo 1º dessa Lei - frise-se que agora vigentes com status de Lei materialmente complementar, por força do disposto no art. 192 da Constituição Federal de 1988 - assim rezam:
" Art. 5º - Observado o disposto na presente lei, os contratos de vendas, os de construção de habitações para pagamento a prazo ou de empréstimos para aquisição ou construção de habitações poderão prever o reajustamento das prestações mensais de amortização e juros, com a conseqüente correção do valor monetário da dívida toda a vez que salário-mínimo legal for alterado.
§ 1º - O reajustamento será baseado em índice geral de preços mensalmente apurado ou adotado pelo Conselho Nacional de Economia que reflita adequadamente as variações no poder aquisitivo da moeda.
Percebe-se que a finalidade dessa cláusula de reajuste sempre foi, em todos os momentos e independentemente dos índices que foram adotados ao longo dos anos (ORTN, OTN, UPC, IPC), a de efetuar a mera atualização monetária do valor da dívida, ou seja, recompor o valor real do saldo devedor, permitindo a manutenção da equação financeira do contrato.
A interpretação das cláusulas de reajuste que se encontram insertas em todos os contratos firmados no âmbito do SFH não pode ser outra. Com efeito, uma vez sendo convencionado pelos mesmos instrumentos os juros que incidirão sobre o mútuo, que reflete o lucro, o ganho real a ser obtido pelo Agente Financeiro, não haveria razão para se inserir cláusula de "reajuste monetário da divida" se esta também buscasse auferir vantagens financeiras para o mutuante. Seria admitir a existência, em um único contrato, de duas cláusulas com os mesmos objetivos, o que certamente representaria um despautério.
A bem da verdade, admitindo-se que a aplicação de tal cláusula possa importar em aumento real do valor devido, e não a sua mera atualização nominal, é reconhecer-se a prática generalizada de anatocismo: a incidência de juros sobre juros. Isso porque sobre o valor do saldo devedor, ao qual já se teria imposto remuneração excedente à mera correção monetária (excesso este equivalente a juros não contratados), ainda incidem aqueles juros contratualmente previstos.
Diante disso, fica evidente que a conseqüência da efetivação dessas cláusulas de reajuste monetário da divida não pode ser outra senão a de mera atualização do valor nominal do saldo devedor, a recomposição do valor do capital diminuído em virtude da corrosão inflacionária.
Ainda, tendo-se em vista que o senso comum de "correção monetária" é aquele de reajuste do valor nominal da dívida em face da inflação, certamente é essa noção que guia o mutuário-consumidor ao acatar uma cláusula contratual pré-disposta, e que expressa tal finalidade. É esse sentido, inclusive, que consta do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,2º´ edição, Editora Nova Fronteira, pág. 483, verbete correção:
" correção. (... ) Correção monetária. Cont. Efeito da conversão dos históricos, em decorrência da modificação do poder aquisitivo da moeda ".
Daí ser aplicável ao caso o disposto no artigo 85 do Código Civil:
"art. 85 - Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem ".
Ocorre, porém, que não é isso o que vem ocorrendo nos contratos firmados no âmbito do SFH, ora em comento.
A resposta prestada pelo Banco Central do Brasil, enquanto Secretaria Executiva do Conselho Monetário Nacional, através do Oficio DEJUR 412/96 (doc. 03/b) já transcrito anteriormente, em atendimento ao expediente enviado pelo Autor através do Oficio PRDC/MT/R/nº 103-96 (doc. O3/a), bem demonstra que todos os contratos habitacionais firmados no âmbito do SFH, a partir de 1º.03.91 (data de entrada enl vigor da Lei 8.177/9l), sem exceção, e independentemente do Agente Financeiro mutuante, têm, efetiva e concretamente, os seus saldos devedores corrigidos pelo mesmo índice de remuneração dos depósitos da caderneta de poupança.
Ora, consoante o disposto nos arts. 12 da Lei 8.177/91, e 7º da Lei 8.660/93, o índice de remuneração da caderneta de poupança é a Taxa Referencial (TR), que sendo índice baseado nas variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não se caracteriza como índice de mera atualização monetária.
Seguindo conceituação adotada pelo Exmo. Sr. MOREIRA ALVES, ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, a correção monetária " é um número índice que traduz, o mais aproximadamente possível, a perda do valor de troca da moeda, mediante a comparação, entre os extremos de determinado período, da variação do preço de certos bens (mercadorias, serviços. salários, etc.) para a revisão do pagamento das obrigações que deverá ser feito na medida dessa variação. (..)É, pois, um índice que se destina a determinar o valor de troca da moeda. e que. por isso mesmo, só pode ser calculado com base em fatores econômicos exclusivamente ligados a esse valor. Por isso, é um índice neutro, que não admite, para seu cálculo. se levem em consideração fatores outros que não os acima referidos " (ADIN 493-O/DF, Rel. Ministro Moreira Alves, DJU de 04.09.92) (doc. 05).
É esse também o conceito de correção monetária adotado pela Constituição Federal, em vários de seus dispositivos que a ela se referem, conforme excelente estudo de CARLOS AYRES BRITTO, sob o título "O Regime Constitucional da Correção Monetária", publicado na Revista de Direito Administrativo, vol. 203, págs. 41/58:
" (... ) o objetivo constitucional é mudar o valor nominal de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro, para que essa mesma obrigação de pagamento em dinheiro não mude quanto ao seu valor real.
(... ) chegamos à percepção literal de que o reajuste periódico em que se elementariza a correção monetária (no plano das normas constitucionais permanentes) é instrumento de preservação do valor real de um determinado bem ...
(...) Esse valor real a preservar é sinônimo de poder de compra ou "poder aquisitivo", tal como visto na redação do inciso IV do art. 7´ da C.F., atinente ao instituto do salário mínimo. E se se coloca assim na tela da Constituição a imagem de um poder aquisitivo a resguardar, é porque a expressão financeira do bem juridicamente protegido passa a experimentar, com o tempo, uma deterioração ou perda de substância, por efeito, obviamente, do fato econômico genérico a que se dá o nome de inflação
(... ) De fato, a ocorrência da inflação é coisa que se faz sentir, ao menos no cotidiano brasileiro, pela desvalorização da moeda.E com tal desvalorização, os credores das prestações obrigacionais em dinheiro (são eles o alvo deste escrito) já não podem adquirir o que antes adquiriam O valor nominal, ou valor impresso da moeda já não corresponde ao originário valor real que ela possuía, e para a eliminação desse descompasso (defasagem) entre um valor nominal que se mantém inalterado e um valor real que se deprecia... é que tem especifica prestimosidade a correção monetária.
(...) nota-se que a correção monetária se caracteriza, operacionalmente, pela citada aptidão para manter um equilíbrio econômico-financeiro entre sujeitos jurídicos. E falar de equilíbrio econômico-financeiro entre partes jurídicas é, simplesmente, manter as respectivas pretensões ou os respectivos interesses no estado em que primitivamente se encontravam.
