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Disputa de sentidos do conceito de quilombo.

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Agenda 14/09/2022 às 09:38

1. QUILOMBO: DE CRIME A DIREITO

A maior parte da narrativa sobre os quilombos encontra-se em documentos oficiais do Brasil Colônia e Imperial, nominando os quilombolas de assassinos, de salteadores, de criminosos sanguinolentos. Não se sabe, porém, como os membros dessas comunidades se autodenominavam (FREITAS, 1983; GOMES, 2015).

Em resposta a um questionamento do Conselho Ultramarino, a Coroa Portuguesa apresentou, no ano de 1740, um conceito que, para muitos, ainda hoje, resume o fenômeno quilombola: habitação de negros fugidos (SOUZA, 2012). Quilombo era crime, e como tal deveria ser tratado. Era a narrativa dos colonizadores.

A República, por sua vez, considerava apenas como cidadão, na acepção de eleitor, quem sabia ler e escrever (Art. 70, § 1º, II, da Constituição de 1891). A maioria dos negros e das negras era analfabeta, sem teto, sem emprego, sem educação, sem terra (CARVALHO, 2012). Foi se afirmando uma narrativa de que não há racismo no Brasil e aqui todos têm oportunidades iguais. É o mito da democracia racial (SILVA, 2016). É a narrativa da República.

Na Constituição de 1988, quilombo passa a ter um novo significado, migrando dos códigos de posturas municipais e de leis criminais para uma norma que garante direitos. Ou seja, as comunidades quilombolas, agora, expressam algo que o Estado não percebe como inimigo, pelo menos em sua expressão positivada no Direito, adotando no texto constitucional uma perspectiva dos colonizados, principalmente de negros e de negras para quem quilombo sempre foi resistência a um sistema opressor.

Essa opressão se materializa na desumanização do ser pela escravização de homens negros e de mulheres negras e por tê-los em índices oficiais que comprovam: “[...] é a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados, os menores salários, os piores índices de ascensão social” (CARVALHO, 2012, p. 52).

Ladeira da Gamboa

Há uma rua que eu conheço Rua Barão da Gamboa

tem uma ladeira de lado com o mesmo nome da rua nenhum barão mora lá mas, porém, gente que sua gente que sobe que desce gente que vai para a vida

gente que dela vem

não há meio de dizer-se na ladeira ninguém vem

você mesmo não se aguenta pois a ladeira é um vaivém parece mesmo com a vida tem subida tem descida Barão não

Poesia mesmo à toa

tem lama poeira buracos tudo o que a vida possui mas polícia não tem não polícia lá não influi

que a vida não tem polícia a vida é mesmo um vaivém igualmente esta ladeira

dá na gente uma canseira tem subida tem descida tem mais que tudo canseira igualmente esta ladeira

da Rua Barão da Gamboa. Que boa

Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa. (LIMA, 2016, p. 45-46).

É a partir do trabalho escravo e do comércio de seres humanos, inicialmente os indígenas, os negros da terra (FERREIRA; FRANÇA, 2012), e depois por meio do labor de mulheres negras africanas e de homens negros africanos e de afrodescendentes que o Brasil foi edificado. O longo tempo do regime escravocrata em terras brasileiras e as condições em que vive a maior parte da população negra apontam passividade, crasso engano. Nenhum desses grupos tolerou ou aceita passivamente a sua desumanização. Onde há desumanização, há quilombos.

O presente capítulo discute a escravização de povos africanos como uma espécie de criminalização da existência para usurpação de territórios, riquezas e apropriação da força de trabalho pelo domínio de corpos com a intenção de destruição de culturas para eliminar os obstáculos às pretensões do colonizador escravocrata.

O itinerário discursivo vai da abordagem da escravização africana como estratégia política de instauração da modernidade como seu par oculto, como projeto com pretensões genocidas de povos africanos e da América Latina; as resistências ao projeto e a discussão sobre o pós-abolição como continuação do projeto de escravização.

1.1. A escravização dos povos negros-africanos: a criminalização da existência como castigo

As pessoas que foram raptadas de suas moradias e trazidas ao Brasil para trabalharem compulsoriamente haviam nascido em regiões díspares, com organização social diferente uma da outra, com valores e tradições culturais peculiares:

Eram provenientes tanto de microssociedades com chefias descentralizadas da Alta Guiné e da Senegâmbia como de impérios e reinos do Daomé, Ndongo, Ketu, Matamba e outros: ou de cidades como Uidá e Luanda, nas áreas ocidentais e centrais africanas, entre savanas e florestas. (GOMES, 2015, p. 8).

Não havia uma África, mas várias. O olhar do colonizador não conseguia perceber as diferenças, os cheiros, os hábitos alimentares, as religiões, as danças. “De origens múltiplas, todos eles foram transformados – na visão dos europeus – em africanos, como se houvesse homogeneidade para inúmeros povos, línguas, culturas e religiões” (GOMES, 2015, p. 8).

