EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLCA DA CAPITAL.
, entidade civil sem fins lucrativos inscrita no CNPJ/MF sob n° 07.526.603/0001-70, regido pelos estatutos em anexo, neste ato, nos termos do art. 19, inciso I de seus Estatutos, representado por sua Presidente, Sra. Sônia Maria Ferraz Gomes Pereira, conforme ata da eleição da última diretoria em anexo (doc. 1), por seu advogado infra assinado (doc. 2), vêm à presença de V. Exa. para, em consonância com o art. 2º, incisos II, VI, X e XI de seus estatutos e com fundamento nos dispositivos da Lei 7.347/85, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO URGENTE DE MEDIDA LIMINAR, contra o GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se nesta Capital, à Av. São Luis, nº 99, 4º andar; contra a COMPANHIA DE ENGENHARIA DE TRÁFEGO – CET, sito nesta Capital, à Rua Barão de Itapetininga, 18, Centro; e contra a PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se nesta Capital, à Av. Liberdade, nº 103, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas:DOS FATOS
Em 13 de julho de 2007, ingressou a Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital do Ministério Público do Estado de São Paulo com uma ação civil pública contra a Municipalidade de São Paulo, a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, a Sociedade dos Moradores e Amigos do Jardim Lusitânia – SOJAL e o Sr. Sergio Saad, presidente de referida entidade de bairro (doc. 3). Essa demanda tramita perante a 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, sob n° 2007.119.565-5.
A demanda em questão narra que foi instaurando naquela Promotoria um inquérito civil para apuração da legalidade do "fechamento dos acessos à Av. IV Centenário, no Ibirapuera (de um lado, de quem vem da Av. Pedro Álvares Cabral, em frente ao Detran, mediante anexação da Praça Maria R.M. de Barros Saad ao Parque do Ibirapuera; mais adiante, na confluência da Av. IV Centenário com a Rua Menaldo Rodrigues) e do acesso às praças Renato Inoma e Prof. Jairo de Almeida Ramos (continuação da Av. Hélio Pelegrino, esquina com a Av. República do Líbano), neste caso com colocação de vasos, floreiras, prismas de concreto e tachões no leito carroçável."
Ainda segundo a narrativa contida na demanda citada, "a CET disse que essas medidas decorrem da implantação do conceito de "traffic calming" em áreas residenciais (programa comunidade protegida), um conjunto de medidas e técnicas visando minimizar o domínio do automóvel em vias locais, inibindo seu uso como rotas alternativas e de fuga das vias coletoras, reduzindo conflitos, ruídos, poluição do ar e contribuindo com a melhoria da qualidade de vida nessas áreas".
Alega o Promotor, ainda, ter havido afronta ao princípio da legalidade, do interesse público e da impessoalidade, que a solução foi "nada republicana", que teria havido uma "desafetação dissimulada", que o que se pretende é uma "ilha da fantasia", "criação de um gueto", "privilégio para poucos", que os "camelôs foram expulsos", dentre outras afirmações de cores berrantes.
Seguindo uma linha fortemente emocional, diz ainda que houve "manifestações populares de repúdio à medida", até de "um juiz de Direito", que fala em "reflexo do comando das elites brancas". O ilustre representante do Ministério Público alega também que "foi afetado o direito de ir e vir", que o "trânsito é um direito de todos", dentre outras colocações no mesmo sentido. Pretendeu sustentar a "inconstitucionalidade do programa comunidade protegida", por contrapor-se a comando "verticalmente superior, o objetivo fundamental da República, que é a redução das desigualdades sociais e a erradicação da marginalização". Insinua o Promotor que as intervenções foram conseguidas porque "mora no bairro um deputado do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB".
Ao final da ação proposta, pede a "restauração" (sic) do acesso à Av. IV Centenário pela Av. Pedro Álvares Cabral, "remoção dos obstáculos instalados nas vias públicas", "restauração do acesso à Av. IV Centenário", "condenação em obrigação de não fazer" para não colocação das mesmas intervenções urbanísticas e, pasme V. Exa., num arroubo de radicalismo, "condenação da Municipalidade, da CET e da SOJAL (subsidiariamente, entretanto, também da pessoa física do Presidente da SOJAL)" ao pagamento de "indenização por danos morais e materiais difusos e coletivos causados à população" no valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Pedia, ainda, "indenização a cada pessoa lesada, por danos morais e materiais aos direitos individuais homogêneos afetados" e mais R$ 1.000,00 (mil reais) por dia, a partir da citação, enquanto permanecerem as irregularidades".
