Exmo Sr Dr Juiz de Direito da Vara Criminal da Comarca de xxxx/MG
G.V., 28 anos, brasileira, solteira, operária fabril, inscrita no Cadastro Geral de Pessoas Físicas (CPF) sob o número xxxx, residente e domiciliada à rua YYY, 333, bairro XXX, nesta cidade, vem, pleitear HABEAS CORPUS PREVENTIVO COM PEDIDO LIMINAR.
1. DOS FATOS
A autora apresentou dor abdominal no final de maio do corrente após atraso menstrual anormal para seus padrões fisiológicos. Procurou, então, o médico da empresa onde trabalha, o qual solicitou ultra-sonografia abdominal (US) e alguns outros exames. A US, feita apenas recentemente por dificuldades financeiras, revelou feto único com "falta de formação da calota craniana deixando tecido cerebral em contato com o líquido amniótico (...) a coluna vertebral apresenta tortuosidade lombar e espinha bífida na região sacral (...) polidrâmnio moderado (...) gravidez de aproximadamente 17/18 semanas", concluindo "feto anencéfalo de 17/18 semanas" (cópia anexa). De posse do exame com o resultado referido a paciente procurou especialista em Obstetrícia, Dr. Bruno Caetano do Valle, que a informou do estado gravíssimo de seu feto e do fato de que a morte do mesmo, caso consiga sobreviver à gestação, dar-se-á, como em todos os casos semelhantes, imediatamente ou poucas horas após o parto.
Desde então a paciente não mais tem tido condições de exercer seu ofício, passando por momentos de grave angústia mental, sofrimento inenarrável frente ao fato de carregar dentro de si feto sem qualquer chance de sobrevivência de acordo com a ciência médica.
A presente situação coloca uma mãe face a face com o a questão: manter a gravidez sem qualquer chance de viabilidade ou interrompê-la? Como suportar tamanho ônus?
Assim sendo, após sopesar a situação, conversar com os seus, falar com o pai do feto por telefone, já que o mesmo reside em outro Estado da Federação, e obter dele o aceite para a decisão que achar melhor, optou a autora (por via judiciária) solicitar autorização para o aborto eugênico.
2. DO DIREITO
Em artigo publicado na revista PRÁTICA JURÍDICA da editora Consulex, número 36, páginas 41 e 42, de 31/03/2005, Flávia Piovesan e Silvia Pimentel, Doutoras em Direito pela PUC/SP, membros de Comitês Latino-Americanos para Defesa dos Direitos da Mulher e também de Comitê da ONU sobre assunto correlato, citam Valery Giscard D´Estaing, ex-presidente de França, em livro de sua lavra, relatando diálogo que manteve com sua Eminência o (saudoso) Papa João Paulo II: "eu sou católico, mas também sou presidente de uma República cujo o Estado é laico (...) Compreendo perfeitamente o ponto de vista da Igreja Católica e, como cristão, o compartilho. Julgo legítimo que a Igreja peça aos que praticam sua fé o respeito a certas proibições, mas não corresponde à lei civil impô-las com sanções penais ao conjunto do corpo social" (grifos nossos). Palavras de um verdadeiro Estadista.
As autoras seguem no artigo: "(...) Os Comitês da ONU sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 2003, recomendaram ao Estado brasileiro a adoção de medidas que garantam o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Ambos enfatizaram a necessidade da revisão de legislação punitiva com relação ao aborto, a fim de que o mesmo seja enfrentado como grave problema de saúde pública" e citam estatísticas que referem haver no Brasil aproximadamente dois abortos clandestinos por minuto, havendo no Congresso Nacional 33 propostas de alteração da legislação sobre o aborto. E concluem dizendo que "apesar do avanço global dos fundamentalismos religiosos que têm, inclusive, caracterizado os conflitos mundiais contemporâneos, estamos certas que o Estado brasileiro – nas esferas dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo – louvará o seu papel histórico de Estado laico, assegurando vida, saúde, respeito e dignidade às mulheres brasileiras. A ILEGALIDADE DO ABORTO ADOECE, CONDENA E ROUBA-LHES A VIDA" (grifos nossos).
A Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Bahia, aprovou em 2004 resolução considerando a interrupção da gravidez em caso de anencefalia como não sendo aborto, logo, indiferente penal (GAIOTTI, Thais Tech; SHINZATO, Simone. Visão jurídica a respeito do aborto de fetos portadores de anencefalia. DireitoNet, São Paulo, 21 out. 2004. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1773/Visao-juridica-a-respeito-do-aborto-de-fetos-portadores-de-anencefalia>. Com acesso em 05 de junho de 2005).
A Constituição Federal de 1988 garante a possibilidade de impetração do remédio heróico de hábeas corpus também na sua forma preventiva (artigo 5º, inciso LXVIII).
Doutrinária e jurisprudencialmente exige-se a comprovação do fumus boni juris e do periculum in mora para a concessão do writ.
O colendo STF já deferiu de forma liminar (cujos efeitos foram suspensos posteriormente para análise pelo Pleno do Tribunal e audiência pública) pedido semelhante ao aqui apresentado, sendo certo que a votação parcial naquele tribunal apresenta quatro votos a favor da autorização para prosseguir no feito contra nenhum voto em contrário. Esse entendimento foi baseado não apenas na argumentação jurídica feita pelos impetrantes, mas em diversos pareceres médicos-técnicos de especialistas de várias regiões do país, os quais, afastadas questões de ordem religiosa, são unânimes em demonstrar qualquer possibilidade de sobrevivência do feto após o nascimento por período superior a poucos minutos ou horas. E todos atestam, simultaneamente, a grave perturbação psíquica, o grande sofrimento imposto à mãe pelo continuísmo de gravidez com dita certeza.
Ademais do forte comprometimento da saúde psíquica da paciente/gestante, há graves implicações do ponto de vista médico por levar-se a cabo gestação com polidramnia, condição caracterizada por excesso de produção de líquido amniótico. Devido ao excesso de líquido amniótico, não somente a vida da gestante corre risco direto como também há forte risco de abortamento espontâneo, condição essa que por via indireta (sangramento, risco de infecções graves, possibilidade de morte por anemia aguda entre outros) afeta a possibilidade de novas gestações da paciente (a qual não teve outros filhos até hoje) ou mesmo arrisca sua vida, mormente frente ao estado calamitoso da saúde pública em nosso país.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro confirmou recentemente decisão de primeira instância favorável ao writ impetrado em situação deveras semelhante à da paciente, conforme se pode ver da ementa abaixo (disponível no sítio do TJRJ na internet: www.tjrj.gov.br)
Habeas Corpus. Anencefalia. Alvará de autorização para intervenção cirúrgica. Presença do "fumus boni iuris" e do "periculum in mora". Feto portador de anencefalia, observada a presença de diversas anomalias. A Comissão de Ética Medica do Instituto Fernandes Figueira, vinculado `a Fundação Oswaldo Cruz, emitiu parecer favorável `a interrupção da gravidez, por se tratar de concepto portador de graves mas formações no sistema nervoso central, incompatíveis com a vida extra-uterina, tornando a gestação freqüentemente complicada por polidramnia, que acarreta graves conseqüências `a saúde da gestante. Precedentes jurisprudenciais. A intervenção se faz necessária, justificada a realização da intervenção cirúrgica para remoção de feto anencefálico pelo estado de necessidade, reconhecendo-se o perigo de grave dano `a pessoa, em face das conseqüências morais, familiares e sociais do parto. Conduta atípica por não atingir qualquer bem jurídico penalmente tutelado. Ordem concedida.
Processo: 2004.059.06681 (TJRJ), Des. DES. SUELY LOPES MAGALHAES, Julgado em 27/01/2005
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em posição de vanguarda, também analisou o feito, amparado em parecer do órgão atuante em primeira instância e igualmente em parecer da Procuradoria de Justiça Estadual, reformando decisão de primeiro grau denegatória, sendo, porém, prejudicada a análise do mérito da questão pelo decurso de prazo. (www.tjmg.gov.br)
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ - MÁ- FORMAÇÃO DO FETO - DECISÃO INDEFERITÓRIA - APELAÇÃO PREJUDICADA PELO DECURSO DO TEMPO DE GESTAÇÃO.
Vistos etc., acorda, em Turma, a PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM JULGAR PREJUDICADO O RECURSO.
O SR. DES. FRANCISCO LOPES DE ALBUQUERQUE - VOTO: Trata-se de apelação aviada contra a sentença que indeferiu pedido de autorização para interrupção da gravidez da requerente, sob o fundamento de que "impossível o seu objeto", e declarou extinto o processo. Alega a recorrente, em resumo, que, em face da constatação, decorrente de exame de ultra-som obstétrico, de "grande deformidade no pólo cefálico, com perda da anatomia craniana, característica de anencefalia", circunstância comprovadamente impeditiva da sobrevivência extra-uterina e potencialmente lesiva à saúde física e mental da gestante, forçoso é concluir pela procedência do pedido. A douta Procuradoria de Justiça, aderindo ao parecer ministerial exarado em primeira instância, opinou pelo provimento do recurso. Colhe-se do teor da inicial e da documentação que a instrui que a apelante, quando ingressou em juízo, já estava grávida há cerca de 20 (vinte) semanas, circunstância diante da qual é forçoso reconhecer que, se a gravidez não foi interrompida, o parto ocorreu enquanto o presente recurso estava sendo processado. Diante disso, julgo prejudicada a apelação.