Não queriam e não havia interesse em compreender essa heterogeneidade, porque crianças, jovens, homens e mulheres significavam apenas mercadoria, coisa, carne humana que seria colocada à venda. “Entre os escravizados havia reis, príncipes, rainhas, guerreiros, princesas, sacerdotes, artistas e um sem-número de agricultores, mercadores urbanos, conhecedores da metalurgia e do pastoreio” (GOMES, 2015, p. 8).

Essas pessoas tinham história própria, com conhecimentos e técnicas específicas, como agricultura, bovinocultura e destreza manual na confecção de peças em barro, couro e ferro, mas, sobretudo, cada um carregava sonhos, esperanças, frustrações, alegria, desprezo, raiva, ódio, rancor, ciúmes. Eram mães, pais, filhos, filhas, esposas, maridos, genros, noras, irmãos, irmãs, vizinhas, vizinhos, inimigos, inimigas, amantes. Todas essas relações foram violentamente desfeitas.

Trazidos à força de diferentes partes da África, falantes de dezenas de línguas, mas genericamente classificados de “boçais” ao desembarcar, os africanos tinham lugar na hierarquia da sociedade colonial. Quando recém- chegados, estavam no degrau mais baixo da escala social; [...]. (MAMIGONIAN, 2017, p. 17).

É a partir desse degrau mais baixo, em que foram jogados estes seres humanos, capturados como se fossem animais não humanos e comercializados em mercados nos quais se vendia e comprava carne humana, que se edificou a nova colônia portuguesa.

Segundo a cronologia desenvolvida por Moura (1992), a colonização do Brasil pelos portugueses é simultânea ao surgimento da raça negra por estas bandas, não sendo possível dissociar um fenômeno do outro. É a farta mão de obra negra africana e de seus descendentes que possibilitará ao colonizador gerir o sistema escravista voltado para a produção de bens que atendiam a interesses do mercado externo.

Por volta de 1530, os africanos trazidos sobre correntes, já aparecem exercendo seu papel de “força de trabalho”; em 1535 o comércio escravo para o Brasil estava regularmente constituído e organizado, e rapidamente aumentaria em proporções enormes. (NASCIMENTO, 2016, p. 57).

Esse tráfico intenso de seres humanos para a nova colônia supera a cifra de milhões de pessoas, não sendo possível apontar qual o número que mais se aproxima da realidade, uma vez que os documentos históricos e os arquivos relacionados à escravidão foram destruídos (NASCIMENTO, 2016).

Mattoso (2016) assevera que, no período de 1502 a 1860, cerca de nove milhões e quinhentos mil africanas e africanos foram deslocados para América, sendo que o Brasil recebeu a maior parte deles. Segundo Moura9, há quem estime em quinze milhões a quantidade de pessoas que foram arrancadas da África e trazidas forçosamente para estas terras. Para esse autor, no entanto,

O número exato de negros entrados no Brasil durante todo o período escravista não está definitivamente esclarecido e não acreditamos, mesmo, que isso venha a acontecer. Não apenas pelas deficiências das estatísticas, mas, especialmente, pela existência do contrabando negreiro, fato que levava a se ter uma visão minimizada das reais proporções dessa população. (MATTOSO, 1993, p. 6).

A destruição dos documentos históricos e dos arquivos relacionados à escravidão e ao contrabando negreiro, após a proibição do tráfico, em 1830, fragiliza os números apresentados por pesquisadores e pesquisadoras em relação à quantidade de seres humanos que foram arrancados da África para o Brasil, no período de 1549 a 1888. “Mas o certo é que quase 40% do total de africanos retirados do Continente Negro durante a existência do tráfico foram desembarcados no Brasil” (MOURA, 1992, p. 10).

De acordo com Nascimento (2016), o comércio escravo África-Brasil foi facilitado pela proximidade do continente africano à costa brasileira, reduzindo significativamente o preço dessa “mercadoria”, no caso, corpos de crianças, de jovens, de mulheres e de homens negros. Por isso, os proprietários de seres humanos escravizados preferiam a substituição de um negro por outro a alimentá-lo, a vesti-lo de forma a resguardar sua integridade física.

O fato de que a população escrava brasileira tivesse uma taxa de mortalidade bem superior à de natalidade indica que as condições de vida da mesma deviam ser extremamente precárias. O regime alimentar da massa escrava ocupada nas plantações açucareiras era particularmente deficiente. (FURTADO, 2017, p. 175).

Esse imenso contingente de negros e de negras foi responsável pela ocupação de praticamente todo o território brasileiro, iniciando pelo Nordeste e pelo Rio de Janeiro, depois se concentrando nas regiões das Minas Gerais, e, por fim, no estado de São Paulo. Essa distribuição de pessoas escravizadas negras ao longo de todo o país é um diferencial do escravismo brasileiro das demais regiões da América Latina.

Ao contrário de outras regiões da América do Sul, como Peru e Colômbia, onde o escravo negro ficou circunscrito a áreas determinadas, regionalizando-se o sistema escravista, aqui fincou pé a escravidão em toda a extensão territorial do que hoje constituiu a nação brasileira, marcando a existência de um modo de produção específico, no caso particular, o escravismo moderno. (MOURA, 1993, p. 5-6).