À certa altura da tramitação da ação judicial supra referida, houve a lavratura de um "termo de ajustamento de conduta" (ainda que impropriamente denominado de "acordo"), firmado entre o Ministério Público, a CET e a Prefeitura (doc. 4), do qual se destacam as seguintes cláusulas:
"1) No prazo de até 120 (cento e vinte) dias contados da homologação deste acordo, a Municipalidade restaurará o acesso à Av. IV Centenário pela Av. Pedro Álvares Cabral, restabelecendo a Praça Maria R. M. De Barros Saad ao estado anterior à sua anexação com a Av. IV Centenário e o Parque do Ibirapuera; a circulação pela Av. IV Centenário, sentido Av. Pedro Álvares Cabral – Av. República do Líbano, será proibida para caminhões e ônibus.
2) A vegetação e demais espécies arbóreas existentes no local a ser desobstruído com a reabertura da Av. IV Centenário (trecho de junção da praça com parte do leito da avenida e parque) serão transplantadas pela Municipalidade preferencialmente para o Parque do Ibirapuera, no mesmo prazo do item "1" acima"
Cabe destacar, ainda, que as partes transigentes requereram a homologação do acordo independentemente da anuência dos réus SOJAL e Sergio Saad e que, caso os mesmos concordassem com o acordo, o Ministério Público desistiria do pedido contra eles. Contrariamente, caso não concordassem, o Ministério Público prosseguiria na demanda contra eles.
O que se pretende demonstrar, nos presentes autos, é que o "acordo" firmado entre o Ministério Público do Estado de São Paulo, a CET e a Prefeitura do Município de São Paulo ao menos no que tange às cláusulas aqui questionadas, é nulo de pleno direito, posto que o Ministério Público, ao propor a ação e firmar o acordo, incorreu em "desvio de finalidade", instituto também conhecido como "desvio de poder", uma vez que extrapolou suas funções legais e exorbitou de sua competência.
Além disso, através do "acordo", a CET e a Prefeitura de São Paulo comprometeram-se com a prática de determinados atos administrativos absolutamente ilegais que afrontam o Plano Diretor da Cidade de São Paulo, afrontam as normas de tombamento do Parque do Ibirapuera, hostilizam decisão do Conselho Gestor do Parque do Ibirapuera, que possui poder consultivo e normativo, está em contradição com iniciativas adotadas no passado pelo próprio Ministério Público, através de sua Promotoria de Meio Ambiente, e peca por falta de Estudo de Impacto Ambiental, como exige a lei.
Antes de adentrarmos na minuciosa demonstração das ilegalidades topicamente supra referidas, convém anotar que os acordos efetuados em sede de ação civil pública, tecnicamente conhecidos como "termos de ajustamento de conduta" não são vinculantes para aqueles que dele não participaram.
Sobre o instituto do "Termo de Ajustamento de Conduta", o festejado jurista Edis Millaré, citando o não menos ilustre JOSE MARCELO MENEZES VIGILAR, deixa consignado o seguinte magistério ("Direito do Ambiente", RT, 2000, p.435):
"O mérito da avença – judicial ou extrajudicial – poderá ser objeto de questionamento, já que nenhum dos co-legitimados é titular do direito material em discussão. Logo, como bem lembra José Marcelo Menezes Vigilar, "a integralidade da satisfação do direito/interesse transindividual, pelo agente causador da lesão, deve ser observada, sob pena de um outro co-legitimado, sob o argumento da indisponibilidade do direito material, ajuizar uma nova demanda, o que seria plenamente viável."
É exatamente essa a hipótese dos autos. Aliás, despiciendo destacar que seria realmente o cúmulo do autoritarismo, incompatível com os mais elementares princípios do Estado Democrático de Direito, entender que a entidade autora, como de resto qualquer outra, estaria impedida de questionar acordo que entende lesivo aos interesses ambientais e urbanísticos da coletividade, acordo do qual não participou, ainda mais no caso de um termo de ajustamento de conduta efetuado nos autos de uma ação civil pública que ao menos potencialmente versa sobre um interesse público, interesse esse que o Ministério Público (como, de resto, as associações especificadas na lei da ação civil pública) possui legitimidade para defender, mas não para dele dispor.
