2ª ILEGALIDADE DO ACORDO
A Constituição Federal de 1988 conferiu relevância ímpar aos Plano Diretores Municipais. De fato, diz o art. 182, §§ 1º e 2º da Carta Magna:
"Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes:
§ 1º. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor."
O Plano Diretor da Cidade de São Paulo (Lei Municipal 13.430/02), em consonância com o que ocorre nas principais metrópoles do mundo, trouxe em seu corpo importante instrumento urbanístico para melhor ordenamento da cidade: a hierarquização das vias de tráfego de veículos, à partir da qual passa a incidir um regime jurídico-urbanístico diferenciado para cada via de acordo com a classificação que receber, seja no que tange ao uso público das vias, seja no que diz respeito ao uso e ocupação do solo incidente sobre os lotes pertencentes a elas.
Essa hierarquização está explicitada no art. 110 do Plano Diretor:
"Art. 110 – As vias da Rede Viária Estrutural constituem o suporte da Rede Estrutural de Transportes prevista no § 1º do artigo 174 da Lei Orgânica do Município
§ 1º - As vias estruturais, independentemente de suas características físicas, estão classificadas em três níveis:
I – 1º Nível – aquelas utilizadas como ligação da Capital com os demais municípios do Estado de São Paulo e com os demais estados da Federação;
II – 2º Nível – aquelas não incluídas no nível anterior, utilizadas como ligação com os Municípios da Região Metropolitana e com as vias de 1º Nível;
III – 3º Nível – aqueles, não inlcuídas nas anteriores, utilizadas como ligações internas do Município.
§ 2º - As demais vias do Município, não estruturais, são as que coletam e distribuem o tráfego internamente aos bairros e ficam classificadas em quatro tipos:
1. Coletoras;
2. Vias locais;
3. Ciclovias;
4. Vias de pedestres."
No que tange à disciplina dessas vias, possui importância central para a presente demanda o art. 115 do Plano Diretor, cujo teor é o seguinte:
"Art. 115. A orientação do tráfego de passagem somente poderá ser permitida nas vias coletoras e estruturais.
§ 1º. A classificação das vias coletoras deverá ser regulamentada por ato do Executivo num prazo não superior a 180 (cento e oitenta) dias.
§ 2º. As vias coletoras são aquelas utilizadas como ligação entre as vias locais e as vias estruturais.
§ 3º. As vias locais são definidas pela sua função predominante de proporcionar o acesso aos imóveis lindeiros, não classificadas como coletoras ou estruturais."
Portanto, uma via local não pode receber tráfego de passagem, apenas as vias estruturais e as vias coletoras. Se uma via local receber tráfego de passagem, evidentemente, haverá hostilização ao art. 115, "caput" do Plano Diretor. Mais do que isso, as vias locais, nessa hipótese, perderão sua função de apenas proporcionar o acesso aos imóveis lindeiros, conforme o parágrafo terceiro do mesmo dispositivo legal. Não bastasse, as vias locais não podem ser ligadas diretamente a vias estruturais, posto que tal ligação deve ser efetuada pelas vias coletoras, por disposição expressa do art. 115, § 2º do Plano Diretor. Tudo isso decorre da simples leitura do art. 115 do Plano Diretor de São Paulo.
Note V. Exa., portanto, que programas como o "comunidades protegidas, versão paulistana do "traffic calming", visa inclusive trazer efetividade ao Plano Diretor, garantindo que as vias locais sejam efetivamente locais, ou seja, não recebam tráfego de passagem!!!
A Lei Municipal 13.885/04 veio trazer dispositivos complementares ao Plano Diretor (Lei Municipal 13.430/02). Foi essa última lei municipal que classificou todas as ruas da cidade como estruturais, colaterais ou locais. Estabeleceu-se a regra segundo a qual as vias estruturais e coletoras seriam expressamente destacadas em anexos próprios da lei. As que não constassem em nenhum anexo eram consideradas locais, caso inequívoco da Av. IV Centenário no trecho que diretamente interessa nesses autos.
Ora, sendo a via definida como local, não pode ser ligada a uma via estrutural, sob pena de grave e direta afronta ao art. 115, § 2º do Plano Diretor da Cidade de São Paulo!!!. Uma vez mais, socorremo-nos do ilustrado magistério do Prof. Cândido Malta Campos Filho, em seu brilhante parecer (doc. 8 – já mencionado):
"Assim, a hierarquia das vias que separam as interligadoras de bairros que são na nomenclatura do Plano Diretor as Estrutruais N1, N2 e N3 e mais as coletoras, não se confundem com as que não devem ter papel interligador, que são as locais.