Como se pode notar, o sistema escravista no Brasil não ficou restrito a uma determinada região. Na busca incessante por lucros e riqueza, havia o deslocamento constante de negros e de negras escravizadas, seguindo a rota dos interesses da economia colonial.

Não há, portanto, nenhuma região do país que não tenha conhecido a escravidão. Para Moura (1993), essa ocupação quase uniforme do espaço geográfico brasileiro por essas almas e corpos negros possibilitou que o sistema escravista durasse por quase quatrocentos anos: “Isso porque esses escravos foram distribuídos de acordo com os interesses da economia colonial, na medida em que se desenvolviam as economias regionais, subordinadas às necessidades do mercado externo.” (MOURA, 1993, p. 8).

Essa capacidade de o tráfico negreiro adaptar-se às exigências de um mercado sedento por mão de obra escravizada deslocar-se-ia do litoral para o interior de um país de dimensão continental, “[...] mutação essencial que transformaria o mercado de escravos [...], sempre maleável, capaz de adaptar-se às novas necessidades” (MATTOSO, 2016, p. 77).

Assim, é a indústria açucareira, instalada nas regiões de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro que motivou a importação de seres humanos escravizados, nos séculos XVI e XVII, enquanto que, no século XVIII, a mineração foi a responsável pelo aumento da demanda de mão de obra escravizada. Já no século XIX, a cafeicultura impulsionou o tráfico negreiro, considerado ilícito desde 1830. Porém, o tráfico não ficou restrito apenas a esses ciclos econômicos, pois “Outros escravos eram comprados para a cultura do algodão e do arroz, para a colheita de especiarias ou serviam como domésticos, de trabalhadores alugados pelos senhores, ou mesmo como artesão.” (MATTOSO, 2016, p. 46).

Carvalho (2012) lembra que a criação do gado foi uma atividade importante desde o início da colonização, desenvolvendo-se principalmente no interior do país, gravitando em torno da grande propriedade agrícola.

Furtado, por sua vez, diz que a escravidão representou, desde a instalação do processo de colonização, “[...] uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra” (FURTADO, 2017, p. 76). Independentemente da atividade econômica, o trabalho era exercido por seres humanos escravizados: no início, os indígenas, denominados de negros da terra; depois, as negras e os negros africanos e seus descendentes.

A mão de obra indígena escravizada foi extremamente importante na etapa inicial da instalação da Colônia, sendo que “[...] a mão de obra africana chegou para a expansão da empresa, que já estava instalada” (FURTADO, 2017, p. 77). Conforme o próprio Furtado (2017, p. 84), houve, posteriormente, apenas a substituição de “[...] um escravo menos eficiente e de recrutamento mais incerto” por outro, no caso, crianças, jovens, mulheres e homens africanos.

Nas palavras de Lago (2014, p. 30),

Apesar de algumas plantações de açúcar terem sido iniciadas exclusivamente com base na mão de obra indígena, por uma série de razões esta se revelava pouco apropriada para o trabalho no campo em turmas. A solução definitiva adotada para garantir uma oferta regular de mão de obra baseou-se na experiência prévia dos portugueses na produção de açúcar com trabalho escravo africano nas ilhas atlânticas de Madeira e São Tomé, e foi em boa parte possível graças à existência de feitorias portuguesas na costa ocidental da África, onde era fácil o acesso a escravos. Com um volume suficiente de capital mercantil disponível, tornou-se praticável importar escravos africanos para o Brasil em quantidade significativa.

A colônia, à vista disso, foi edificada por seres humanos escravizados. Moura ressalta que a colonização portuguesa em terras brasileiras subjugou, inicialmente, os indígenas, primitivos habitantes e impediu “[...] o desenvolvimento autônomo dessas culturas” (MOURA, 2014, p. 76).

Negros, negras e indígenas foram tratados como mercadorias, como coisa, todavia, o comércio de corpos negros e de negras africanas mostrou-se muito mais rentável. “A burguesia comercial auferia lucros elevadíssimos do comércio de carne humana” (MOURA, 2014, p. 85). Com a escravidão negra, obtém-se lucro na compra, na venda e no aluguel. Conforme Holanda (2014), a fundação do Banco do Brasil, em 1851, está relacionada ao aproveitamento dos recursos obtidos com o tráfico negreiro.

Essa extinção de um comércio que constituíra a origem de algumas das maiores e mais sólidas fortunas brasileiras do tempo deveria forçosamente deixar em disponibilidade os capitais até então comprometidos na importação de negros. [...] A própria fundação do Banco do Brasil de 1851 está, segundo parece, relacionada com um plano deliberado de aproveitamento de tais recursos na organização de um grande instituto de crédito. (HOLANDA, 2014, p. 89).