Curial uma última observação: O Governo do Estado de São Paulo é incluído no pólo passivo dessa lide, dada a falta de legitimidade passiva, por ausência de personalidade jurídica própria, do órgão ministerial. Na verdade, a pretensão de anular parcialmente o acordo deve conter no pólo passivo todos os que dele participaram. O Governo do Estado, portanto, deverá defender, se assim entender, a posição do Ministério Público em tal avença.
Façamos um breve histórico acerca da alça de acesso entre a Av. Pedro Álvares Cabral e a Av. IV Centenário (que é o que importa para os presentes autos) para, em seguida, demonstrarmos as incríveis ilegalidades presentes no acordo, que deverão culminar com sua pronta nulidade parcial.
BREVE HISTÓRICO
O Parque do Ibirapuera foi inaugurado por ocasião das comemorações do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo, assim como a Avenida que traz no nome esse evento histórico. As fotos aéreas anexas, dos dias 22 de fevereiro de 1973 (doc. 5) e 17 de julho de 1987 (doc. 6), adquiridas junto a empresa especializada em levantamento aerofotogramétrico, demonstra claramente que a alça de ligação dentre as Av. Pedro Álvares Cabral e a Av. IV Centenário originalmente não existia. Existia, sim, uma área verde no local, como atualmente, que fisicamente sempre esteve incorporada ao Parque do Ibirapuera.
No final da gestão Celso Pitta, de maneira absolutamente despropositada e ilegal (o que será melhor demonstrado mais adiante), houve a abertura dessa via de acesso, o que implicou em seccionar o Parque do Ibirapuera, de maneira ilegal, aliás com ilegalidades semelhantes às apontadas nessa vestibular. O "corte" do Parque criou, absurdamente, uma área verde inacessível, o que implicou na "inauguração" da Praça Maria Helena Monteiro de Barros Saad", cercada totalmente por um gradil e muros das residências limítrofes.
No ano de 2003, houve a intenção do Poder Público Municipal, durante a gestão da Sra. Marta Suplicy, de construir um auditório projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer no Parque do Ibirapuera, o que acabou por ser autorizado, visto que complementaria o projeto arquitetônico original. Não obstante, um dos argumentos que se levantou contra a obra, na época, era o aumento da impermeabilização do Parque do Ibirapuera.
Como é largamente sabido, essa obra era extremamente polêmica, chegando a provocar a propositura de uma ação civil pública, por parte do Ministério Público, que teve curso perante a 5ª Vara da Fazenda Pública da Capital, sob nº 2003.013267-6. Nesses autos, comprometeu-se a Prefeitura a compensar a nova área a ser impermeabilizada, com a desimpermeabilização de outras áreas do Parque (doc. 7).
Foi nesse contexto que se restaurou a situação original, com o fechamento da via de acesso e restauração da vegetação de porte arbóreo bastante significativo atualmente recolocada no local. Portanto, equivoca-se o ilustre representante do "Parquet", "venia concessa" quando dá a entender, em sua petição inicial, que a alça estaria na origem do Parque do Ibirapuera. É exatamente o contrário.
Por outro lado, o nobre Promotor admite em sua inicial, expressamente, que a área em questão foi anexada ao Parque do Ibirapuera (petição inicial do MP, item "1", fl. 1, 6ª linha).
Feito esse brevíssimo histórico, apenas para reparar o vício de origem contido na ação proposta pela Promotoria de Habitação e Urbanismo, o que evidentemente contamina o acordo que aqui se quer anular, passemos à análise das ilegalidades presentes nos atos administrativos compromissados pela CET e pela Prefeitura em referido acordo.
1ª ILEGALIDADE DO ACORDO
É clássico o brocado jurídico segundo o qual: "o particular pode fazer tudo o que a lei não proíba, enquanto que o Poder Público pode fazer apenas o que a lei permite". Isso é ínsito a qualquer Estado Democrático de Direito. Uma das garantias do cidadão contra o Estado é que o mesmo só agirá nos limites de sua competência e, mais do que isso, única e exclusivamente para os fins que foi criado.
Os poderes estatais não se destinam a permitir aos agentes públicos utilizá-los para impor suas preferências pessoais, suas manias, suas idiossincrasias, suas subjetividades, suas tendências políticas, seus valores pessoais. Mesmo quando a lei confere poderes discricionários a alguma autoridade, trata-se, apenas, de uma margem de liberdade para melhor atender ao interesse público. Nessas hipóteses, entretanto, o agente não pode ser afastar do interesse público, dos balizamentos legais e do exercício da competência única e exclusivamente dentro do que permite a lei.