Assim, o Mapa da Vias Estruturais e coletoras, assim como a sua relação nominal em quadros próprios na Lei 13.430/02 do Plano Diretor e na Lei 13.885/04, deixa muito claro esse conceito.
(...)
Fomos examinar no caso do Jardim Lusitânia quais vias deveriam receber, portanto, tráfego de passagem de acordo com o Sistema viário hierarquizado aprovado no Plano Diretor.
(...)
A Abertura da alça para entrada de veículos na ponta que se encontra o sistema de viadutos conhecido como Cebolinha está, portanto, vedada pelo Plano Diretor e pelos estudos do Plano de Transporte e de Habitação que estão sendo realizados (...)
Assim, a posição do Promotor José Carlos de Freitas, seguramente até agora desconhecendo os dispositivos legais que foram aprovados pelas Leis 13.430/02 do Plano Diretor e complementados pela Lei 13.885/04 – sua lei complementar, acaba por visar alterar, provavelmente, sem o saber, tais dispositivos legais que protegem o bairro Jardim Lusitânia."
Portanto, não há como deixar de reconhecer que o acordo firmado entre o Ministério Público, a CET e a Prefeitura fere de morte o art. 115 do Plano Diretor da Cidade de São Paulo e, na medida em que a Constituição Federal define o Plano Diretor como o instrumento básico de política de desenvolvimento e expansão urbana, fica patente a afronta reflexa à Constituição Federal. Todo o esforço dos planejadores urbanos para dotar São Paulo de maior racionalidade urbana, na medida do possível e sem desconsiderar a complexidade de nossa metrópole, é jogado na lata do lixo, literalmente, quando alguém opta por uma intervenção em contradição com esse Plano Diretor.
Na petição inicial do Dr. José Carlos de Freitas infelizmente há equívoco, "data vênia" quando classifica a via IV Centenário como "coletora". A via é local e isso é indiscutível. Eis aí novo vício de origem na demanda proposta o que, em decorrência, evidentemente produziu diversos equívocos.
Aí está a segunda grave ilegalidade presente no acordo cuja nulidade aqui se busca.
Mas ainda há mais!!!!
3ª ILEGALIDADE DO ACORDO
Um dos principais instrumentos normativos de proteção do Parque do Ibirapuera é a Resolução SC 01/92, de 18 de dezembro de 1992, publicada no Diário Oficial do Estado de 19 de dezembro 1992, expedida pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Historio, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estão de São Paulo - CONDEPHAAT (doc. 12).
O tombamento do parque ocorreu em decorrência da "extrema carência na metrópole paulistana de espaços verdes para recreação, lazer e para o exercício de práticas culturais", do "caráter inovador das edificações representativas da comemoração do IV Centenário de São Paulo" e da "importância do Viveiro Manequinho Lopes na produção de mudas para ajardinamento e arborização da cidade".
Importa destacar, para o caso dos autos, os itens "2", "3", "4" e "6" do art. 2º da Resolução em questão:
"Artigo 2º - Tendo em vista conciliar esforços integrados para a preservação da área tombada, fica estabelecido o seguinte conjunto de diretrizes, consideradas indispensáveis para garantir um caráter flexível e adequado à proteção dos bens nela contidos:
2. Todas as mudanças de uso das edificações, assim como as intervenções na área tombada – demolições construções, reformas, obras de conservação e restauração – serão objeto de prévia deliberação do CONDEPHAAT (v. Decreto Estadual citado no item anterior).
3. Não será permitido o aumento da área construída.
4. Não será permitida a diminuição dos atuais espaços permeáveis e/ou cobertos por vegetação em toda a área do Parque. O Condephaat incentivará a ampliação dos espaços permeáveis através da retirada do asfalto dos estacionamentos do Parque do Ibirapuera, assim como de arruamentos desnecessários, atualmente existentes.
6. Toda instalação que vier a ser executada dentro do perímetro tombado somente poderá utilizar materiais de caráter não permanente, que não danifiquem pisos ou vedações existentes."
O Parque é tombado, também, pela Resolução 20/91 do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – CONPRESP, complementada, pela Resoluções de Tombamento CONPRESP 06/97 (doc. 13) e 05/2003 (doc. 14). Da Resolução 06/97, que importa mais diretamente ao deslinde da questão posta nesses autos, vale destacar os seguintes dispositivos normativos:
"Art. 3º - O disposto nesta Resolução aplica-se aos seguintes elementos existentes no interior do perímetro descrito no art. 2º:
a) O atual traçado urbano, representado pelos logradouros públicos;
b) A vegetação de porte arbóreo e os ajardinamentos públicos e particulares que assim definem e preservam a área permeável do perímetro;
c) A volumetria do conjunto das edificações existentes que assim definem e preservam a densidade populacional da região.