(... ) a agravação no "quantum" devido pelo sujeito passivo da relação jurídica não é propriamente qualitativa, mas tão-somente quantitativa. A finalidade da correção monetária, enquanto instituto de direito constitucional, não é deixar mais rico o beneficiário, nem mais pobre o sujeito passivo de uma dada obrigação de pagamento. É deixá-los tal como se encontravam, no momento em que se formou a relação obrigacional
Essa tem sido a conceituação adotada por nossos Tribunais, sendo válida a transcrição de trecho de acórdão unânime proferido pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em julgamento das Apelações Cíveis nº 94.0l.07830-O/DF, 94.01.11218-5/MT, 94.01.128510/BA, 94.01.19960-4/DF, 94.01.27637-4/MG, 94.01.28318-4/DF:
"A correção monetária nada acrescenta ao capital. Ela apenas tenta preservar o poder aquisitivo da moeda corroída pela inflação ". (DJU, S. II, 21.08.95, pg. 52747).
Foi diante desse entendimento que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADIN 493-0/DF, em 25.6.92, assim proclamou:
"A Taxa Referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda ".
O Sr. Ministro CELSO DE MELLO, ao proferir o seu voto nesse julgamento, salientou:
" Da qualificação jurídica da Taxa Referencial, como indexador do mercado financeiro de títulos e valores mobiliários - que se identifica, desse modo, como padrão referêncial que expressa a taxa média ponderada do custo da captação da moeda por instituição financeira para efeito de sua aplicação, e que não constitui, por isso mesmo, índice que exprima a variação do poder aquisitivo da moeda deriva a conseqüência necessária de que a TR não é índice de determinação do valor de troca da moeda. "
Em não sendo índice neutro, de mera atualização monetária, não poderia a Taxa Referencial ser utilizada como índice vetor dos reajustes dos saldos devedores dos contratos em comento, mesmo que sob a máscara do índice de remuneração dos depósitos da caderneta de poupança.
Em várias oportunidades, o TRF-1º Região já manifestou esse entendimento. No trecho final da ementa do Acórdão proferido no julgamento da AC nº 96.01.08361-8/BA, que teve por relator o Exmo. Sr. Juiz Tourinho Neto, lê-se:
" 8. Contrariamente ao que vinha entendendo esta Turma, não pode a TR reajustar os saldos devedores, o INPC é o índice adequado já que corresponde à variação do poder aquisitivo da moeda"(DJU, S. II, 17.05.96, pg. 31863).
Diante da Nota Técnica nº 010/95, de 30.05.95, fornecida pelo Assessor Econômico da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (Patrimônio Público e Social) do Ministério Público Federal, Sr. Carlos Alberto Oliveira Lima, a constatação do uso da Taxa Referencial no reajuste dos saldos devedores fica incontestável, até porque a ciência matemática não comporta dúvidas nas suas definições. No trecho final da parte descritiva dessa informação lê-se:
"O gráfico anexo auxilia na demonstração de que os índices (da TR e da caderneta de poupança) têm comportamentos similares, quase idênticos, é como se fossem gêmeos siameses. A TR serve, literalmente, de medida para a correção monetária da poupança.
Diante dessa constatação, não se diga que a correção praticada com base na poupança, de fato, não seja a mera aplicação dissimulada (e mal dissimulada) da Taxa Referencial. (doc. 06)
Percebe-se, portanto, que ao estipularem cláusulas de reajuste monetário da dívida vinculadas à Taxa Referencial via caderneta de poupança, os Agentes Financeiros ferem as disposições da Lei 4.380/64 que rege e disciplina o Sistema Financeiro de Habitação e o conteúdo dos contratos firmados em seu âmbito, violando as expressas disposições da Lei materialmente complementar à qual todas as suas atuações estão vinculadas.
Ao assim procederem, estipulam cláusulas contratuais contrárias a Lei, maculando-as com objeto ilícito não merecedores de qualquer guarida em um Estado de Direito Democrático.
Ademais, tendo-se em vista que o contrato firmado pelo mutuário-consumidor caracteriza uma nítida relação de consumo, a prática que aí se vislumbra, de aplicação da TR como índice de correção monetária, transgride também as disposições cogentes da Lei 8.078/90.
Com efeito, aplicar a Taxa Referencial sob o pretexto de "corrigir monetariamente" o valor do saldo devedor configura atitude afrontosa ao princípio da transparência que deve nortear toda a relação de consumo, expresso no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, bem como ao direito à informação adequada, clara e precisa do conteúdo do contrato, consagrado em seu artigo 6º, III.
CLÁUDIA LIMA MARQUES, em sua obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor, assim comenta o princípio acima mencionado:
" A idéia central é possibilitar uma aproximação e urna relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor. Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor ...
(...)
Como afirmamos anteriormente, transparência é clareza, é informação sobre os temas relevantes da futura relação contratual. Eis porque institui o CDC um novo e amplo dever para o fornecedor, o dever de informar ao consumidor não só sobre as características do produto ou serviço, como também sobre o conteúdo do contrato. Pretendeu, assim, o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor, pois sem ter conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações que estará assumindo, poderia vincular-se a obrigações que não pode suportar ou que simplesmente não deseja " (op. cit., 1995, 2º edição, Editora Revista dos Tribunais, págs. 206/207).
Portanto, uma vez estipulada cláusula de reajuste monetário da dívida, com a evidente finalidade de mera recomposição do valor nominal do saldo devedor, e em sendo aplicado, na realidade, índice diverso, que não reflete as variações do poder aquisitivo da moeda frente à inflação, como é a TR, não resta dúvidas que a completa transparência de tal cláusula, bem como a informação clara e precisa sobre a sua aplicação não foram atendidas, violando princípios e direitos básicos do consumidor previstos no CDC
Pela forma com que são redigidos os contratos padrão dos Agentes Financeiros do SFH, percebe-se ainda que infirmam nos mutuários-consumidores a convicção de que se trata de cláusula de atualização monetária, quando, a bem da verdade, o índice ali previsto, além de não estar expresso, não é aquele de mera correção nominal do valor da dívida.
Em todos os contratos firmados no âmbito do SFH a partir de 1º.3.91, que são padronizados por cada Agente Financeiro, verifica-se a utilização de expressões como "atualização " e "reajuste " naquelas cláusulas que tratam do saldo devedor do financiamento, expressões essas que denotam o sentido de recomposição do valor do capital frente ao processo inflacionário, frente ao aumento do custo de vida (docs. 07).
Porém, não sendo esses os seus efeitos reais, verifica-se que a própria redação das cláusulas dificultam a compreensão de seus sentidos e alcances, principalmente se levada em consideração a posição de vulnerabilidade fãtica e jurídica dos mutuários contratantes.
Diante dessas constatações, mostra-se imperativa a aplicação, ao caso, do disposto nos artigos 46 e 47 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 46 - Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.
Art. 47 - As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor ".
Face a tais disposições, de caráter cogente, forçoso é reconhecer a impropriedade da efetivação daquelas cláusulas constantes nos contratos em comento que prevêem a atualização monetária por índice que não espelha a perda do valor aquisitivo da moeda, como a TR, vinculada através dos "índices de remuneração dos depósitos da caderneta de poupança".
Seja pela afronta ao princípio da transparência (art. 4º), seja pela ofensa a direito básico do consumidor (art. 6º, III), ou ainda pela finalidade que é incita às disposições contratuais aqui em apreciação, a aplicação da TR no reajuste dos saldos devedores se configura prática contrária à lei de ordem pública, ofensiva ao ordenamento jurídico vigente e danosa ao consumidor, sendo absolutamente indevida a sua utilização.
