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Invasão de prefeitura por sem-terra: apelação criminal

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IN DUBIO PRO RÉU

Ainda, incumbe-nos destacar o princípio "in dubio pro reu". A jurisprudência afirma que, havendo dúvidas acerca da participação do acusado nos fatos descritos, de regra a absolvição.

"Absolvição pelo princípio "in dubio pro reu" – TJRS: "Aplicação do princípio "in dubio pro reu". Autoria pelo apelante sinalizada como mera possibilidade. Tal não é o bastante para a condenação criminal, exigente de certeza plena. Como afirmou Carrara, ‘a prova, para condenar, deve ser certa como a lógica e exata como a temática’. Deram parcial provimento. Unânime. (RJTJERGS 177/136). In MIRABETE, Julio Fabrini, Código de Processo Penal Interpretado, 6ª edição, editora Atlas, pág. 497.


DA IMPOSSIBILIDADE DO CRIME DE EXTORSÃO

Quanto ao crime de extorsão previsto no art. 158, § 1º, do Código Penal. Ora, o Promotor de Justiça servidor da lei que defende os interesses da justiça, em suas razões finais, excluiu de seu pedido de condenação tal delito, por afirmar que não houvera se configurado:

"Partindo desta linha de raciocínio e terminada a instrução processual, impossível se torna ratificar a denúncia em todos os seus termos. Penso que os acusados erraram. No entanto devem pagar realmente somente pelo que fizeram.

Assim, com relação ao delito tipificado no art. 158, parágrafo único do diploma penal brasileiro, que diz respeito ao crime de extorsão, o desenrolar do processo demonstrou que realmente não aconteceu o crime".

Porém, não obstante tal fato, o MM. Juiz de primeira instância, não excluiu da condenação.

Extorsão – constranger alguém, sob ameaça, para obter indevida vantagem econômica. No caso em tela, inexistência de elemento objetivo – obtenção de vantagem indevida.

"Tipo Objetivo: A conduta é constranger (coagir, obrigar) e deve ser praticada mediante violência (física contra pessoa) ou grave ameaça (promessa de causar mal sério e verossímil). O constrangimento deve ser para coagir a fazer (certa coisa), tolerar que se faça (obrigar a permitir) ou deixar de fazer (não fazer). O comportamento deve ter o intuito de obter indevida vantagem econômica (vide tipo subjetivo). A vantagem que o agente pretende conseguir deve ser indevida (elemento normativo) e econômica; ausente algum destes dois requisitos, o crime poderá ser outro, mas não o do art. 158. Como economicamente apreciável, considera-se o ato, de caracter patrimonial ou não, capaz de produzir efeitos de natureza econômica em proveito do agente e ou de terceira pessoa; por isso, o ato juridicamente nulo (CC, art. 145) não tipificará a extorsão.

Tipo subjetivo: Dolo (vontade livre e consciente de constranger) e o elemento subjetivo do tipo referente ao especial fim de agir ("com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica"). Na escola tradicional é o dolo específico (Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 5ª Ed., Renovar, 2000)".

Cestas básicas, comida, não é vantagem indevida. Integra o rol dos direitos e garantias individuais, vida digna, saúde. As pessoas que lá estavam eram trabalhadores sem terra, sertanejos, vítimas da seca e da fome. Não eram latifundiários obrigando a autoridade local a lhes fornecer alimentos para o locupletamento ilícito. Nas políticas de combate a seca e a fome, são as prefeituras que repassam às vítimas cestas básicas. A prefeitura é o órgão mais próximo das comunidades atingidas. Ora, é exatamente deste órgão público que os sertanejos foram cobrar.

Em nenhum momento foi demonstrado ameaça

. A testemunha da acusação afirmou que a ameaça foi feita nos termos "Não se admire do que poderá acontecer" (fls. 107) (g.n.). Ora, estas palavras não podem ser tomadas por ameaça.

A permanência dos trabalhadores na prefeitura é exercício de direito à cidadania, manifestação para a concretização de direitos constitucionais, humanos, básicos: o direito de se alimentar.