Sobre o tema, são insuperáveis as notáveis lições do Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello, verdadeiro libelo da liberdade do cidadão contra os tentáculos do Estado ("Discricionariedade e Controle Jurisdicional", 2ª ed., Malheiros, p. 48):
"No Estado de Direito quer-se o governo das leis e não o governo dos homens, consoante a clássica assertiva proveniente do Direito inglês. Isto significa que é ao Poder Legislativo que assiste o encargo de traçar os objetivos públicos a serem perseguidos e de fixar os meios e os modos pelos quais hão de ser buscados, competindo à Administração, por seus agentes, o mister, o dever, de cumprir dócil e fielmente os "desiderata" legais, segundo os termos estabelecidos em lei. Assim, a atividade administrativa encontra na lei tanto seus fundamentos quanto seus limites."
É dessa constatação que decorre a teoria do desvio de finalidade, que consiste justamente na prática de algum ato, por algum agente público, distinta da finalidade para a qual exerce os poderes públicos (daí porque a teoria é chamada, também, de "desvio de poder"). Melhor definição do termo "desvio de finalidade" pode dar o nunca assaz reverenciado Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello (ob. cit., p. 57):
"Consiste, pois, no manejo de um plexo de poderes (competência) procedido de molde a atingir um resultado diverso daquele em vista do qual está outorgada a competência. O agente se evade do fim legal, extravia-se da finalidade cabível em face da lei. Em suma: falseia, deliberadamente ou não, com intuitos subalternos ou não, aquele seu dever de operar o estrito cumprimento do que a lei configurou como objetivo prezável e atingível por dada via jurídica.
Tratando-se, como se trata, de um comportamento que desgarra do fim legal, é, em suma, uma transgressão da lei. Por isso o controle jurisdicional do desvio do poder é um controle de estrita legalidade."
Mais adiante, conclui o notável Professor seu brilhante raciocínio.
"Sobremodo nos casos em que o desvio de poder é praticado conscientemente pela autoridade e tanto mais naqueles em que o faz por intuitos pessoais, de perseguição ou favoritismo, avulta a percepção de que o controle do ato é mero controle de legalidade. Com efeito, o agente tanto pode ofender a lei violando-a à força aberta, ou seja, pisoteando à boca cheia e sem recato às disposições normativas, caso em que agride ostensivamente o padrão legal, como pode fazê-lo à capucha, à sorrelfa, de modo soez, embuçado sob capuz de disfarce – para usar uma expressão de Hely Lopes Meirrelles – a pretexto de atender o interesse público. Esta forma de proceder é mais grave, é mais perigosa ainda do que aquela que resulta de violação desabrida da lei. Por ser mais sutil, por vestir-se com trajes de inocência, é mais censurável. Revela uma conduta soez, maculada pelo vício da má fé. E o Direito abomina a má fé. Assim, é vício de particular gravidade. Sobre sê-lo, é, também, de especial periculosidade. Isto porque, se o Poder Judiciário, em face dele, mostrar-se excessivamente cauto, tímido ou, indesejavelmente, precavido em demasia contra os riscos de invasão do mérito do ato administrativo, os administrados ficarão a descoberto, sujeitos, portanto, a graves violações de direito que se evadem à correção jurisdicional."
Antes que o advogado subscritor da presente inicial possa ser mal interpretado, deseja-se consignar que o insigne Promotor de Justiça, Dr. José Carlos de Freitas é bastante consciente de seus deveres funcionais, extremamente conhecedor do Direito Urbanístico e de probidade absolutamente inquestionável. Aparentemente, entusiasmou-se demasiadamente com um ponto de vista particular, pessoal, subjetivo, contra o chamado "traffic calming", cuja versão paulistana é o programa "Comunidade Protegida".
O caso vertente demonstra, pois, que até os mais preparados cultores do Direito e os mais probos operadores do Direito podem errar. Essas considerações visam, apenas, desagravar o ilustre Promotor do ponto de vista pessoal. Objetivamente, entretanto, tudo isso é irrelevante. Pouco importa o que levou o ilustre Promotor a incorrer em desvio de finalidade. Fato é que incorreu e os atos daí decorrentes devem ser anulados.