Ao mesmo tempo em que o comércio de seres humanos gerava muito lucro, tornando- se “[...] a principal riqueza do continente negro, depois do ouro, das especiarias e do marfim” (MATTOSO, 2016, p. 40), a força humana de negros e de negras era utilizada ao extremo. É a mão de obra negra escravizada que produzirá alimentos e que será empregada em qualquer atividade lucrativa da Colônia e do Império. São essas pessoas que cumprirão as tarefas consideradas degradantes, menos nobres, aquelas tratadas como trabalho sujo: “Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os negros jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como sua geração.” (HOLANDA, 2014, p. 66, grifo no original).

Havia, também, os negros de ganho (HOLANDA, 2014), ou escravo ao ganho (SILVA, 1988), que trabalhavam em benefício de seus senhores que, dessa maneira, auferiam remuneração sem nada fazer, sem sujar as mãos ou manchar sua honra. “Assim, qualquer pessoa com fumaças de nobreza podia alcançar proveitos derivados dos trabalhos mais humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos” (HOLANDA, 2014, p. 69).

Lima (2005), em seu livro “Braço Forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí (1822-1871)”, revela que mãos negras foram utilizadas na construção de prédios públicos nas novas cidades.

As trabalhadoras viajaram de barco, saindo do porto de São Francisco, na companhia do mestre-de-obras, trabalhadores livres, ferramentas, utensílios e ‘“de alguns negros das fazendas”’. Outros trabalhadores escravizados, também pertencentes às fazendas, seguiam a pé, conduzindo os bois de carro que seriam ocupados na construção do marco da nova vila, a matriz de Nossa Senhora do Amparo. (LIMA, 2005, p. 88).

Embora o trabalho citado refira-se particularmente aos “escravos da nação”, pode-se deduzir, sem nenhum esforço, que durante o período em que vigeu o sistema escravocrata no Brasil, os negros e as negras escravizados participaram efetivamente das obras de construção, de reforma dos imóveis públicos. Nessas atividades, Silva (2014) lembra que os escravizados e as escravizadas executavam um penoso fardo, como carregar madeira, pedras, com alimentação precária e insuficiente.

Embora concentrados nas áreas de grande agricultura exportadora, podiam encontrar- se escravizados e escravizadas em todas as atividades, inclusive naquelas desenvolvidas nas áreas urbanas (CARVALHO, 2012). Este autor traz um resumo das tarefas exercidas por crianças, jovens, mulheres e homens negros escravizados:

Nas cidades, eles exerciam tarefas dentro das casas e na rua. Nas casas, as escravas faziam o serviço doméstico, amamentavam os filhos das sinhás, satisfaziam a concupiscência dos senhores. Os filhos dos escravos faziam pequenos trabalhos e serviam de montaria nos brinquedos dos sinhozinhos. Na rua, trabalhavam para os senhores ou eram por eles alugados. Em muitos casos, eram a única fonte de renda de viúvas. Trabalhavam de carregadores, vendedores, artesão, barbeiros, prostitutas. Alguns eram alugados para mendigar. (CARVALHO, 2012, p. 20).

Portanto, os negros e as negras foram essenciais para o começo da história econômica brasileira. “As necessidades variavam, porém, a mão de obra durante quase três séculos e meio era a mesma. Era o negro lavrador, minerador, doméstico, boiadeiro” (SILVA, 1988, p. 53). Foi, então, uma imensa massa escrava que impulsionou a economia brasileira, esmagando quase por completo o trabalho livre que existia antes da introdução do regime escravocrata, tornando o trabalho manual em infamante, devendo ser somente praticado por pessoas escravizadas (MOURA, 2014).

Sem o trabalho escravo, a estrutura econômica do país não teria existido (NASCIMENTO, 2016). Contudo, tal riqueza foi construída sob o signo de uma violência extrema, cruel, infame, desumana. “Punia-se o roubo, a fuga, a embriaguez, a preguiça” (COSTA, 2010, p. 333). Tudo era motivo para punição.

Nascimento (2016) destaca que se construiu o mito de que a escravidão na América Latina foi mais branda que aquelas existentes nas colônias inglesas na América. Por aqui, o escravo era fiel e obediente; o senhor, benevolente e amigo dos escravos. Para Costa (2010), a ideia romântica da suavidade da escravidão no Brasil foi orquestrada pela própria sociedade escravista. Para Silva (1988, p. 25),

Esta visão baseou-se nas fontes do século XIX, de viajantes americanos e ingleses recém-saídos da hospitalidade dos fazendeiros brasileiros proprietários de escravos e reproduziu-se, sem analisar o discurso do dominador, implícito nos sermões sobre a escravidão, nas listas de entradas de escravos no Brasil, nos relatórios policiais, nos relatórios dos governos coloniais, nas listas de mercadores negreiros.

Não é impossível que mesmo no sistema escravista, em algumas pontuais situações, o antagonismo existente entre o senhor e o ser humano escravizado tenha se diluído, abrandado, “[...] mas a instituição escravista propiciava os excessos, os crimes, a espoliação de um grupo pelo outro” (COSTA, 2010, p. 327).