(...)
Art. 5º Os projetos de novas construções, reformas, pequenas reformas, restaurações, regularizações, reformas ou modificações de gradis e muros de fecho ou divisas, desdobro ou remembramento de lotes, dependerão de exame, orientação e aprovação prévia do CONPRESP
Art. 6º - Os cortes ou podas de espécies arbóreas, modificações em áreas ajardinadas, públicas e particulares, e, alterações no atual traçado urbano dependerão de autorização prévia do CONPRESP."
A via de tráfego pretendida situa-se dentro do perímetro tombado, o que é inequívoco. Nesse sentido, basta mencionar que, no âmbito do Processo Administrativo 2007/0.296.633/5, procedimento aberto pela Municipalidade apenas e tão somente para preparar sua defesa na ação civil pública proposta pelo Promotor, onde foi lavrado o acordo que aqui se quer parcialmente anular, assim se manifestou a conceituada arquiteta Vânia Lewxowicz, que pertence aos quadros do DPH – Departamento de Patrimônio Histórico, órgão de caráter técnico vinculado ao CONPRESP (doc. 15):
"Em resposta às questões de folha 121 do presente processo, informamos que a praça em questão está contida no perímetro de tombamento na sua totalidade. Excluí-la fragmentaria o Parque Ibirapuera em si. Dessa forma, não achamos conveniente a reabertura da Avenida IV Centenário no trecho em questão."
Portanto, a CET e a Prefeitura Municipal de São Paulo firmaram acordo com o Ministério Público à revelia do que recomendava seu corpo técnico!!! Mais do que isso, fizeram-no sabendo que estavam contribuindo para mutilar área tombada, e não qualquer área tombada, e sim o principal parque público da cidade, o Parque do Ibirapuera!!!!!
Ora, uma vez constatado que a área em questão encontra-se integrada ao Parque do Ibirapuera, portanto dentro do perímetro tombado, fácil concluir que tanto as normas de tombamento expedidas pelo CONDEPHAAT quanto as expedidas pelo CONPRESP foram frontalmente hostilizadas. Aliás, esses órgãos públicos sequer foram consultados e, se fossem, evidentemente não poderiam autorizar a obra sem infringir suas próprias Resoluções normativas de tombamento.
De fato, como aprovar essa abertura de via de acesso sem desrespeitar os itens "3" (que veda aumento de área construída), "4" (que proíbe diminuir os espaços permeáveis do Parque do Ibirapuera) e "6" (que proíbe instalações dentro do parque com materiais permanentes) do art. 2º da Resolução de Tombamento do CONDEPHAAT? Como ignorar o item "2", que impõe prévia consulta ao CONDEPHAAT para qualquer obra de demolição, construção, reforma, conservação ou restauração?
Como ignorar o art. 3º da Resolução CONPRESP 06/97, que tomba o traçado urbano e a vegetação do Parque do Ibirapuera e seu entorno? Como ignorar os arts. 5º e 6º dessa Resolução, que impõe prévia consulta ao CONPRESP para qualquer corte ou poda de árvores, qualquer alteração no traçado urbano, qualquer reforma, modificação, colocação de gradil, muro, desdobro ou remembramento de lotes?
Note-se que a Resolução CONPRESP é extensiva ao entorno do Parque do Ibirapuera, criando restrições que atingem os imóveis particulares do entorno, o que cria o seguinte disparate: Se um proprietário de um imóvel lindeiro ao Parque do Ibirapuera, dentro da área tombada, desejar fazer uma pequena reforma, ou colocar um muro ou gradil em sua residência, ou ainda precisar cortar uma simples árvore, mesmo que doente ou com risco de queda, precisa consultar previamente o CONPRESP.
Por outro lado, as partes acordantes pretendem efetuar uma complexa obra de engenharia de tráfego, ligando uma Avenida altamente movimentada (Pedro Álvares Cabral) com outra via local, até aqui tranqüila, lindeira ao principal Parque da cidade (Ibirapuera) sem ninguém consultar!!!
Afrontar uma Resolução de Tombamento é desvirtuar o Parque do Ibirapuera de suas funções ambientais, culturais e de lazer. Numa palavra, é afrontar o patrimônio cultural da cidade de São Paulo. Mais um motivo pelo qual a abertura da alça de acesso deve ser vedada.