Com efeito, o manejo de qualquer ação judicial exige a demonstração de que há uma ilegalidade a ser reparada, ainda mais quando essa ação judicial advém do órgão ministerial, cujos membros são agentes públicos, cuja vontade política não pode se sobrepor à vontade política dos agentes competentes para praticar atos administrativos, sob pena de desvio de finalidade. Em suma, a função precípua do Ministério Público é coibir ilegalidades, e não substituir a Companhia de Engenharia de Tráfego (que, aliás, possui corpo técnico qualificado para suas intervenções) na ordenação do trânsito em nossa metrópole.
Deve-se considerar, ainda, que Executivo Municipal é exercido legitimamente pelo Prefeito e seus auxiliares. A fonte do Poder que exercem foi o voto popular, dentro das regras democráticas vigentes. Não se pode impedi-los, portanto, de cumprirem o papel para o qual foram escolhidos, tampouco as iniciativas que adotam, os programas de governo, podem ser obstados pelo Ministério Público ou pelo Poder Judiciário, a não ser se hostilizarem a lei, afastarem-se do interesse público, abusarem do Poder, desviarem a finalidade e hipóteses da mesma estirpe.
No caso vertente, por mais que se leia e releia a demanda proposta pelo Ministério Público, não se consegue vislumbrar em que ponto, no entendimento do eloqüente Promotor de Habitação e Urbanismo, a não abertura da alça de acesso da Av. Pedro Álvares Cabral para a Av. IV Centenário infringe a lei ou a Constituição Federal. Cita ele o princípio da legalidade, do interesse público e da impessoalidade, mas essas citações devem ser vistas como meramente alegóricas, posto que sequer estão melhor desenvolvidas.
Cita, ainda, o direito de ir e vir. Ora, aqueles que tomam contato, ainda que perfunctório, com o Direito Constitucional, sabe que todos os cidadãos, num Estado Democrático de Direito, são titulares de vários direitos (vida, liberdade, propriedade, liberdade de expressão, etc). A coexistência de vários direitos, de vários titulares, implica inevitavelmente que nenhum direito de quem quer que seja possa ser tomado em termos absolutos.
Assim, a propriedade não é um direito absoluto: há muito é limitada por sua função social; a liberdade de expressão também não é um direito absoluto: o abuso desse direito pode, inclusive, implicar na prática dos delitos de calúnia, injúria ou difamação; a liberdade não é absoluta: aquele que é condenado à prisão é, justamente, privado de liberdade; nem mesmo a vida é um direito absoluto: pode ser licitamente suprimida, por exemplo, na hipótese de legítima defesa, quando o agressor coloca em risco a vida de outrem.
E, se não há direitos absolutos, menos ainda pode ser assim concebido o direito de ir e vir. De fato, não pode um piloto de avião sair da rota traçada sob pretexto de exercer seu direito de ir e vir; não pode um motorista executar uma conversão proibida sob esse mesmo pretexto, como também não pode um motorista de caminhão trafegar numa praia com seu veículo, dentre diversos outros exemplos.
O direito de locomoção, portanto, pode e deve ser regulamentado, ordenado, posto que deve ser compreendido sem que se lhe confira qualquer veio de absolutismo, para que outros direitos e interesses igualmente legítimos possam emergir e com ele coexistir, tais quais segurança, sossego, tranqüilidade, etc.
É justamente nesse contexto que não há como vislumbrar o acerto da tese ministerial quando diz que programas como o "traffic calming", cuja versão paulistana denomina-se "comunidades protegidas" são inconstitucionais por ferirem o direito de ir e vir. Esses programas, aplicados em vários países do mundo, nada mais visam do que reordenar o trânsito de veículos, para minimizar o domínio do automóvel em vias locais, reduzir conflitos, diminuir atropelamentos, reduzir ruídos, reduzir a poluição e contribuir para a melhoria da qualidade de vida como, aliás, admite o próprio presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, citado pelo Ministério Público em sua petição inicial.