Para a integrar o tipo penal, a ameaça deve ser de mal injusto e grave. Permanecer na Prefeitura até a entrega de cestas básicas não parece ser um mal injusto e muito menos grave. Além disso, deve ser de mal futuro, não de fato que já estava acontecendo. Fato presente, todos já estavam na Prefeitura. Inexistência do elemento subjetivo: a vontade era de aguardar a chegada do alimento negociado com o prefeito.

Elemento Normativo do Tipo

"Nos termos da disposição, a finalidade do sujeito é a obtenção de indevida vantagem econômica. O tipo exige um elemento normativo, contido na expressão "indevida". Se se trata de vantagem devida, o fato é atípico diante da inexistência do elemento normativo, passando a constituir exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345)". (Damasio E. de Jesus, Direito Penal, 2º vol., Parte Especial, ed. Saraiva, 22ª Ed., 1999).

Para Júlio Fabbrini Mirabete, Código Penal Interpretado, Ed. Atlas – 1999, p. 1011:

"A conduta visa a uma vantagem econômica, um proveito patrimonial que não se limita à entrega de coisas, mas que possam traduzir um acréscimo ao patrimônio do agente, ou lesão ao do ofendido. Também deve ser vantagem indevida, pois, se houver o constrangimento visando a uma vantagem que o agente considera legítima, será caracterizado o crime de exercício arbitrário das próprias razões (ar. 345)."

Vantagem devida

"Não se tipifica a extorsão, se a vantagem pretendida pelo agente é devida ou ele tem razões para acreditar que seja devida (TJRJ, RT 503/421). Não comete extorsão quem exerce um direito regular seu (TACrSP, julgados 78/139). Para a caracterização da extorsão é necessário que a ação constrangedora tenha por escopo obter vantagem econômica injusta (TJPR, RT 690/357)" (Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 5ª Ed., Renovar, 2000).

O prefeito da Carnaubais/RN, representante legítimo daquele Município e portanto responsável mais próximo das comunidades, havia se comprometido em distribuir cestas básicas. Apesar de comida não constituir vantagem e sim um direito, no caso presente, pode ser interpretado, no máximo, como vantagem devida. Se existe um programa de combate a seca e a fome, reivindicar comida é um direito, é algo que o Estado se comprometeu. A CONAB existe para isso, repassar cestas básicas para as Prefeituras que repassa aos atingidos pela seca e, conseqüentemente, também atingidos pela fome. A doutrina é clara no que refere a desclassificação da denúncia que procura incriminar trabalhadores que reivindicavam comida.

A conduta não procurava lesar o patrimônio do então prefeito, como não lesou, tão pouco buscava traduzir em acréscimo ao patrimônio dos acusados, como não se traduziu, uma vez que as cestas básicas fazem parte de uma política dos governos do Estado do RN e do governo Federal.

A prova de que o prefeito não foi lesado em seu patrimônio, nem se traduziu em vantagem aos apelantes, está no recibo de entrega das 500 (quinhentas) cestas básica de alimentos, cedidas pela CONAB do Programa de Convivência com a Seca, conforme Nota Fiscal nº 012582, para serem distribuídas aos sem terra do acampamento da Fazenda FINOBRASA, que ocuparam a prefeitura municipal de Carnaubais em 14 de julho de 1998, em número de aproximadamente 500 pessoas (fl. 19).

As cestas básicas reivindicada pelos sertanejos foram entregues pela CONAB e distribuídas àquelas 300 (trezentas) famílias que somavam em número de aproximadamente 500 pessoas. O Sr. Prefeito não ficou mais pobre, não sofreu agressões nem ameaças, apenas cumpriu com sua função de representante público ao solicitar as cestas básicas à CONAB e distribuir aos sertanejos. Os apelantes, certamente receberam 01 (uma) cesta básica para matar a fome, tendo em vista que também estavam acampados, na mesma situação das demais famílias. Não aumentaram seu patrimônio, visto que nada tinham. Apenas mataram a fome, por alguns dias. Sendo assim, não há que se falar em crime de extorsão.