Mas não só por esses fatores dita aplicação daTaxa Referencial se mostra ilegal.
No julgamento da ADIN 493-0/DF constatou-se que a utilização da TR como índice de reajuste monetário gera não só o aumento nominal, mas também o aumento real da dívida, o que faz com que os mutuários se responsabilizem por dívida muito maior que a existente, acaso os saldos devedores de seus contratos sejam dessa forma atualizados, causando uma constante sobrevalorização da obrigação, acarretando em enriquecimento indevido dos Agentes Financeiros e causando um desequilíbrio econômico do contrato danoso aos legítimos interesses do consumidor.
O Exmo. Ministro do STF MOREIRA ALVES, ao proferir o seu voto como Relator no julgamento da ADIN 493-0/DF, utilizando-se do Parecer da Procuradoria Geral da República, assim asseverou:
" A TR é um indexador para o mercado financeiro de títulos e valores mobiliários, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constituindo, portanto, índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Em período de plena estabilidade monetária, um indexador como a TR poderá certamente apresentar percentuais relativamente elevados, refletindo taxas de captação atrativas no mercado financeiro.
A Taxa Referencial reflete com propriedade a dinâmica presente no mercado do dinheiro, com as peculiaridades que lhe são próprias. Embora se pretenda convencer de que a remuneração real liquida esteja embutida nos dois por cento de dedução, nada assegura que outro componente incorpore apenas expectativa de inflação futura, uma vez que a motivação para a captação de recursos junto ao público comporta outras variáveis.
A atualização pela TR, em conseqüência, altera não apenas a expressão nominal, mas também o valor real das prestações... ".
Vale também ser transcrito o trecho conclusivo do voto do ilustre Ministro Otávio Galotti proferido nesse julgamento:
" Admiti, então, Sr. Presidente, e continuo na mesma convicção, que esta taxa, a chamada de Taxa Referencial ou TR, não pode ser considerada como simples fator de correção monetária
A correção monetária visa a corrigir, simplesmente, a expressão monetária da obrigação, preservando o seu valor intrínseco, ou seja, o valor aquisitivo da moeda.
Já essa taxa de referência, tal como definida no art. 1º da Lei 8.177, não possui a característica de neutralidade, própria do índice de correção monetária.
Seu cálculo baseia-se, exclusivamente, na avaliação do custo do dinheiro que é influenciado pela liquidez do mercado.
Não se presta, por isso, essa taxa, a servir de índice de atualização, porque não representa o custo de utilidade alguma, senão o próprio custo do dinheiro.
É meio de remuneração - disse eu então - e não de recomposição do capital. Por isso, não me parece ser meio idôneo para manter a equação financeira de um contrato... "
O desequilíbrio da equação financeira do contrato causado pela aplicação da TR fica incontestável se analisada a sua evolução no período de março/9l a julho/96, em comparação com o INPC do mesmo período. Conforme planilha de evolução de índices elaborada pelo Assessor Econômico da 5º Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (doc. 08), Sr. Carlos Alberto de Oliveira Lima, a TR mediu 13,04% a mais que o índice INPC, que representa unicamente a inflação do período.
Isso significa que as obrigações pactuadas foram sobrevalorizadas indevidamente em 13,04% acima do índice inflacionário, trazendo ônus excessivos e indevidos ao mutuário-consumidor, dificultando o seu adimplemento contratual.
Percebe-se que a equação financeira inicial do contrato não é mantida pela aplicação da Taxa Referencial, a título de "correção monetária". Pelo contrário, a utilização desse índice onera em demasia o mutuário-consumidor, trazendo vantagens econômicas exageradas ao Agente Financeiro, em detrimento do seu parceiro contratual.
Essa distorção e sobrevalorização do valor devido, quando reajustado pela TR, foi, inclusive, recentemente admitido pelo Presidente do Banco Central do Brasil, Sr. Gustavo Loyola, quando da edição da Resolução 2.265/96-CMN, ao afirmar que " todo mundo que tem dívida em TR paga mais ", consoante reportagem publicada no jornal Folha do Estado, no caderno de Economia do dia 29 de março de 1996, à pág. 8 (doc. 09).
É prática contratual incompatível com a boa-fé objetiva que deve reger as relações de consumo, expresso no artigo 4º, III, do CDC. Com efeito, ao tratar desse princípio, CLÁUDIA LIMA MARQUES salienta:
Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ´refletida´, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.
Em resumo, não deve o fornecedor do serviço abusar da sua posição contratual preponderante de poder impor ´normas´, cláusulas em relação com o consumidor, que façam este ter que suportar gastos desnecessários, destruam o seu patrimônio ou cláusulas que tentem obstruir, ou expor o consumidor à situação constrangedora, quando tenta simplesmente cumprir com suas obrigações contratuais ou adimplir " (in op. cit., págs. 79/88).
Ainda, em artigo publicado na revista Direito do Consumidor, sob o título "Os Contratos de Crédito na Legislação Brasileira de Proteção do Consumidor", pondera a mesma autora:
" A ação dos profissionais de crédito no mercado, suas práticas comerciais, a execução das cláusulas previstas nas condições gerais do negócio, não devem trazer prejuízos sem causa e inesperados aos consumidores, A confiança na atuação futura, na estabilidade do vinculo, na sua boa conclusão é uma confiança em última análise do direito, na eqüidade contratual, na força positiva do princípio da boa-fé (vol. 17, págs. 36/56).
Não se pode aceitar, portanto, a compatibilidade de cláusula que prevê o reajuste monetário da dívida pela TR com o princípio da boa-fé, se os seus efeitos oneram em demasia a obrigação, causam enriquecimento sem causa do mutuante, e dificultam o adimplemento contratual por parte do consumidor.
A aplicação dessa cláusula, ao dificultar o adimplemento das obrigações pelo mutuário, agride os seus legítimos interesses econômicos, restringe o alcance a melhoria de sua qualidade de vida, e desrespeita a sua dignidade, principalmente se levada em consideração as relevantes funções sociais contidas nos contratos imobiliários firmados no âmbito do SFH. É afronta explícita aos preceitos fundamentais da Política Nacional das Relações de Consumo dispostos no artigo 4º do CDC.
Em mesmo tempo, ao causar o rompimento da equação financeira do contrato, mostra-se a aplicação da TR violadora do princípio de eqüidade das relações de consumo, também expresso no art. 4º, III, do CDC.
Diante dessas considerações, caracteriza-se a cláusula que prevê o reajustamento monetário da dívida pela Taxa Referencial como abusiva, tornando-se nula de pleno direito, em consonância com o que dispõe o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade ".
Essa também foi a conclusão a que chegaram os maiores doutrinadores do país, no já citado II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor:
"1. É abusiva nas relações de consumo, a cláusula de correção monetária, estipulada nos contratos de execução deferida ou continuada, no que exceder a equivalência (original ou superveniente) das prestações ou lesar o equilíbrio econômico-financeiro contratual " (in Direito do Consumidor, vol. 13, Editora Revista dos Tribunais, página 203.
Se não bastante, existe ainda outro fator a ser considerado que caracteriza, de forma definitiva, a abusividade da cláusula contratual que determina o reajuste do valor devido pela TR.
Consoante disposição da Lei 8.177/91, a elaboração do cálculo da TR será feita com base nas informações fornecidas por algumas instituições financeiras, dentre as quais, necessariamente, as 10 (dez) maiores do país, classificadas pelo volume de depósitos a prazo fixo.
O Conselho Monetário Nacional estabeleceu a metodologia para esse cálculo através da Resolução nº 1.805, de 27.03.91. Dito ato sofreu posteriores alterações, que, no entanto, não alteraram o princípio básico anteriormente estabelecido para o cálculo da TR.
Referido normativo determinou que seria constituída amostra das 30 (trinta) maiores instituições financeiras do país, considerando-se, para tanto, o volume de captação de depósitos a prazo, entre bancos múltiplos com carteira comercial ou de investimento, bancos comerciais, bancos de investimento e caixas econômicas.
O Banco Central do Brasil efetuaria o cálculo da TR a partir da remuneração mensal média dos certificados e recibos de depósito bancário (CDB/RDB), emitidos pelas 20 (vinte) maiores instituições financeiras integrantes da amostra, designadas instituições de referência, levando em conta:
- taxa média de remuneração dos CDB/RDB´S;
- taxa média ponderada de remuneração; e
- um redutor, fixado por Resolução do CMN, fixado em porcentagem sobre a média ponderada, para eliminar os efeitos decorrentes da tributação e da taxa real histórica de juros da economia. Este redutor pode ser modificado, para adequá-lo a alterações na tributação e a eventuais variações na taxa de juros real da economia, desde que aprovado pelo Conselho Monetário Nacional.
Verifíca-se que a estipulação desse índice de remuneração, além de não levar em conta fatores que espelham a inflação do período, fica sob o alvedrio dos agentes da política econômica governamental, face ao redutor móvel previsto em sua metodologia de cálculo, cuja mudança, através de meros atos administrativos, traz reflexos sensíveis no valor de sua fixação e nos valores reais das dívidas vinculadas à Taxa Referencial.
Por si só, essa metodologia de cálculo prevista para a estipulação da TR mostra-se inconstitucional, conforme posicionamento adotado pela 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal nos autos do Processo PGR nº 08100.002554/95-41, que acolheu o entendimento esposado em representação elaborada pelos Procuradores Regionais da República neste Estado, através do Oficio PR/MT/MR/Nº165-95, cujos trechos valem ser transcritos:
"(...)
Como visto até aqui, é que os dispositivos legais já mencionados como sendo o art. 1º da Lei 8.177191, art. 11 da Lei 8.660/93 e art. 37, caput, e parágrafo único, delegam verdadeira norma em branco ao Conselho Monetário Nacional -CMN e ao Banco Central para fixarem a metodologia de cálculo da TR, dizerem quais as instituições integrantes da nova amostra constituída para fins de cálculo da TR e, ainda, permitir que o Banco Central, por simples Circular, altere e/ou revogue dispositivos da Resolução nº 2.097/94, do Conselho Monetário, mesmo que, sendo ato administrativo, ainda assim, não poderia o Bacen alterar norma que lhe é hierarquicamente superior.
Da mesma forma, não podem os artigos aqui elencados remeterem às Resoluções e Circulares assuntos normativos que constituam essencialmente matéria de lei, porque fere o princípio da Reserva Legal.
Inclusive, a forma de redação do artigo 37, "caput", e seu parágrafo único, da Lei 9.880/94, é equivocada quando pretende "facultar" às ditas autoridades monetárias a utilização de uma nova metodologia, que não as previstas no art. 1º da Lei 8. 1 77/91 e art. 1º da 8.660/93.
Além do mais, a pretexto de contenção do consumo, as alterações administrativas que vêm se operando pelo Bacen, a exemplo das Circulares 2.470/94 e 2.541/95, elevam sempre o custo do dinheiro tomado pelo Governo, como pelos mutuários dos mais diversos e fundamentais segmentos: agricultura, habitação, agroindústria, comércio, fazendo com que os negócios jurídicos celebrados sejam, em sua cláusula essencial em que se constitui o preço, profundamente alterado, trazendo desequilíbrio financeiro ao mutuário, tendo em vista a falta de previsibilidade que o contrato firmado está a ressentir-se, o que vem ferir, de igual modo, o equilíbrio contratual e o principio da igualdade, vez que onera sobremodo a capacidade de pagamento do mutuário ou do contratante e, por conseguinte, provocando enriquecimento sem causa à parte econômica mais forte.
Ai estão as crises, que, de maneira pública e danosa, refletem os efeitos desta política monetária imposta administrativamente pelo Bacen e CMN, que estão levando ao caos a sociedade brasileira e o próprio Tesouro Nacional que terá que aportar mais de US$ 3 bilhões de dólares americanos para pagar os juros aos agentes financeiros, à guisa da divida pública mobiliaria interna, só neste mês de maio, com reflexos negativos na política social do pais, esterilizando o seu crescimento e atingindo em cheio os setores da saúde, da educação, da segurança, dos transportes, da habitação, sem previsão de solução nem a médio prazo, haja vista a perversa evasão de recursos acima noticiado.
E isto está ocorrendo justamente por não estar insira nos dispositivos nos dispositivos citados a previsibilidade legal, ou seja, a definição legal da metodologia da TR para que seja aplicado aos contratos e demais segmentos do mercado financeiro, além de, no mérito, a cobrança da TR constituir índice econômico que está sobreposta ao juro estipulado no mercado financeiro, em outras palavras, a TR implica em juros sobre juros.
A inconstitucionalidade de tais dispositivos faz-se presente por permitir uma delegação absurda e surrealista, ao ver-se o próprio Banco Central alterando unilateralmente a Resolução do CMN, a hora que quer e bem entende, justamente por não haver previsão legal para tanto, inclusive não constando sequer a nova rnetodologia da exposição de motivos da Lei nº 8.660/93, conforme cópia anexa (doc. 10).
Portanto, há de haver na norma a previsibilidade da nova rnetodologia da TR, a fim de espancar todas as mazelas e inseguranças a que a sociedade está submetida, haja vista a falta de lei para definir a metodologia do cálculo da TR, vez que não pode ser alterada por resolução, nem circular, porque atos administrativos que não têm força de lei, no que ressalta patente a inconstitucionalidade dos dispositivos que conferem ao CMN e ao Bacen a mencionada delegação normativa, haja vista que só a lei cabe disciplinar a matéria aqui tratada, nos termos dos incisos II e XXXVI do art. 5º, XIX do art. 22, art. 37 caput, e 174 caput e parágrafo primeiro da CF, em razão de, através do art. 7º da Lei 8.660/93, a TR aplicar-se-á às cadernetas de poupança, com vigência a partir de maio de 1993.
Em assim sendo, requer a V. Exa, que seja argüida a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 8.177/91, art. 1º da Lei 8.660/93 e art. 37 "caput" e parágrafo único da Lei nº 8.880/94, e, por conseguinte, decretada a nulidade ou declarada a inconstitucionalidade da Resolução 2.097/94 do Conselho Monetário Nacional e Circulares 2.470/94 e 2.514/95 do Banco Central, pelas razões e fundamentos já expostos ". (doc. 10/a)
Ao acolher dita representação, assim manifestou-se o douto Relator, no trecho conclusivo de seu voto:
"(...)
Constata-se, aqui, haver o Poder Executivo, realizado o que não conseguiria por lei delegada o assentimento do Congresso nacional para que a estruturação da T.R, ficasse a exclusivo cargo dos escalões administrativos, do Poder Executivo, objetivando o mero consentimento antecipado do Poder Legislativo, para a real substancialidade da norma, a ser deferida pelos assessores do primeiro Poder, logo em seguida, se é que possível fosse, em tal caso, a delegação de Poderes, neste nível em exame.
(...)
Coerente nesta senda, tornando-se imperioso propalar a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 8. l 17, de 1º de março de 1991; do artigo 1º da Lei 8.660, de 28 de maio de 1992, e do artigo 37 "caput": e seu parágrafo único, da Lei nº 8.880, de 27 de maio de 1994, por afronta ao artigo 192, IV, da Constituição Federal, restabelecendo-se a lídima ordem constitucional, remetendo-se cópia deste parecer à mesa do Congresso Nacional, para adoção das medidas que entender pertinentes.
Brasília, DF, 25 de setembro de 1995 " (doc. l0/b)
A despeito disso, percebe-se que a vinculação do reajuste dos saldos devedores ao índice da Taxa Referencial traz manifesta insegurança jurídica ao mutuário-consumidor, já que o valor de sua obrigação fica sujeito a alterações reais, dependente da política econômica adotada pelo Conselho Monetário Nacional.
Vale dizer, o mutuário nunca saberá com precisão o que representa a sua obrigação, já que o seu saldo devedor sofre constantes aumentos reais em seu valor, em virtude da aplicação da TR, que não possui critério objetivo e estável de sua fixação.
Diante disso, sempre que há alteração do redutor da Taxa Referencial, há reflexos da mesma proporção nos valores reais dos saldos devedores dos contratos habitacionais firmados no âmbito do SFH .
Basta analisar as recentes Resoluções 2.265/96 e 2.291196 do Conselho Monetário Nacional, onde se observa a diminuição progressiva do redutor "R" da Taxa Referencial, cujo reflexo afetará os contratos que tem os seus saldos devedores atualizados por aquele índice (via caderneta de poupança), fazendo com que essa atualização gere uma sobrevalorização da dívida superior ao percentual de 1,9% em termos reais (doc. 11) no primeiro caso, e de cerca de 6% no segundo caso, considerando-se o período compreendido de dezembro de 1996 a dezembro de 1997, acaso permaneça o redutor em 0,85% (doc. 12).
Todavia, como a tendência do redutor é de declínio, a fim de permitir a queda nominal dos juros, essas referidas diminuições do redutor trarão, como conseqüência, um incremento real do saldo devedor significativamente muito superior ao índice de inflação que, como índice neutro, de mera reposição do valor do capital, deveria nortear as atualizações dos valores contratados no âmbito do SFH.
Com efeito, válido é lembrar que, quando da edição da Resolução 2.097/94, o redutor da TR foi fixado em 2%. Em menos de um ano, diminuiu para 1%, aumentando em 12,68% os juros, projetados em 12 meses, a partir da mudança do redutor. Em outubro de 1995, subiu para 1,3%, e agora nos próximos seis meses, diminuirá progressivamente até alcançar 0,85% no mês de dezembro, sem contar que, com a adoção da política de diminuição nominal dos juros, o redutor chegará possivelmente a zero, a fim de igualar-se com a Taxa Básica Financeira, criada pelo art. 5º da MP 1.053/95.
Tal fato se confirma diante do disposto no art. 2º da Resolução 2.265/96-CMN, haja vista que ante a possibilidade desta diminuição do redutor alcançar zero porcento, vislumbra-se um aumento real da Taxa Referencial de até mais 12,94%, totalizando um acréscimo real de 26,82%, o que afeta na mesma proporção, as dívidas vinculadas a esse índice, que, in casu, são os saldos devedores dos mutuários que possuem contratos habitacionais firmados com os Agentes Financeiros, a partir de 1º.03.91.
As conseqüências que a Resolução 2.265/96-CMN produzirão nas obrigações atreladas à Taxa Referencial, e que evidenciam a impropriedade de sua aplicação, foram objeto de Nota Pública divulgada pela FAMMESP, em 29 de março de 1996, onde se lê:
"A FAMMESP repudia a decisão do Conselho Monetário Nacional, que em reunião 28/03/96, decidiu diminuir o redutor da T.R..(Taxa Referencial), pelos seguintes motivos:
- O C.M.N. altera mais uma vez os contratos de mutuários de forma unilateral;
- Elevar a dívida dos mutuários, agricultores, e todos aqueles que possuem financiamento corrigido pelos índices de poupança (T.R);
- Sangra os cofres da União com o aumento do rombo do F.C.V.S. (Fundo de Compensação de Variações Salariais) cujos mutuários pagam uma taxa de 3% deste seguro + 3% da taxa de administração para não ter resíduo, porém é mal administrado pela CEF, e ao término dos contratos terão que ser pagos aos Agentes Financeiros com o dinheiro público;
- O governo de forma irresponsável com esta decisão está agravando o índice de inadimplência do SFH e dos demais segmentos que possuem financiamento corrigidos pela TR;
- Finalizando, o CMN afronta o Poder Judiciário que em todas as suas instâncias já considerou ilegal a utilização da TR no SFH, sem falar que o Poder Legislativo Federal já opinou neste sentido" (doc. 13)
A insegurança jurídica que a aplicação da TR acarreta aos contratos por ela reajustados, via caderneta de poupança, bem como os prejuízos que ela impõe ao patrimônio público já haviam sido objeto de manifestação da Coordenação Nacional dos Movimentos dos Mutuários, através de Nota Pública divulgada em 06.06.1995, que adota os seguintes posicionamentos:
c) Denunciar a manutenção da TR como índice de correção monetária das dívidas do Sistema Financeiro de Habitação notadamenle nos contratos habitacionais, à incrementar a inadimplência e o rombo do FCVS, assegurando vergonhosamente a sangria dos cofres públicos em favor dos agentes fínanceiros, promovendo de forma genérica a insegurança jurídica dos contratos firmados..
d)Reafirmar a ilegitimidade da sistemática de atualização dos saldos devedores por índices diferenciados do PES praticada pelos agentes financeiros, denunciando-a como fonte geradora de créditos espúrios destes, junto ao Tesouro Nacional. (doc. 14)
Impõe-se revelar que as ponderações e constatações acima esposadas são corroboradas e confessadas pelo Banco Central do Brasil que, em respostas aos Ofícios encaminhado pelo Autor ao seu Presidente (doc. 15-a), requisitando informações acerca dos reflexos que a diminuição do redutor "R" da Taxa Referencial produzirá nos saldos devedores dos mutuários do SFH e nas obrigações de responsabilidade do FCVS, bem como acerca da perspectiva do limite mínimo da diminuição desse redutor, assim informou, em Oficio datado de 19 de abril de 1996:
2. A propósito, informo que a respeito da alínea a do mencionado oficio, o Departamento de Normas - DENOR - desta Autarquia se pronunciou da seguinte forma:
"A alteração do redutor da TR buscou recuperar a rentabilidade histórica dos depósitos de poupança, bastante prejudicada pelas sucessivas quedas verificadas nas taxas de juros, e dar maior competitividade desse ativo perante os demais ativos disponíveis no mercado financeiro. Por outro lado, e em razão da correção de todos os saldos devedores dos financiamentos habitacionais estarem atrelados ao rendimento dos depósitos de poupança, o impacto provocado pela alteração da TR nesses saldos refletirá a mesma variação percentual ocorrida na remuneração de tais depósitos."
3. Quanto à indagação constante na alínea b do citado oficio, assim se manifestou a Área Técnica competente:
"A metodologia de cálculo da TR estabelecida pela Lei nº 8.177, de 01. 03.91, normatizada pela Resolução nº 2.097, de 27.07.94, não fixou valores máximos ou mínimos de variação para o redutor "." (doc. 15-b)
Tendo-se em vista que o valor do saldo devedor representa o preço do contrato, a aplicação da Taxa Referencial, submetida a alterações por esses redutores e gerando um aumento real da dívida, configura-se em variação a maior da obrigação contratada, também com repactuação dos juros, tudo à revelia do mutuário-consumidor.
Perante essas características da Taxa Referencial, que lhe são inafastáveis, a cláusula que prevê a sua utilização como índice de correção monetária do valor do saldo devedor mostra-se abusiva também em virtude da norma cogente inserta no art. 51, X, do CDC:
" Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral ".
Cabe ressaltar que esse foi o entendimento adotado pelo Exmo. Sr. Ministro do STF PAULO BROSSARD, no julgamento da ADIN 493-0/DF, já citado anteriormente:
" Ora, não é necessário exame profundo para concluir que a remuneração em causa não será equivalente à correção monetária, mas há de ser superior a ela. Por conseguinte, aplicar a TR como sucedâneo da correção monetária (... ) importaria em agravar as obrigações pactuadas de maneira unilateral. Tenho como certo que a TR, prevista no art.1º da Lei 8.177, não é e não pode ser tomada como índice de correção monetária É claro que na taxa referencial estará contida a correção, mas, à evidência, transcenderá o seu índice, por isso não pode ser sucedâneo da correção. "
Também é essa a opinião de ARNALDO RIZZARDO, esposada em seu livro Contratos de Crédito Bancário:
" O mutuário nada discute. Ao contrato e às formas de reajuste subordina-se, aderindo às condições já traçadas. (...) Embora contenha o instrumento a fórmula de reajuste, os índices são atos que ficam ao sabor dos acertos e desacertos das autoridades governamentais. Balançam segundo a evolução da crise econômica. Dai que há uma unilateralidade no estabelecimento dos percentuais de reajuste ". (in op. cit., "Crédito Imobiliário", 1994, 2º edição, Editora Revista dos Tribunais, págs. 96/97).
Diante do acima exposto, revelando-se manifestamente abusiva a cláusula que prevê o reajustamento dos saldos devedores dos contratos em comento pela TR, via "índice da caderneta de poupança", vem o Autor requerer seja decretada a sua nulidade, a fim de que sejam respeitados os direitos básicos do consumidor insculpidos no CDC, bem como os princípios fundamentais das relações de consumo ali expressos, que vem sendo constantemente violados pelos Agentes Financeiros do SFH, sem que haja qualquer amparo legal para tanto.
IV.2 - Da Nulidade do art. 19 do Regulamento Anexo à Resolução 1.980/93-CMN
Conforme as informações prestadas pela Secretaria Executiva do Conselho Monetário Nacional, através do Oficio DEJUR-412/96 (doc. ..) já anteriormente transcrito, a norma que disciplinava e autorizava a estipulação de cláusula contratual de reajuste do valor do saldo devedor pela Taxa Referencial, para os contratos firmados no período de 1º.3.91 a 29.04.93 era o item XVI da Resolução nº 1.446/88-CMN (doc. 16), que possuía a seguinte redação:
" XVI - Os saldos das operações de financiamento imobiliário, de que trata esta Resolução, terão cláusula de atualização vinculada aos índices de atualização dos depósitos de poupança. "
A partir de 30.04.93, o art. 19 do Regulamento anexo à Resolução I.980/93-CMN (doc. 17) é que passou a regular tais disposições, sendo este o normativo que tem sido observado pelos Agentes Financeiros para os novos contratos firmados no âmbito do SFH:
" Art. 19 - Os saldos devedores dos contratos de financiamento, empréstimo, refinanciamento e repasse concedidos por entidades integrantes do SFH serão ajustados pela remuneração básica dos depósitos de poupança, efetuada na mesma data e com a periodicidade contratualmente estipulada para o pagamento das prestações, aplicando-se o critério "pro rata die" para eventos que não coincidam com aquela data."
Ocorre que desde 1º de fevereiro de 1991, por força da MP nº 294, posteriormente convertida na Lei 8.177/91, e por força do agora disposto no art. 7º da Lei 8.660/93, o índice que remunera os depósitos da caderneta de poupança é a Taxa Referencial (TR). Ou seja, todos os contratos ora em questão têm inserida cláusula de "correção monetária" do valor da dívida (saldo devedor) subrepticiamente vinculadas à TR, que não é índice que reflete a desvalorização da moeda frente à inflação.
Vale dizer que mesmo com a vigência do Código de Defesa do Consumidor, que impôs, por normas de ordem pública, um novo regime contratual a toda e qualquer relação de consumo, a União Federal, a quem cabe a defesa do consumidor, manteve determinações que vão de encontro aos princípios e objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo, traçadas pela Lei 8.078/90, por decorrência de expressa determinação do legislador constituinte (art. 5º, XXII, e art. 48 do ADCT).
E mais, ratifica a violação aos direitos básicos do consumidor, editando a Res. 1980/93-CMN que repete o disciplinamento de atualização monetária dos saldos devedores pela TR, via caderneta de poupança.
No entanto, nenhum desses atos administrativos normativos possuem validade em nosso ordenamento jurídico face a vigência do Código de Defesa do Consumidor, não possuindo o condão de legitimar a estipulação de cláusulas contratuais abusivas firmadas pelos Agentes Financeiros e os mutuários-consumidores.
Com efeito, o item XVI da Res. 1446 perdeu toda a sua validade e eficácia em 11.3.91, data de começo de vigência do CDC. Isso porque dito normativo, veiculado por ato infralegal, possuía regramento que passou a ser absolutamente incompatível com a lei de ordem pública e de interesse social que naquela data passou a vigorar, já que a cláusula por ele disciplinada - e estipulada pelos Agentes Financeiros - passou a ser considerada abusiva e, portanto, nula de pleno direito.
Mesmo se semelhante regramento estivesse veiculado em lei ordinária, não se teria fundamento válido para a estipulação de tais cláusulas nos contratos do SFH, já que também seria norma incompatível com o Código de Defesa do Consumidor, ficando revogada, segundo o teor do disposto no art. 2º, § 1º da Lei de Introdução do Código Civil.
Assim, não existe qualquer fundamento que justifique o fato de os contratos firmados entre 1º.3.91 e 29.4.93 possuírem cláusula que determine o reajuste do valor da dívida pela TR, mesmo que mascarada pelo índice de remuneração da poupança.