Sobre a importância do programa "traffic calming" e a questão específica dos autos, o Professor Cândido Malta Campos Filho, certamente um das mais respeitados urbanistas de nosso país, professor de Planejamento Urbano da USP e ex-Secretário de Governo, produziu brilhante parecer sobre o tema, dirigido aos conselheiros e diretores do "Movimento Defenda São Paulo", do qual destacamos o seguinte (doc. 8):
"Há mais de 35 anos vem ocorrendo progressivamente a adoção desse tipo de medida a partir, se não estou enganado, de medidas desse tipo votadas democraticamente e adotadas pela cidade de Berkeley, Califórnia, no início da década de 1970. Lá um plebiscito adotou tais medidas de proteção ao tráfego de passagem usando inclusive do bloqueio com lindas floreiras no meio da rua, quando essa medida maior era necessária, dada a pressão exercida pelo tráfego de veículos. Os pedestres nunca são bloqueados e dando-se voltas chega-se a qualquer ponto que se deseja. Não há exclusividade de uso portanto das vias para os moradores. Há apenas uma preferência, e elas permanecem abertas, mesmo as bloqueadas de um lado, pois o outro ou outros continuam abertos. A partir da Califórnia tais medidas foram se espalhando pelas cidades do mundo desenvolvido como atestam publicações alemãs, inglesas e suíças, dentre outras, das quais algumas possuo os exemplares."
Em outro trecho, o famoso urbanista assim deixa assentado:
"Se não houvesse outra solução a não ser o sacrifício do espaço público em nome de uma mobilidade mínima do cidadão e das cargas a transportar, talvez tivéssemos de abdicar de nosso objetivo de manter ou mesmo recuperar o uso do espaço público como espaço de convivência social. Mas, a exemplo do mundo desenvolvido, a solução está na progressiva restrição ao uso do automóvel e progressiva melhoria do transporte coletivo e nas alterações do processo imobiliário de produção do espaço da cidade em curso, que produz a periferização do tecido urbano e u seu esvaziamento central".
Quanto ao suposto "elisitismo" do programa "traffic calming", aqui conhecido como "comunidade protegida", deixa o seguinte magistério o renomado urbanista, com invulgar brilhantismo e contundência:
"Por último, mas não menos importante, discutamos o argumento de que esse pleito de proteção do tráfego de passagem é de uma elite apenas, mas não atende as necessidades de uma população mais ampla, inclusive a de menor renda.
Há exemplos de pedidos de proteção contra o tráfego excessivo de bairros da classe média e não apenas da classe alta. Muitos dos que militam no MDSP podem ser entendidos como tal. E há pedidos novos, que alcançam bairros de renda menor.
Na verdade, o que está ocorrendo é uma busca crescente de proteção abrangendo cada vez mais bairros desprotegidos socialmente. Temos experiência disso ao termos feitos Planos Diretores de Bairro em bairros da periferia pobre de São Paulo.
Neles, a necessidade do uso da rua como espaço de convívio social e mesmo de lazer é uma verdade gritante, tendo sido os espaços públicos destinados a praças e áreas verdes em inúmeros casos, infelizmente a maioria, invadidos por moradores de baixa renda e estando tais bairros sendo legalizados como espaço de moradia através de um grande esforço promovido pelo Ministério das Cidades com base na lei federal que é o Estatuto das Cidades. Apenas sobre então nesses bairros a rua como espaço de lazer para crianças fora do horário escolar e idosos para não falarmos do contingente de desempregados, que não é pequeno, ou seja, cerca de 15% da população economicamente ativa.
Assim, nos Plano Diretores de Bairro da periferia social paulistana que temos feito, quando discutimos nas Assembléias tais diretrizes, as mães que maciçamente comparecem, aplaudem entusiasticamente tais medidas!
Portanto, é um grave equívoco entender que as medidas de proteção contra o tráfego excessivo sejam de interesse exclusive da elite.
Para essas comunidades socialmente desprotegidas, o uso da rua como espaço de brincadeiras e conversas é uma necessidade essencial e o seu uso com menores riscos de atropelamento com até mortes, faz com que eles recebam com entusiasmo medidas de controle do tráfego excessivo, às vezes não tanto no número de veículos mas em muitos casos em sua velocidade ao trafegar e o inesperado de sua ocorrência.
Assim se desfizermos o equívoco da ação em curso que colocou a CET e a SOJAL "contra a parede" sob a ameaça de uma vultuosíssima multa, salvaremos um muito precioso conceito para os paulistanos, que querem fazer a cidade tão bem planejada como as do primeiro mundo.
Não fazê-lo será um retrocesso imenso para tudo que conquistamos até agora."