O escravismo é um sistema hierárquico de produção, e seus aspectos específicos são esclarecidos por referência ao sistema. Em particular, como qualquer sistema hierárquico, ele tem contidos nele loci de violência e de opressão que estarão eventualmente situados em pontos diferentes em diferentes sociedades, mas não poderão deixar de existir. (CUNHA, 1985, p. 17).

A exceção, o bom trato às pessoas escravizadas, apenas realça a regra: o sistema escravista é violento. “Mas uma sociedade que aceitava como medida imprescindível a aplicação dos castigos corporais para manutenção da ordem era fácil chegar aos excessos criminosos cometidos por inúmeros deles” (COSTA, 2010, p. 332).

A violência era tamanha que a média de vida útil de um ser humano escravizado no Brasil não ultrapassava sete anos (MOURA, 1993). As punições, os castigos que os senhores aplicavam quando as negras e os negros escravizados se rebelavam contra as deprimentes condições de vida e de trabalho a que estavam submetidos, eram extremamente cruéis, sórdidos.

Deformações físicas resultantes de excesso de trabalho pesado; aleijões corporais consequentes de punições e tortura, às vezes de efeito mortal para o escravo – eis algumas das características básicas da “benevolência” brasileira para com a gente africana. (NASCIMENTO, 2016, p. 69).

A crueldade na aplicação de tais castigos não deve ser considerada um simples desvio psicológico do senhor, uma patologia psíquica, mas uma prática inerente, própria do sistema escravista no qual o trabalho é resultante de uma imposição, “[...] o grupo dominante vê-se frequentemente obrigado a recorrer à violência física, quando queira alcançar seus desígnios” (COSTA, 2010, p. 329). Nessa mesma linha de pensamento, Silva (1988, p. 29),

A violência continua institucionalizada, e inerente ao sistema e mesmo um senhor patriarcal e paternalista devia obrigatoriamente exercê-la, quando chegasse o caso. A manutenção da escravidão não pode em nenhum caso prescindir da violência, e tampouco de um controle e vigilância estrito do escravo. Se este aceita as normas de conduta estabelecidas e socialmente aceitas, ele pode beneficiar-se do paternalismo.

Não existe, pois, escravização sem violência. No entanto, legalmente, o senhor não possuía o direito de vida e morte sobre os escravizados, pois havia autorização legal apenas para infligir castigos moderados. Porém, Costa sugere que se tratava apenas de uma garantia formal, principalmente nas fazendas distantes das cidades.

O negro das fazendas era tratado mais brutalmente do que o da cidade, onde era mais fácil o controle das arbitrariedades, embora a proteção da justiça fosse, nos primeiros tempos, muito mais teórica do que prática. A situação agrava-se nas regiões mais distantes subtraídas à ação da lei. No isolamento das fazendas, o proprietário exercia, sem controle, um ilimitado poder. (COSTA, 2010, p. 331).

Havia, apenas, a gradação da violência praticada contra as pessoas escravizadas: na zona urbana, os negros e as negras eram violentados, porém, aparentemente de forma mais branda, uma vez que estavam sob proteção dos aparelhos do Poder Judiciário. Porém,

A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados. (CARVALHO, 2012, p. 21).

Se a lei considerava ilícito o uso da violência física, restringia-se aos excessos (COSTA, 2010), pois era lugar-comum entre os donos de seres humanos escravizados a necessidade da aplicação de corretivos, isto “[...] numa época em que os castigos corporais ainda se achavam incorporados à educação – como meio eficaz – adotados em escola de renomada [...]” (COSTA, 2010, p. 330).

A proteção legal esbarrava na realidade. De um lado, estava o senhor, dono de imensas propriedades; do outro, um ser humano escravizado, que a própria lei o considerava como coisa. “Frequentemente, em vez de conflito entre as autoridades e os grandes proprietários, havia entre eles conluio, dependência mútua” (CARVALHO, 2012, p. 22).

A própria lei estabelecia limitações processuais aos negros e às negras vítimas do abuso do senhor. Ao escravizado, não era permitido queixar-se do proprietário pessoalmente, devia fazê-lo por qualquer do povo ou pelo promotor público. E o mais grave: os demais colegas de senzala eram impedidos legalmente de testemunhar em juízo as atrocidades que porventura presenciassem (COSTA, 2010).

A autora afirma que essas restrições foram sendo modificadas por força das reivindicações abolicionistas, sendo que tais alterações ocorreram de forma mais perceptível nas cidades do que nas fazendas. Nestas, os feitores executavam os castigos de acordo com a vontade do senhor: “O escravo raramente tinha a quem apelar. Seu sofrimento, seu aviltamento, as torturas a que era submetido, preso ao tronco, açoitado, seviciado pela brutalidade dos castigos, ocorriam distantes, longes da ação da justiça” (COSTA, 2010, p. 332).

Os escravizados não tinham a quem recorrer para evitar as torturas perpetradas pelos feitores a mando dos senhores. Na fazenda, o senhor era o proprietário, o legislador, o magistrado e o próprio tribunal a quem o escravizado deveria apelar.