Do mesmo modo, não há guarida para tal previsão nos contratos firmados a partir de 30.4.93, data de edição da Resolução 1.980/93-CMN.
Nesse tempo, já haviam se passado mais de 2 anos da entrada em vigor do CDC, mas ignorando o ali imposto, a Ré União Federal, através do Conselho Monetário Nacional, ressuscitou a disposição do item XVI da Res. 1446/88, disciplinando no art. 19 da nova Resolução que os saldos devedores dos contratos firmados pelos mutuários-consumidores fossem corrigidos pelo mesmo índice de remuneração básica da caderneta de poupança, ou seja, pela Taxa Referencial.
Ora, já foi abundantemente exposto e comprovado que o reajuste monetário dos saldos devedores pela Taxa Referencial, via índice da caderneta de poupança, é prática abusiva, repudiada pelo ordenamento jurídico.
É conduta cuja previsão contratual é reprovada e proibida pelo Código de Defesa do Consumidor, que, repita-se, estatui normas cogentes, de ordem pública, que vinculam não só as partes envolvidas diretamente na relação de consumo, mas também o Poder Público quando adota medidas de caráter dirigista.
Ao editar medidas de política econômica, através de atos administrativos, que regulam e interferem nas relações de consumo firmadas entre os Agentes Financeiros e os mutuários-consumidores do SFH, não poderia a Ré União Federal, enquanto CMN, afastar-se dos objetivos traçados no artigo 4º do CDC e dar causa à violação de direitos básicos do consumidor submetida que está ao atendimento do disciplinado e almejado por aquela lei.
Pelo disposto no art. 4º caput, e inciso II da Lei 8.078/90, em harmonia com o art. 170, V, da Constituição Federal, se infere que a intervenção estatal no mercado de consumo não pode ser prejudicial à parte reconhecidamente vulnerável. Pelo contrário, é dever do Estado, e garantia constitucional, a proteção do consumidor.
Válido é trazer a colação lição do Prof. JOÃO BOSCO LEOPOLDINO DA FONSECA:
" A defesa e proteção dos interesses econômicos dos consumidores passam, a teor do disposto no artigo 4º, agora focalizado, a fazer parte integrante da política econômica a ser adotada e implementada pelo Estado. Estabelece-se uma política nacional de relações de consumo com um objetivo determinado: encarrega-se o Estado de promover o atendimento das necessidades do consumidor.
Assim, as relações de consumo passam a fazer parte integrante da atuação do Estado, como responsável pela concretização da ordem pública econômica de proteção.
Assim, o Estado torna-se presente no mercado de consumo para exercer efetivamente uma ação governamental de proteção do consumidor. " (in Cláusulas Abusivas nos Contratos, 1995, 2ª edição, Editora Forense, pág. 178).
Posicionamento idêntico é o adotado por FÁBIO NUSDEO, ao comentar o art. 4º do CDC:
" O Código de Defesa do Consumidor abre um novo campo para a política econômica ao falar, não em política de consumo expressão já conhecida e correspondente, também, a uma prática já conhecida -, mas em política de relações de consumo (...)
(...) A lei pretende imprimir determinadas características a tais relações, a fim de que elas possam apresentar um nível de qualidade tido como favorável, principalmente a uma das partes nela envolvidas: o consumidor. Isto não significa, é claro, que a contrariu sensu tal relação deva ser desfavorável à outra parte: o fornecedor. Este dela derivará a sua remuneração própria: o lucro, condicionado porém ao atendimento de certos requisitos, cujo espaço é, precisamente, o de evitar seja ele obtido com o sacrifício injustificado do consumidor.
(... ) Ao impor certos padrões para as relações de consumo o escopo é o mesmo, isto é, implantar um maior equilíbrio entre consumidor e fornecedor, afim de que o lucro deste não decorra de um custo extra imposto àquele, vale dizer, o custo para o consumidor deverá transparentemente corresponder ao preço do bem ou do serviço oferecido e não implicar componentes outros que, de forma indireta ou até mesmo disfarçada, o elevem, como seria o caso de riscos ou malefícios trazidos pelo produto adquirido. Claramente, não se trata de fixar o preço dos bens, mas de fazer com que este exprima a totalidade do custo incorrido pelo consumidor no ato de atendimento de sua necessidade de consumo." (grifamos) (et alli, in Comentários ao Código do Consumidor, Coord. por José Cretella Júnior e René Ariel Dotti, 1992, Editora Forense, págs. 20/21).
Desse modo, ao determinar a inclusão de cláusula contratual que viola direitos do consumidor, onera em demasia as obrigações por ele contraídas, dificultando os seus adimplementos, de forma a agredir os seus legítimos interesses econômicos e restringir o acesso à melhores condições de vida, incorre a Ré União Federal em manifesto desvio de poder, por desobediência inequívoca aos preceitos estabelecidos por lei de ordem pública, o Código de Defesa do Consumidor, atropelando o princípio da legalidade que deve pautar todas as suas atividades.
Deve ser lembrado que o principio da legalidade é um dos sustentáculos fundamentais do Estado de Direito. Nele reside a garantia da justiça social e da liberdade dos indivíduos, explicitando a subordinação da atividade administrativa aos fins almejados pela lei, de modo a afastar a possibilidade do uso arbitrário e lesivo dos poderes administrativos.
O saudoso mestre HELY LOPES MEIRELLES ensina que:
A legalidade, como principio de administração (CF, art 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade.funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso,
A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei.
Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é licito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa "pode fazer assim "; para o administrador público significa "deve fazer assim" (in Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, 1995, Ed. Malheiros, 20ª ed., págs. 82/83).
No entanto, não basta seguir a liberalidade da lei. É necessário fazer com que os fins por ela almejados sejam alcançados e concretizados, sem o que o princípio da legalidade não terá sido obedecido.
Como bem salienta o Prof. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,
" não se compreende uma lei, não se entende uma norma, sem entender qual o seu objetivo. Donde, também não se aplica uma lei corretamente se o ato de aplicação carecer de sintonia com o escopo por ela visado. lmplementar uma regra de Direito não é homenagear exteriormente sua dicção, mas dar satisfação a seus propósitos. Logo, só se cumpre a legalidade quando se atende sua finalidade. Atividade administrativa desencontrada com o fim legal é inválida e por isso judicialmente censurável. " (in Elementos de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, 1992, 3´ ed., pág. 27)CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA muito bem pondera:
A Administração Pública tem como finalidade fazer com que os efeitos determinados pelas normas jurídicas se concretizem. Por isso, a atividade administrativa é função, ou seja, por ela se faz ´funcionar´ a norma jurídica, que, quando de sua produção, põe-se estaticamente e ainda sem vida efetiva. É apenas um instrumento, que somente cumpre a finalidade quando operacionalizada.
A aplicação do principio da juridicidade administrativa tem o seu conteúdo marcado pela adequação perfeita entre o quanto posto no Direito e o quanto realizado pela entidade competente na seqüência daquela disposição.
Entre a hipótese prevista no sistema jurídico e a realização da previsão há que haver uma relação de harmonia que confira unidade à ação estatal - legislar e administrar segundo o que se tenha legislado (aqui no sentido de criação da lei e não apenas de formalização da lei).
A relação de juridicidade administrativa implica, pois, em que o Direito tem que ser o mesmo, seja no momento em que se põe pela norma, quando ele se positiva pelo Estado, seja quando ele é concretizado em seu conteúdo, transformando-se em ação do Direito (Administração), o que inicialmente é uma formulação do Direito (Legislação). " (in Princípios Constitucionais da Administração Pública, 1994, Belo Horizonte, Editora Del Rey, pág. 83).
Porém, como visto, a Ré União Federal, enquanto Conselho Monetário Nacional, não tem se atentado ao cumprimento do disposto na lei de ordem pública que regula as relações de consumo, ainda defendendo e ratificando sua conduta desobediente de deveres e princípios expressos na Constituição Federal.
Com efeito, o artigo 170, V, da Carta Magna assim dispõe:
" Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
V - defesa do consumidor"
Uma vez consagrado constitucionalmente como princípio expresso da Ordem Econômica, não poderia qualquer Poder do Estado, sob qualquer pretexto, realizar atos que vão de encontro aos legítimos interesses e direitos básicos do consumidor.
Ao interferir nas relações de consumo firmadas no âmbito do SFH, não pode o Conselho Monetário Nacional disciplinar e autorizar condutas que importem em agressão ao consumidor-mutuário, principalmente se é seu dever constitucional agir de forma contrária, ou seja, zelar pela proteção da parte vulnerável da relação.
Diante desse princípio constitucional, nem mesmo o Poder Legislativo poderia disciplinar condutas que acarretem em ônus injustificados, exagerados e danosos aos mutuários-consumidores, sob pena de se macular a Lei com o vício insanável de inconstitucionalidade que lhe ceifaria qualquer validade e eficácia jurídica.
Como bem pondera o já citado Prof JOÃO BOSCO LEOPOLDINO DA FONSECA, "
o artigo 4º da Lei 8.078/90 é o elo de ligação das medidas concretas de proteção nela estabelecidas com o inciso V do artigo 170 da Constituição Federal. Se os princípios direcionadores da ordem econômica brasileira adotados pela Constituição têm como finalidade impulsionar, coordenar e controlar a política econômica, o inciso V, que impôs ao Estado adotar uma política de defesa do consumidor, levou o legislador, no artigo 4º agora analisado, a traçar os parâmetros norteadores da efetivação dessa defesa.É, pois, através desse contexto de estreita ligação entre o tópico constitucional e o legal que toma significação o controle das cláusulas abusivas. Somente um controle efetivo nesse campo tornará viável a defesa do consumidor, objetivo final da política econômica que tem o encargo de implantá-la " (in op. cit., pág..178).
Ademais, em sendo a defesa do consumidor princípio constitucional, mostra-se de grande valia a lição de CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA:
" Os princípios constitucionais são predeterminantes do regramento jurídico. As decisões políticas e jurídicas contidas no ordenamento constitucional obedecem a diretrizes compreendidas na principiologia informadora do sistema de Direito estabelecido pela sociedade organizada em Estado.
(...) A norma que dita um principio constitucional não se põe à contemplação, como ocorreu em períodos superados do constitucionalismo; põe-se à observância do próprio Poder Público do Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e da qual participam.
... ) Não permite ele que se fixem políticas governamentais, que se ponham normas infraconstitucionais ou modelos normativos de qualquer espécie contrários ao conteúdo que nele se encerra e por ele se busca realizar.
(...) A vinculabilidade dos princípios constitucionais exprime o vigor jurídico de que se revestem, a determinar que todas as regras do sistema constitucional, bem como todas as normas que compõem o ordenamento jurídico, se liguem ao quanto principiologicamente definido.
(...) A vinculação dos princípios constitucionais não se acomoda ou se restringe ao legislador infraconstitucional, senão também nos governantes, juizes e cidadãos de uma sociedade política. Na verdade, os princípios constitucionais positivam-se como normas que direcionam não apenas outras normas, mas todos os comportamentos estatais e até mesmo particulares.
(...) A aderência dos princípios constitucionais é a característica que enfatiza a sua vinculabilidade. Corolário lógico e necessário desta qualidade, o predicado da aderência que caracteriza os princípios constitucionais impossibilita que qualquer regulamentação jurídica qualquer comportamento institucional do Estado ou individual dos membros da sociedade política excepcionem-se das diretrizes vinculantes neles traçadas. Os princípios constitucionais marcam o sistema jurídico de um Estado, demonstram-se em cada norma que nele se introduza, apresentam-se esclarecendo o modelo básico adotado como Direito e ostentam o ideário social e a ideologia jurídica a realçar o conteúdo e forma de Justiça concretamente buscada.
Não há comportamento desconforme ou incompatível aos princípios constitucionais que encontre guarida na validade do Direito de um Estado Democrático... " (in op. cit., págs. 25/41).
Se não bastante a inobservância e o desrespeito a lei de ordem pública e a princípio constitucional no qual incorre o art. 19 do Regulamento anexo à Resolução 1.980/93, resta ainda outro vício seu a ser apontado, também resultante de afronta a texto expresso de lei.
Consoante disposição do artigo 5º e seu § 1º, da Lei 4.380/64, que rege o Sistema Financeiro da Habitação, e que possui na atual ordem jurídica status de lei materialmente complementar, o reajustamento do valor monetário da dívida "
será baseado em índice geral de preços... que reflita adequadamente as variações no poder aquisitivo da moeda".Como já foi extensamente demonstrado, a Taxa Referencial (TR), vinculada através da caderneta de poupança, não constitui índice que reflita tal variação, não estando a sua estipulação e aplicação no reajuste dos saldos devedores dos contratos ora tutelados em conformidade com os mandamentos legais.
Não se cogite que um ato administrativo possa ter revogado o estabelecido na Lei-Mestra do SFH, pois as resoluções, portarias, regulamentos e demais atos editados pelo Executivo não podem ser considerados lei em sentido formal, não possuindo força para revogarem uma norma hierarquicamente superior e à qual devem estrita obediência. Ademais, in casu, nem mesmo a lei ordinária poderia pretender estabelecer regramento diferente ao estipulado em lei materialmente complementar, sob pena de se ferir a hierarquia das normas que dá sustentação e segurança ao ordenamento jurídico.
Dessa forma, o ato administrativo em questão revela-se em desacordo até mesmo com o subsistema normativo no qual se insere, não se podendo reconhecer-lhe qualquer validade e eficácia que legitime a estipulação e aplicação de cláusula contratual manifestamente abusiva pelos Agentes Financeiros que atuam no Sistema Financeiro de Habitação.
Pelo exposto, evidenciado que o resultado da aplicação do art. 19 do Regulamento anexo à Resolução 1.980/93-CMN importa em violação do Código de Defesa do Consumidor e da Lei 4.380/64, e que os fins por ele almejados são contrários aos previstos implicitamente na regra de competência do CMN, face à previsão do art. 4º da Lei 8.078/90, do art. 5º, § 1º da Lei 4.380/64, e do art. 170, inc. V, da CF/88, mostra-se patente a ilegalidade do objeto e o desvio de finalidade do ato administrativo normativo ora guerreado, razão pela qual é nulo de pleno direito, consoante expressas disposições da Lei 4.717/65, em seu artigo 2º, devendo assim ser declarado pelo Poder Judiciário.