DA NÃO CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO

Em relação ao crime de seqüestro e cárcere privado (art. 148), também faz por merecer reforma a lavra. Os depoimentos prestados perante o Juízo não trouxeram a inabalável certeza do dolo dos acusados em manter o Sr. Prefeito de Carnaubais em cárcere privado.

"Tipo objetivo – A conduta típica é privar alguém de liberdade, equiparando ao seqüestro, que seria a separação da vítima de sua esfera de segurança, ao cárcere privado, que implicaria a colocação do ofendido em confinamento.

(...)

Havendo consentimento válido da vítima no arrebatamento ou na retenção inexiste o delito, já que lesado um bem jurídico disponível, ou seja, a liberdade de locomoção, ou seja, o direito de ir e vir e escolher o lugar onde quer ficar" (Código de Processo Penal Interpretado, p. 841 – MIRABETE, Julio Fabbrini – Atlas, 2000).

O objetivo da manifestação não era privar o prefeito da liberdade, como em nenhum momento foi privado de sua liberdade. Não foi colocado em confinamento nem foi tirado de sua esfera de segurança. Tanto que policiais permaneceram junto com o prefeito. O fato do prefeito ficar na Prefeitura foi por sua própria vontade. Não é de se admirar, pois é na Prefeitura que o prefeito deve resolver os problemas de sua administração. Não é na sua casa que deve trabalhar e sim na Prefeitura.

Cárcere privado, modalidade de coação moral. O prefeito foi pressionado pelo povo reunido em frente a Prefeitura para resolver o problema da fome. Frente a sua recusa, foi pressionado pelo povo a cumprir com seu dever de prefeito, representante próximo dos sertanejos, e de cumprir com sua promessa de ajudar os acampados. Sem o elemento subjetivo, não há configuração delitiva – reunião para solucionar problema da fome dos acampados e não para restringir a liberdade de locomoção do prefeito. Para a configuração do crime de cárcere privado deve haver confinamento, clausura. No caso não houve, sendo que, inclusive, policiais permaneceram no interior da prefeitura.

O conjunto probatório não descreve conduta típica de cárcere privado. O conjunto dos autos demonstra que um grande grupo de pessoas permaneceu no interior da Prefeitura e que uma comissão negociou com o prefeito, e que de lá saíram após a chegada do alimento. Insista-se, isto não é crime.

De acordo com (TJSP – AC – Relator Márcio Bonilha – RT 564/307):

"Agindo os acusados impelidos por intento outro que não o de seqüestrar ou manter as vítimas em cárcere privado, não se configura o crime contra a liberdade pessoal prevista no art. 148 do CP". FRANCO, Alberto Silva e outros, Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial, 6ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

Ainda!

Conforme (TJSP –AC – Relator Lauro Alves – RT 571/305). "Sem a vontade consciente dirigida a ilegítima privação ou restrição da liberdade alheia, não se configura o delito de seqüestro ou cárcere privado. O dolo é requisito indispensável a infração". Franco, Alberto Silva e outros, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, 6ª ed. ver. e ampl., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

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A doutrina ensina que: "o crime só é punido a título de dolo, consistente na vontade de privar a vítima de sua liberdade de locomoção. JESUS, Damásio de, Direito Penal, Parte Especial, 2º Volume, 9ª Edição, 1986, Ed. Saraiva – São Paulo.

Frente a este conjunto de fatores, os fatos ocorridos na Prefeitura de Carnaubais são atípicos, não configurando o crime de cárcere privado e seqüestro.


INCITAÇÃO AO CRIME: DA NÃO DETERMINAÇÃO DO CRIME, OBJETO DA INCITAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE

Continuando a expor suas razões, desejam agora os apelantes adentrar no conceito de incitação ao crime, para discutir a aplicação do art. 286 do Código Penal ao caso concreto.

De igual forma equivocada a interpretação dos atos praticados para a configuração do delito. Em nenhum momento foi provado nos autos que os acusados proferiram quaisquer palavras determinado, instigando, induzindo os demais integrantes do movimento a manterem o prefeito em cárcere privado, a causarem danos à sede da prefeitura ou a extorquirem qualquer coisa que fosse.

Os atos realizados pelos acusados não são tipos penais. São exercício de direito da cidadania, de manifestação para o cumprimento das políticas concretizadoras dos direitos humanos: comida (vida digna, saúde).

Ademais, não há nada que descreve conduta de incitação. Participar de reunião com o prefeito não incita ao crime. Ter o povo, vítima da seca e da fome, decidido em assembléia a ocupação da prefeitura não responsabiliza os coordenadores. Foi a assembléia que definiu, não um coordenador. Não houve ordem de ninguém, principalmente dos apelantes. Não há provas de que eles tenham ordenado a prática de qualquer crime.

O que se ouviu foram apenas palavras de ordem, brados de justiça de iniciativa de pessoas do povo, mas nunca palavras de incitação ao crime. E, mais uma vez, diga-se que houve erro na sentença quando não foi apontado qual crime foi induzido ou instigado. A rubrica do crime informa "incitação ao crime" e não incitação a crimes. Assim, para se configurar o delito, há que ser explicitado qual foi o crime objeto da incitação. O mestre JULIO FABBRINI MIRABETE nos traz lição a respeito:

"É necessário também que a incitação vise a determinado crime, não constituindo o ilícito um estímulo à prática genérica de crimes". (MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. Pág. 1543. São Paulo, Atlas, 1999).

"TACRSP: Crime contra a paz pública. Incitação ao crime. Vereador que, em discurso proferido na Câmara, propõe-se a liderar grupo de vendedores de bilhetes de loteria para discutir suas reivindicações junto ao prefeito municipal. Delito não caracterizado. Ausência de dolo. Absolvição decretada. Inteligência dos art. 286 do CP de 1940 e 386, III, do CPP. A instigação feita genericamente, de modo vago, não tem eficácia ou idoneidade, por isso que não configura o delito previsto no art. 286 do CP de 1940. (RT 598/350-1 e JTACRIM 79/413 / MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. Pág. 1544. São Paulo, Atlas: 1999).

Desta forma, pela total ausência de dolo específico, não se configura o delito. Os apelantes não incitaram a este ou àqueles crime. Não cometeram ou incitaram ninguém à prática de qualquer crime, devendo serem absolvidos das praticas que lhes foram imputadas, mediante a modificação da r. sentença, conforme exposto.


CONCLUSÃO

Diante do exposto, haverá de ser declarada nula apresente ação penal desde o início posto que a denúncia não descreve fato típico sendo inépta para os fins de processo criminal.

Haverá ainda de ser declarado nulo o presente feito porque a denúncia foi recebida por juiz impedido para tanto, e, após, no mesmo passo, a sentença foi prolatada por juiz igualmente impedido.

Foi apontada e demonstrada a nulidade de feito porque houve inversão na produção de provas e supressão do artigo 499 do CPP.

Por derradeiro, com fundamento no artigo 386, incisos I, II, III, IV e V, do Código de Processo Penal, requer-se a absolvição de E. N. C., F. C. DE S. e O. N. DE S..

Por todas estas razões, aguarda a Defesa seja acolhida as preliminares anulando-se o feito, ou, no mérito absolvendo os apelantes dos crimes imputados na denúncia.

Nestes Termos,

Pedem Deferimento,

Natal, 28 de Outubro de 2001.

JUVELINO JOSÉ STROZAKE

OAB/SP 131.613

ADELAR CUPSINSKI

OAB/RS 52.596

EMANUEL DHAYAN BEZERRA DE ALMEIDA

OAB/RN 2.664-E

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Sobre os autores
Emanuel Dhayan Bezerra de Almeida

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Juvelino José Strozake

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Adelar Cupsinski

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Emanuel Dhayan Bezerra ; STROZAKE, Juvelino José et al. Invasão de prefeitura por sem-terra: apelação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16512. Acesso em: 26 abr. 2024.

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