Possivelmente diante das considerações do ilustre Professor Cândido Malta Campos Filho, o Movimento Defenda São Paulo, entidade que reúne diversas associações de bairro de São Paulo, acabou por posicionar-se contrário à abertura da alça de acesso entre a Avenida Pedro Álvares Cabral e a Avenida IV Centenário (doc. 9). Mais ainda, a própria CET, antes da assinatura do acordo ora impugnado, exaltava o programa "Comunidades Protegidas", conforme notícia do "Portal" da Prefeitura de São Paulo de 14 de julho de 2007. Destaque-se o seguinte trecho (doc. 10):
"O objetivo da iniciativa é preservar as áreas residenciais e proteger os pedestres, evitando prejuízos no pavimento dessas regiões e rachaduras nas casas, que não possuem estrutura para receber o fluxo pesado de veículos. A CET identificou 36 áreas com potencial para implementar o programa, das quais onze estão em fase de desenvolvimento do projeto e três em fase final para início da execução."
Ao final da reportagem, há uma lista dos bairros em que tal projeto estava sendo implementado, incluindo os bairros de classe média baixa São Mateus, Vila Carmosina e Cidade Tiradentes, o que confirma o afirmado pelo Prof. Cândido Malta Campos Filho no parecer supra citado. Mencione-se, ainda, que no ano de 2000, quando se pretendeu instalar os bolsões residenciais na cidade de São Paulo (um programa de reordenação do tráfego para proteção das áreas residenciais semelhante ao "traffic calming", ou "comunidade protegida"), colheram-se, no bairro do Jardim Lusitânia, assinaturas que representavam, na época, aproximadamente 53% (cinqüenta e três por cento) do total de moradias do bairro (doc. 11), o que demonstra a pressão de tráfego que esse bairro recebe e a necessidade de protegê-lo, assim como outros bairros paulistanos.
Portanto, mais não é necessário para que possamos concluir esse tópico.
O que se quis demonstrar é que o programa "comunidades protegidas", versão paulistana do "traffic calming", já implementado em diversas cidades americanas e européias, não fere qualquer preceito constitucional ou legal, não atinge o princípio da legalidade, não atinge o interesse público, não afeta o princípio da moralidade e não afeta o direito de ir e vir, como alega o Promotor de Justiça autor da ação civil pública que deu origem ao "acordo" que aqui se quer anular.
Ao contrário, esse tipo de medida é plenamente razoável, promove reordenação do trânsito com vistas a proteger áreas predominantemente residenciais, onde é conveniente diminuir a velocidade dos veículos, os riscos de atropelamento, os ruídos, a poluição, onde é conveniente preservar os espaços públicos para convivência e brincadeiras de crianças.
E se o insigne Promotor de Justiça, Dr. José Carlos de Freitas, praticou desvio de poder quando propôs a ação civil pública aqui examinada, posto que não havia ilegalidade alguma, sendo que sua vontade política não pode ser sobreposta à vontade política da administração democraticamente eleita, o mesmo vício jurídico aparece, com maior nitidez ainda, na lavratura do termo de ajustamento de conduta cujos atos administrativos ali previstos são objeto de pedido de anulação parcial nesses autos.
Ora, um termo de ajustamento de conduta (embora tenha sido impropriamente chamado de acordo, o documento está expressamente fulcrado no art. 5º, § 6º da lei 7.347/85, o que não deixa dúvidas sobre tratar-se de um termo de ajustamento de conduta) só pode ser lavrado quando há uma conduta "desajustada" à lei, que precisa ser adequada aos ditames legais.
Jamais um termo de ajustamento de conduta pode ser lavrado quando não há ilegalidade alguma. Ao assim agir, está irremediavelmente praticado o vício do desvio de finalidade por parte de todos os agentes públicos requeridos, o que deve conduzir à nulidade do acordo celebrado entre as partes. A CET e a Prefeitura, ademais, caíram em terrível contradição ao assinar tal termo, já que vêm defendendo e programando para outros bairros o programa "Comunidade Protegida".
Evidentemente, é nulo um acordo quando uma das partes não tinha competência para firmá-lo. Passemos a demonstrar, entretanto, que mesmo que tal medida tivesse sido anunciada pela CET unilateralmente, fora do âmbito de uma ação civil pública e de um termo de ajustamento de conduta, seria absolutamente ilegal, aí não por falta de competência técnica e legal, mas por não observar diversos diplomas normativos. Demonstra-se: