DA SUSPEIÇÃO INTRÍNSECA DO MAGISTRADO CONDUTOR DA PERSECUÇÃO PENAL
Excelência, a autoridade coatora é a única que NÃO PODE conduzir esse processo. Ou a competência é do STF (matéria futura que ainda pende de decisão), ou a competência é do TRF-1 ou, finalmente, o magistrado federal impetrado deverá ser afastado por suspeição.
Os impetrantes já aviaram exceção de suspeição, na forma tempestiva e regular, junto à 2ª Vara Federal de Mato Grosso. O que se quer aqui, no presente capítulo, é buscar o efeito suspensivo que a exceção não guarda. Uma vez notória a suspeição, não é razoável que o mesmo juiz impedido possa continuar decidindo negativamente no processo de origem.
Como é sabido por Vossa Excelência, o Excepto, ora impetrado, tutelou longa e profunda investigação policial federal, distribuída na Seção Judiciária de Mato Grosso, a partir dos requerimentos da autoridade policial federal, acerca das quebras de sigilo bancários, fiscal e telefônico.
De todas as representações cautelares indiciárias, restaram deferidas a unanimidades, fundamentando o Excepto na necessidade de desbaratar a organização criminosa à qual a Polícia Federal se referia. Todavia, não se permitiu o contraditório diferido, sob argumento da discrição inerente ao caso.
Assim, os sigilos constitucionais dos acusados, ora Excipientes/Pacientes, foi desvelado pelo Excepto, contribuindo o magistrado ativamente com a persecução preparatória, municiando a autoridade policial federal com decisões judiciais deferindo interceptações telefônicas que, inclusive, contaram com múltiplas renovações, troca de números, ampliação dos prefixos, e toda a sorte de cautelares preparatórias.
Não resta a menor dúvida que o juiz de direito atuou, ainda que consubstanciado nos pleitos policiais e ministeriais, decisivamente para a segregação posterior dos Pacientes. Não fosse assim, as provas carreadas para os autos em epígrafe jamais poderiam ser colhidas, à míngua de decisões judiciais paradigmáticas.
O combate às decisões manejadas pelo Excepto-Impetrado não é o cerne da via excepcional de suspeição. Todavia, percebe-se que os autos de inquérito policial, outrora jurisdicionados pelo MM. Juiz Federal da 2ª Vara da Seção Judiciária, redundaram em denúncia em desfavor dos Pacientes, exordial penal distribuída por prevenção ao próprio pretor que conduziu e atuou no curso das investigações.
A fim de perquirir a gênese das prevenções, temos registro dos processos de referência, sendo o d. magistrado federal que recebeu a denúncia contra o acusado Darci José Vedoin, atualmente processado nos autos 2006.36.00.007573-6, também foi o mesmo que custodiou as investigações autuadas com o número 2006.36.00.006325-5. O mesmo ocorre com o acusado Luiz Antônio Trevisan Vedoin, investigado nos autos preparatórios 2006.36.00.006296-6, e atualmente processado pelo mesmo juízo na ação penal 2006.36.00.007594-5.
E, finalmente, procedeu-se distribuição por prevenção de forma idêntica nos autos de investigações autuados na Justiça Federal sob número 2006.36.00.006300-1, que desaguaram no processo penal 2006.36.00.007591-4, em tramite diante do mesmo pretor de outrora. Evidentemente, os números de inquéritos de referência são apenas ilustrativos, já que há dezenas de outros procedimentos cautelares de referência, despachados pelo Impetrado na fase inquisitiva.
Portanto, extreme de dúvidas é o vínculo psicológico estreito entre a condução preparatória de mega-operação da Polícia Federal de Mato Grosso e, de outro giro, e a conseqüente presidência do processo penal redundante das mesmas investigações.
Prisões temporárias e preventivas, quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, buscas e apreensões, bloqueio de contas bancárias, arrestos e seqüestros, enfim, a pletora de medidas extremas ultimadas pelo Impetrando, evidentemente o comprometem em sua imparcialidade futura ordinária para a cognição da causa.
Inexoravelmente, o juiz de direito que se imiscui nas investigações policiais, mormente deferindo medidas excepcionais frente à inteligência de garantia da Constituição da República, será suspeito para instruir e julgar a causa de lá subseqüente. Não há como ver e não enxergar, decidir e não acreditar, deferir e não se envolver.
Portanto, se o feixe investigativo fermentado pela autoridade coatora com suas decisões cautelares promoveu verdadeira gestação do processo que irá conduzir, por certo que não pode ter isenção para ver fenecer suas próprias medidas. Não se pode desacreditar em si mesmo.
Este é o ATUAL ENTENDIMENTO DO STJ. Senão, vejamos o processo HC 4769 PR (95.0037461-7), julgamento onde participaram os Ministros Anselmo Santiago, Vicente Leal, Adhemar Maciel e William Peterson, tendo como relator o brilho costumeiro da inteligência do Min. Luiz Vicente Cernicchiaro:
RHC – CONSTITUCIONAL – PROCESSUAL PENAL – MAGISTRADO – MINISTÉRIO PÚBLICO – o magistrado e o membro do Ministério Público se houverem participado da investigação probatória não podem atuar no processo. Reclama-se isenção de ânimo de ambos. Restaram comprometidos (sentido jurídico). Daí a possibilidade de argüição de impedimento ou suspeição.
Excelência, há a suspeição ordinária e a extraordinária, a precedente, a concomitante e a superveniente. Trata-se, no caso em estudo, de suspeição concomitante à oferta da peça acusatória vestibular, apurada extraordinariamente pela comparação entre o empenho judicial nas investigações e o evidente excesso de zelo do Impetrado, a confirmar a si mesmo, espelhando-se do passado para o presente. Eis a suspeição.
Tomamos aquele aresto reproduzido acima como paradigmático ao caso concreto, pela absoluta identidade processual e lucidez manejada pela Corte Superior. Naquele julgado, o Min. Relator Cernicchiaro, expôs trabalho de próprio punho, no seguinte sentido:
O espaço é limitado. Levanto uma questão. O juiz que realizar a diligência poderá presidir o processo? Sabe-se, o magistrado precisa ser isento. Não ter interesse pessoal algum. Daí o impedimento e a suspeição.
Haverá isenção (sentido normativo) para processar e julgar quem promoveu, reservadamente, a prova?
Tenho que a resposta se impõe negativa.
Quem recolheu a prova (ainda que isentamente), com ela ficou comprometido. Pelo menos impressionado. Ao presidir a instrução, até inconscientemente, tenderá a orientar a coleta dos elementos probatórios no sentido de confirmar o que foi por ele recolhido.
(...)
A 6ª Turma do STJ decidiu questão semelhante.
Dois promotores, por designação superior, acompanharam o inquérito policial; tiveram parte ativa na coleta de provas. Um deles ofereceu a denúncia e arrolou o outro como testemunha. A sentença, por sua vez, acolheu a imputação e condenou o acusado. Pormenor importante: o decreto condenatório considerou relevante o depoimento do promotor. O acórdão anulou o julgamento; considerou que a testemunha não era isenta, estava comprometida com a prova em cuja produção tivera relevante atividade.
A mesma conclusão decorre da prova colhida pelo juiz. Como no caso do promotor, também fica comprometido. Impõe-se a outro magistrado presidir a instrução e proferir a sentença. Repita-se a advertência: não basta a mulher de César ser honesta; precisa parecer honesta!
E remata o brilhante pretor o julgamento do HC 4769:
Ministério Público e magistratura não podem estar comprometidos com o caso sub judice. Daí a possibilidade de argüição de impedimento, ou suspeição, dos respectivos membros.
Se um, ou outro, atua na coleta de prova que, por sua vez, mais tarde, será a base do recebimento da denúncia, ou do sustentáculo da sentença, ambos perdem a imparcialidade, no sentido jurídico do termo. Não se confunde com o interesse pessoal de a decisão seguir um caminho, ou outro.
O comprometimento, insista-se, reside no interesse de elas serem prestigiadas, exaustivas, bastantes para arrimar sentença de condenação, ou de absolvição.
Além disso, é tradicional, não se confundem três agentes: investigador do fato (materialidade e autoria), órgão de imputação e agente do julgamento.
No caso dos autos, sem dúvida, o ilustre magistrado federal ficará comprometido com a prova colacionada nos autos, emersa de decisões de seu próprio punho. Como desdizer-se e enfrentar a si mesmo, fazendo mea culpa e controlar a legalidade das ações pretéritas? Ainda que o distinto e culto juiz federal fosse portador de extraordinária capacidade de julgar a si mesmo, fiscalizando-se a si, controlando-se a si, abstraindo-se de seu particular convencimento pretérito, a suspeição seria intrínseca ao ato de julgar. Urge outro juiz atuar no processo criminal.
Interne-se o entendimento balizado de um dos maiores doutrinadores nacionais, especialista na conformação constitucional das investigações preliminares, o ilustre e ilustrado promotor de justiça Marcelo Lessa Bastos, em sua obra "A investigação nos Crimes de Ação Penal de Iniciativa Pública", ed. Lúmen Júris:
Outras anomalias ainda permeiam o Código, numa convivência promíscua com o sistema por ele reclamado.
Poder-se-ia destacar, numa leitura perfunctória: a requisição de instauração de inquérito policial por parte do juiz. (pág. 16)
Como se conceber um processo penal garantista que permita que o julgador – aquele que individualizará a lei no caso concreto, aplicando ao réu a sanção penal em virtude do delito que reconheceu ter ele cometido – poste-se à descoberta da autoria da infração penal e à colheita de elementos de prova iniciais em desfavor do réu?
Como se garante o fundamental direito à ampla defesa, obrigando-se o réu a se defender contra seu próprio julgador? Que o contraditório e equilíbrio substancial existem num processo unilateral, sem partes, onde quem acusa, mais tarde, dizer se possui ou não razão?! (pág. 38)
Todavia, não é só aquele brilhante promotor que pensa dessa forma. A distorção processual da requisição judicial para instauração de inquérito policial e também da atuação ativa do juiz no inquérito policial, como ele mesmo adjetiva o procedimento canhoto, foi notada muito antes, em 1998, pelo festejado Geraldo Prado, em sua obra "Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais", Ed. Lúmen Juris. Da obra referendada pela maioria dos tribunais nacionais, extraem-se trechos esclarecedores:
(...)
Tal conformação só admitirá a influência das atividades realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo. Por isso, a real acusatoriedade depende da imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente para se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma consciente e meditada opção entre duas alternativas, em relação às quais manteve-se, durante todo o tempo, eqüidistante. (pág. 128)
(...)
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é necessário garantir que, independentemente da integridade pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo apriorístico (pág.131).
(...)
Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a processar e julgar acusado em processo penal iniciado em razão desta investigação. Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir habilitado a apreciar com isenção as teses que eventualmente a defesa venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já se manifestou a princípio pela existência de uma infração penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e superficial. De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das partes na isenção do juiz emerge como condição de validade jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito, estaremos diante de atos absolutamente nulos. (pág.131)
(...)
A ordem das coisas colocadas no processo permite, pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material, se efetivamente incorporado ao feito, possa determinar. (pág.158)
(...)
Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador. Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução dos meios de prova que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas circunstâncias, acaba por substituir. (pág.158)
Rememore-se lição do culto professor e promotor AFRÂNIO DA SILVA JARDIM:
Entendemos vedada aos órgãos do poder judiciário qualquer atividade persecutória na fase inquisitória, pré-processual
A fortalecer a tese esposada, evitando teratologias como estas que vamos tratar, está o ótimo professor e magistrado GERALDO PRADO, quando salienta não haver razão que justifique:
A emersão do juiz nos autos das investigações penais, para avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já realizadas ou, ainda, interferir na atuação do MP, em busca da formação da opinio delicti. A imparcialidade do juiz, ao contrário, exige dele justamente que se afaste das atividades preparatórias.
Portanto, Excelência, a um só tempo, a autoridade apontada como coatora é suspeita e incompetente. Suspeita por receber para si, por prevenção, os autos autuados como ação penal, de investigação tutelada pelo próprio Impetrado; incompetente por desviar da competência originária do TRF-1 prefeitos municipais, evidentemente envolvidos no caso.