Processo: 1.0000.00.232686-6/000(1) (TJMG), Relator: FRANCISCO LOPES DE ALBUQUERQUE, Data do acórdão: 09/04/2002, Data da publicação: 19/04/2002
Demonstrada a fumaça do bom direito, cabe ressaltar que o TEMPO é fator crucial na análise desta questão (periculum in mora). A paciente encontra-se com aproximadamente 18 semanas de gestação (em um total de 40 de uma gravidez normal, sendo que gravidezes com polidramnia costumam chegar ao termo com 32 a 36 semanas em média). Qualquer demora na análise do pleito atual poderá levar à perda do objeto da presente ação com todos os prejuízos elencados acima para a saúde da paciente, principalmente para sua saúde psíquica.
Não se pode, tampouco, menoscabar o prejuízo para a imagem do Poder Judiciário frente aos jurisdicionados quando, para questões de grande relevância, há lentidão de decisões. Tais atrasos levam a que as questões sejam resolvidas de per si, o que não é satisfatório e muito menos salutar em um Estado de Direito como o atualmente vivido pelo Brasil.
O presente writ visa evitar constrangimentos à paciente por parte das autoridades administrativas, policiais ou judiciárias, assegurando a mesma a possibilidade de interromper sua gravidez sem restrições por parte de qualquer autoridade estatal ou privada.
3. DO PEDIDO
Concessão da medida liminar garantidora de salvo conduto à paciente para interromper sua gestação face ao exposto, estendendo-se os efeitos do salvo conduto para toda a equipe médica, de enfermagem e para quaisquer outros que porventura atuem nos procedimentos necessários ao feito e expedição de alvará autorizando a realização da cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Aplicação ao presente instrumento do sigilo judicial na forma do Código de Processo Civil e também o disposto no CPP, artigo 792, § 1º.
Citação do órgão do Ministério Público para manifestar-se como fiscal da lei no processo, sem prejuízo do deferimento ab initio da medida liminar.
Que as intimações para a paciente sejam feitas diretamente à paciente em seu endereço.
Que, no mérito, seja deferido o writ e mantidos os provimentos acautelatórios.
Nestes Termos,
Pede e Espera Deferimento,
Cidade XXXX, 06 de junho de 2005.
ANEXO
OAB: interrupção de gestação de anencefálico não é aborto
Brasília, 16/08/2004 - O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu hoje (16), por maioria de votos, considerar que a interrupção da gravidez de feto anencefálico (sem cérebro) não é considerada prática abortiva. A matéria foi examinada pelos 81 advogados que compõem o Conselho, na sede da OAB, após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, que concedeu liminar à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) para reconhecer o direito constitucional de gestantes que decidam realizar operação de parto de fetos anencefálicos
Na OAB, a decisão da maioria dos conselheiros foi tomada com base no voto do relator da matéria na entidade, o conselheiro federal pela Bahia, Arx Tourinho. Segundo ele, só pode existir aborto se houver possibilidade de vida do feto. "Não é aceitável que se saiba, previamente, que o feto não possui qualquer condição de sobrevida e ainda assim se tenha como aborto a interrupção da gravidez, que pressupõe a existência de outro ser que tenha possibilidade de vida própria", afirmou Tourinho em seu voto. A sessão foi conduzida pelo presidente nacional da OAB, Roberto Busato.
O relator da matéria fez questão de ressaltar que a discussão no Pleno da OAB deveria ser realizada sob o ângulo estritamente jurídico. "Não podemos trazer para um tema, que possui consistência técnica, princípios religiosos ou fundamentos jusnaturalistas, que brigam com a realidade e descambam para a irracionalidade", afirmou Tourinho. "À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens".
Segue a íntegra do voto do relator da matéria na OAB, Arx Tourinho:
Voto
1. Direito da mulher gestante ao cometimento da interrupção de gravidez de feto anencefálico.
2. Polêmica causada por aqueles que, desatentos aos princípios jurídico-constitucionais, insistem na concepção medieval de que a mulher deve fingir tratar-se de uma gravidez normal.
3. Proclamação pelo Conselho Federal da OAB de que a gestante, na condição delineada, tem direito de interromper a gravidez, valendo-se de seu direito à saúde e em atenção aos princípios constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
1. Designado pela Presidência deste Col. Conselho Federal da OAB, emito voto sobre matéria, que envolve o direito da gestante em interromper a gravidez, quando se trata de feto anencefálico.
2. O fato se tornou extremamente polêmico, a partir do momento em que, em arguição de descumprimento de preceito fundamental, sendo autor o Conselho Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS, patrocinado pelo culto constitucionalista e advogado Luis Roberto Barroso, o Ministro do STF Marco Aurélio concedeu liminar, reconhecendo "o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto". As disceptações se agigantam, porque os que se colocam em posição antagônica ao decisum judicial entendem que se está a permitir o aborto, em desacordo com a lei.
3. De logo se afirme que dentre as finalidades da Ordem dos Advogados do Brasil está a de defender "a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social", como giza o artigo 44, I, da Lei 8.906/94. No particular, a matéria diz muito de perto com esses aspectos. Daí a pertinência de um pronunciamento deste egrégio Conselho Federal, buscando, assim, cumprimento de uma das finalidades da OAB.
4. A anencefalia, segundo conceituação de William Bell, é "malformação letal na qual a abóbada do crânio é ausente e o crânio exposto é amorfo" ( Doenças do recém-nascido, obra coletiva, Interamericana, 4ª ed., 1979, p. 627).
5. De acordo com Keith Moore, "Embora o termo anencefalia signifique ausência do encéfalo, há sempre algum tecido encefálico", porém, sem maior importância (Embriologia clínica, Interamericana, 2ª ed., p. 354).
6. O encéfalo é "parte do sistema nervoso central situada dentro do crânio neural", formado pelo cérebro, cerebelo e tronco encefálico, na dicção de Angelo Machado, in Neuroanatomia funcional, Livraria Atheneu, 1979, p. 11).
7. Diz, com precisão, o cientista William Bell, a respeito da anencefalia, que "Entre 75 e 80 por cento desses recém-nascidos são natimortos e os restantes sucumbem dentro de horas ou poucos dias após o nascimento" ( op. cit., p. 627). A literatura médica, no mundo, tem essa constatação.
8. Essa é, pois, a realidade da anencefalia, que pode ser detectada, quando o feto ainda se acha no ventre materno. Mas, em 1940, quando editado o Código Penal brasileiro, não havia tecnologia suficiente para um diagnóstico de certeza, a respeito da malformação. Não é o que acontece, na atualidade.
9. Queremos afirmar, neste instante, que a discussão pode e deve ser realizada, pelo ângulo estritamente jurídico. Não podemos trazer para um tema, que possui consistência técnica, princípios religiosos ou fundamentos jusnaturalistas, que brigam com a realidade e descambam para a irracionalidade. É de se acentuar que, em 1990, o Conselho Federal de Medicina, diante do avanço da medicina fetal, propugnou por uma nova postura da classe médica, a fim de embasar uma "reordenação jurídica", o que ensejou proposta de reformulação do Código Penal, segundo informam Marcos Frigério et alii, Aspectos bioéticos e jurídicos do abortamento seletivo no Brasil, trabalho desenvolvido no Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana, em São Paulo.
10. Em primeiro lugar, é de se perguntar: a interrupção da gravidez de um feto anencefálico pode ser considerada prática abortiva? A resposta, a nosso sentir, é negativa.
11. Nosso Código Penal não conceituou aborto. Menciona-o, tipificando condutas, porém, sem afirmar o que, efetivamente, seja. Isso foi deixado para a doutrina e a jurisprudência. E, por esse ângulo, constata-se que só pode haver aborto, se há possibilidade de vida e de sobrevida. Não é aceitável que se saiba, previamente, que o feto não possui qualquer condição de sobrevida e, ainda assim, se tenha como aborto a interrupção da gravidez, que pressupõe a existência de outro ser que tenha possibilidade de vida própria. O feto anencefálico é uma patologia.
12. A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico:
"O feto expulso ( para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patalógico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto" ( Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).
13. Do ponto de vista médico, o feto anencefálico é uma patalogia e como patalogia deve ser tratada. Como diz a professora Débora Diniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, "A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum "a ausência de cérebro", torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da "humanitude", a cultura dos seres humanos." (Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais).
14. A Justiça não pode olvidar essa realidade. Não se trata de interrupção de gravidez em razão de eugenia, seletividade ou de sentimentalismo, mas, sim, de circunstância indiscutível de que o feto não terá sobrevida, porque o feto é sub-humano ou inumano. Não se deve olvidar das palavras de Giovanni Berlinguer "O aborto é o desfecho trágico de um conflito em que estão envolvidos de um lado um ser em formação, do outro as aspirações e necessidades de uma mulher" (Bioética cotidiana, Editora UNB, tradução de Lavínia Porciúncula, 2004, p. 47). Ora, se não há, em realidade, ser em formação, de um lado, e aspirações e necessidades de uma mulher, de outro lado, não há desfecho trágico, não há, portanto, aborto. Expele-se um ser malformado. Expele-se uma patologia.
15. Mas, admita-se, ad argumentandum tantum, que se cuida da figura do aborto.
16. Mais uma vez, a solução se acha em nossa ordem jurídica, precisamente em se respeitarem direitos e princípios constitucionais, que são caros a cada um de nós e a toda a sociedade: a) saúde; b) liberdade; c) dignidade da pessoa humana. Direitos e princípios detectados pelo professor Luís Barroso, em sua petição inicial.
17. Com efeito, o artigo 196, da Carta Magna, reza:
"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
Se a mulher, em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de vida, porque, segundo a literatura médica, cerca de cinqüenta por cento desses fetos têm morte intra-uterina, evidente que o direito à saúde da mulher deve prevalecer. Não só. Registram hospitais e clínicas médicas o profundo transtorno psicológico de que padece a mulher, quando aguarda o parto de um ser sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano.
É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde.
18. Violam-se, também, dois princípios fundamentais, que dizem respeito à legalidade e à dignidade da pessoa humana (artigos 1.º, III, e 5.º, da Lei Máxima).
19. A ordem jurídica brasileira não impõe a qualquer gestante o dever de manter em seu ventre um feto anencefálico, porque esse feto não tem potencialidade de vida, porque, rigorosamente, lhe falta o encéfalo.
20. Também, haverá desrespeito ao princípio de dignidade da pessoa humana a imposição à gestante de ter, em seu útero, um feto, durante o tempo normal exigido para um parto normal!
21. O princípio da dignidade da pessoa humana se incorporou à maioria dos textos constitucionais, em todo o mundo, de forma expressa. Leiam-se os textos constitucionais da Alemanha de 1949, de Portugal de 1976, da Croácia de 1990, da Bulgária de 1991, da Estônia de 1992 e tantos outros, mas, detenhámo-nos na Constituição portuguesa de 1976, matriz da brasileira, que expressa em seu artigo 1.º: "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária".
22. O professor Pietro Alarcón teve a oportunidade de afirmar:
"De outro lado, a Carta Magna de 1988 abriga a dignidade, e nesse sentido, a dignidade é bem jurídico a ser guarnecido pelo sistema. Por outra parte, é eixo de interpretação, atravessando o sentido de constitucionalidade que deve constar em qualquer sentença de juízes e tribunais pátrios. Não exageramos se dizemos, por esses motivos, que a dignidade da pessoa humana foi erigida a padrão de referência de todo o arcabouço jurídico brasileiro" (Patrimônio genético humano e sua proteção na constituição federal de 1988, Editora Método, São Paulo, 2004, p. 254).
23. Efetivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana é básico na interpretação da ordem normativa e serve de luzeiro para desvendar caminhos, que alguns não vêem ou teimam em não vê-los, sob o enfoque de concepções que, contraditoriamente, negam o mencionado princípio.
À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens.
24. A ação e a liminar, aqui referidas, em verdade, estão a proteger mulheres desprovidas de recursos financeiros, mulheres pobres, que necessitam ir a juízo, pleiteando alvará autorizador, porque vão utilizar-se dos serviços públicos de saúde. Aquelas que têm condições financeiras sabem qual clínica ou qual médico devem procurar, para a prática interruptiva da gravidez. Não seja a sociedade hipócrita, nem sejam os opositores da liminar ingênuos...
Em conclusão, propomos que esta Col. Casa do advogado, mas, também, da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, se manifeste pelo direito de a gestante interromper, sempre que assim desejar, uma gravidez, onde em gestação se ache um feto anencefálico, porque o Direito não é, nem pode, ser estático, não é, nem pode, ser contemplativo de uma realidade que passou, ignorando os avanços da ciência.
Brasília, Sala de Sessões do Conselho Federal da OAB, 16 de agosto de 2004.
Arx Tourinho, relator.