A imaginação dos escravizadores na criação de instrumentos de tortura era extremamente fértil, não encontrando limite ético ou legal. De acordo com Costa (2010), os castigos mais utilizados foram: o chicote, a palmatória, o tronco, as argolas de ferro, as algemas, os anjinhos, a máscara de latão e o aprisionamento.

A tortura não pretendia apenas infligir dor, sofrimento, mas envergonhar o escravizado diante dos seus, extrair-lhe por inteiro a dignidade humana, demonstrar que a propriedade sobre o seu corpo era praticamente plena: usar, gozar e dispor da forma que lhe melhor conviesse.

Tão frequente nas senzalas, quanto o do açoite e da palmatória, foi o uso dos troncos. Seu objetivo era imobilizar o escravo. Obrigava a posições mais ou menos forçada, torturava-o pelo cansaço, pela impossibilidade de se defender dos insetos que o atacavam, pelo desgaste físico e moral. (COSTA, 2010, p. 335).

Todas as torturas, os castigos objetivam desgastar física e moralmente o ser humano escravizado. Como as marcas do aviltamento moral não são perceptíveis, facilmente marcava- se o escravizado com ferro em brasa como se fosse um bicho, um animal irracional, sem nenhum valor como ser humano, apenas uma coisa, mercadoria que se aliena.

Nesse universo de horrores, em que a torturava imperava, nenhum ser humano escravizado encontrava-se isento de severas penas corporais. As crianças não estavam salvas da selvageria do regime escravocrata. Ao contrário, eram as principais vítimas das condições subumanas a que estavam submetidas.

O tratamento descuidado e os abusos de que eram vítimas provocaram uma alta taxa de mortalidade infantil entre a população escrava. No Rio de Janeiro, cidade onde teoricamente os escravos desfrutavam melhor tratamento do que em qualquer outra parte do país, a mortalidade infantil se elevava a uma taxa de 88%. (NASCIMENTO, 2016, p. 70).

As crianças que sobreviviam enfrentavam uma vida de angústia, de dor, de sofrimento, de negação da sua própria qualidade de ser humano, de coisificação de seus irmãos, de seu pai e de sua mãe.

Nascimento (2016) denuncia que era comum a manutenção de negras africanas em prostituição como meio de renda de senhores e sinhás. A mulata, a mulher negra miscigenada, segundo esse autor, quase sempre era oriunda de estupro sofrido pela mulher africana, cometido pelo homem branco, dono das terras ou da habitação em que ela residia. Em relação aos idosos, o relato do autor é extremamente elucidativo:

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado – aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, à própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres”. Não passava, a liberdade sob tais condições, de pura e simples forma de legalizado assassínio coletivo. (NASCIMENTO, 2016, p. 79).

Essa mesma sorte era destinada aos enfermos incuráveis, aos inválidos, aos quais era concedida a liberdade sem nenhuma assistência médica ou social. Porém, a violação não era dirigida apenas aos corpos dos negros e das negras africanas e de seus descendentes, havia uma “agressão espiritual” (NASCIMENTO, 2016, p. 123) por meio do batismo a que eram submetidos ainda no continente africano.

Isso tudo porque, proibindo o embarque de escravos não batizados, os portugueses organizavam batismos em grupo ou, em substituição da cerimônia, o padre se contentava em dar ao cativo um nome cristão colocando um pouco de sal na língua do cativo. (MATTOSO, 2016, p. 66).

O batismo era repetido nos portos ou nas plantações, antes que esses seres humanos escravizados iniciassem suas tarefas nas plantações em uma jornada de trabalho que geralmente ultrapassava 12 horas (MATTOSO, 2016). Talvez o escravizado não entendesse o rito, muito menos a que se destinava. O certo é que não havia crença, nem a sua nem a do seu torturador, que evitasse as sevícias, as humilhações que a partir daí receberia cotidianamente.

Castigos cruéis, jornadas de trabalho extenuantes, alimentação precária e condições de habitação deploráveis, esses elementos se entrecruzavam, entrelaçavam-se em uma dança fúnebre que durava sete anos. No entanto, aqueles seres humanos nascidos africanos ou descendentes de africano, teimosamente, cultivavam em seus corpos negros algo de humano.

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De fato, o corpo negro guardava em si esta ambiguidade: mercadoria para colonizador; mediador da resistência para o ser escravizado. Por isso, as mutilações aos escravizados e às escravizadas desobedientes eram contumazes: amputavam-se pés, cortavam-se orelhas, esmagavam-se dedos (MATTOSO, 2016). O corpo expressava os vestígios do delito e da luta pela sua reumanização.

A tensão existencial do escravo reside exatamente na contradição entre pessoa e coisa. É possível tentar coisificar uma pessoa, mas é impossível levar esta coisificação ao ponto final. Restará sempre um cerne indestrutível. Um indestrutível átomo de humanidade. E é justamente esta chama de humano que aquece a rebeldia essencial. (RISÉRIO, 2012, p. 326).

E por guardar esse facho de humanidade em si que negras e negros escravizados resistiram ao sistema escravocrata que os considerava e os tratava como coisa. E mais do que isso: produziram a própria libertação (SILVA, 2016) em uma história lenta, envolta em dores, fugas, mortes, suicídios e quilombos.

1.2. A Resistência Individual e Coletiva do Povo Negro

A reação do povo negro ao sistema servil decorreu de sua situação de escravo, da sua desumanização, da sua transformação em coisa, em mercadoria (MOURA, 2014). Essa resistência deu-se de forma individual ou em grupo e se expressou de maneira bastante diversificada: a morosidade na execução das tarefas, preguiça – desamor ao trabalho –,insurreições, roubos, furtos, rebeliões, lesões corporais, homicídios, tentativas de homicídios e fugas (COSTA, 2014).

Qualquer enumeração, por mais exaustiva que seja, não consegue descrever todos os métodos, os meios e as manhas pelos quais os africanos, as africanas e os afrodescendentes resistiram à escravização. “Forjavam-se de modo complexo e multifacetado, uma vez que homens e mulheres escravizadas agenciavam sua vida com lógicas próprias entre experiências sociais concretas em cada sociedade” (GOMES, 2006, p. 8).

Costa (2014), historiadora piauiense, afirma que a fuga de escravizados e escravizadas foi a mais conhecida e habitual forma de resistência no Brasil escravista. A fuga representou uma maneira de contestar um sistema que se baseava na mão de obra servil. O escravizado fujão ou a escravizada fujona reclamavam o direito de ser humano, de gozar de liberdade.

Os escravos [...] foram reduzidos à condição de coisa, isto é, alguém que possuía apenas ‘“consciência passiva”’ da situação em que se encontrava, e cuja ação refletia os desígnios dos senhores. A ‘“socialização parcial”’ e o controle estrito de seu comportamento, que se impunham como requisitos para a persistência das relações de dominação-subordinação na ordem escravocrata, destruíam nos escravos os atributos de pessoa humana. (CARDOSO, 2011, p. 307).

Se a lei considerava a pessoa escravizada como objeto de direito, categorizando-a como coisa, como mercadoria que se aliena, a fuga resgatava a subjetividade do ser negro, “[...] ao colocar-se de modo ativo em relação ao seu proprietário e em relação ao próprio sistema escravista” (COSTA, 2014, p. 59). Todos e todas fugiram: crianças, jovens, adultos e idosos.

Essa subjetividade da pessoa escravizada que empreendia fuga provoca um giro, ainda que parcial, no olhar que o direito possuía sobre ela: de coisa do comércio para a esfera do direito penal. Leis, códigos de posturas passam a ser elaborados para exercer controle e vigilância sobre esses corpos negros em fuga (COSTA, 2014). O indivíduo escravizado desponta dos registros policiais: suas características pessoais são descritas, tornando-o único, individualizado.

Nessa descrição quase fotográfica dos indivíduos, o olhar do escrivão fixava- se em: características faciais, estatura, tamanho e formato do rosto, boca, nariz, textura do cabelo, sinais e cicatrizes no corpo, marcas étnicas e condições de dentição. Isso mostra que, ao chegar à delegacia, os presos eram submetidos a um exame físico minucioso. (FRAGA, 2014, p. 156).

De uma massa considerada uniforme, em que todos e todas se parecem, não podendo se distinguir um do outro ou uma da outra, a individualidade do homem negro em fuga ou da mulher negra em fuga emerge. Descrito, geralmente, pelas cicatrizes e pelas marcas que seu corpo rebelde traz, o escravizado ou a escravizada se individualiza, torna-se único.

As fugas também deixavam suas marcas no sistema escravocrata, ao ferir a ordem estabelecida, arranhando-a, provocando infiltrações. Na segunda metade do século XIX, por exemplo, as fugas aconteceram de forma mais intensa, em função das modificações sofridas pela sociedade escravista: perda da legitimidade da escravidão entre a população livre; recriminação mais intensa das práticas escravistas; e aumento do número de libertos (COSTA, 2014). Os escravizados e as escravizadas liam a realidade e percebiam a situação ideal para empreender fuga.

Uma nova conjuntura foi se formando gradativamente. A esse novo contexto, tanto os livres como libertos e também os escravos foram se adaptando e influenciando, através de inúmeras atitudes, essas alterações, conforme seus anseios. (COSTA, 2014, p. 60).

As fugas representavam, pois, uma fissura no regime servil e nas fendas desse sistema. O indivíduo negro escravizado se estabelecia como sujeito da história, autor e senhor da sua vontade.

Imersos em um sistema que os violentava, homens negros e mulheres negras também cometeram violência contra quem os subjugava. “Através das fontes analisadas, percebemos que a violência estava presente no cotidiano das relações sociais entre escravos e livres, e até mesmo, entre os próprios escravos e entre eles e os libertos” (COSTA, 2014, p. 76).

Assim, escravizadas e escravizados procuraram ferir de morte aqueles e aquelas que, no elo do sistema escravocrata, se encontravam mais próximo a eles e a elas, isto é, a quem, em princípio, deviam lealdade, obediência e servidão: senhores, membros da família senhorial e feitores.

Há relatos de envenenamento de toda a família senhorial por mulheres negras escravizadas:

A cozinha, local de trabalho onde provavelmente a negra Raimunda fazias as deliciosas refeições para a família do senhor Benedicto Lima Passos, também serviu de lugar de resistência, e a comida que durante muito tempo servira para alimentar seus senhores foi a mesma utilizada para envenená- los. Na noite em que matou toda aquela família, a escrava caprichou ainda mais na refeição, que exalava naquele momento o ‘“cheiro”’ da vingança e o ‘“sabor”’ da liberdade. (COSTA, 2014, p. 81).

O alimento da vingança estava posto sobre a mesa: humilhações frequentes, violência sexual, trabalho árduo, espancamento de marido, filhos e outros parentes. A aceitação de tudo que negava sua condição de ser humano era apenas aparente. Raimunda sentia todas aquelas dores e refletia sobre elas.

Em outras situações, o furto e o roubo aparecem como meio de minorar a situação de miséria em que se encontravam negras e negros escravizados. Furtavam e roubavam aquilo que era fruto do próprio trabalho, mas que não os pertencia por direito.

O direito procurava silenciá-los, amedrontá-los, punindo a ousadia. Qualquer atitude dessas pessoas que significasse uma afronta ao sistema escravocrata, que os considerava como coisa, portanto, desprovido de vontade própria, era considerada como crime na forma da lei (COSTA, 2014).

Dentro de um contexto de extrema violência, de coisificação do ser humano, da negação da dignidade humana, do aviltamento do corpo, o suicídio pode ser considerado uma forma de resistência. A morte contracenava com a liberdade.

Embora o escravo urbano gozasse de maior autonomia que o escravo das fazendas, os suicídios eram mais frequentes nas cidades do que no campo. Os relatórios policiais indicavam algumas razões pelas quais um escravo se suicidava: impossibilidade de a justiça conceder amparo contra maus-tratos, incapacidade do escravo do ganho pagar ao senhor a soma estipulada em contrato, falsas acusações, o medo de ser vendido e levado para longe, fuga fracassada, roubo descoberto etc. O medo levava ao suicídio. Medo vingador para o qual todos os meios eram bons: asfixias, engolindo a própria língua, enforcamento, estrangulamento, geofagia. (MATTOSO, 2016, p. 180).

Individual ou coletivamente, mulheres negras e homens negros resistiram à violência contra os seus corpos, contra os seus valores. Se alguns preferiram a morte a viver escravizados, outros fugiram em bando, organizando os quilombos.

Para Clóvis Moura (2014), o quilombo é a unidade básica de resistência de mulheres e de homens negros escravizados. De acordo com Mattoso (2016, p. 186), “[...] uma comunidade da recusa, uma solidariedade na resistência nascida com a força irresistível da própria escravidão”.

No Brasil, os quilombos não se restringiram a uma determinada região ou ficaram circunscritos a uma época específica da história do regime escravocrata. Moura vocifera: onde houve escravização, houve quilombo.

O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse. Não era simples manifestação tópica. Muitas vezes surpreende pela capacidade de organização, pela resistência que oferece; destruído parcialmente dezenas de vezes e novamente aparecendo, em outros locais, plantando a sua roça, construindo suas casas, reorganizando a sua vida social e estabelecendo novo sistema de defesa. O quilombo não foi, portanto, apenas um fenômeno esporádico. (MOURA, 2014, p. 163).

Ao fugirem coletivamente, homens negros e mulheres negras se aquilombavam, procurando reorganizar suas vidas com uma “[...] base econômica e estrutura social própria [...]” (GOMES, 2015, p. 9), objetivando resgatar sua condição humana violada. Espraiando-se por todo o território brasileiro, essa onda negra gerada por milhares ou algumas centenas ou dezenas de negros e de negras arrastou consigo fazendas, senhores, sinhás, feitores.

Desde o início, os escravizados e as escravizadas lutaram. Não importa se eram escravos do eito que trabalhavam nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café e algodão, ou mesmo nas minas de ouro. Escravizados ourives, pedreiros, ferreiros, carpinteiros, cozinheiros, amas de leite, barbeiros, mendigos de ganho, prostitutas de ganhos, todos se aquilombaram.

Por isso, os quilombos constituíam-se em um elemento de desgaste do sistema escravocrata, uma vez que a fuga e o rapto de escravizados e escravizadas representavam a redução das forças produtivas de quem se utilizava do regime servil.

Em diversas situações e em vários locais do país, os quilombolas se uniram aos indígenas para lutar contra a escravização (MOURA, 2014). Algumas vezes venceram, em outras, a maioria, foram destroçados. Essas derrotas convertiam-se em experiências que serviam para a construção de outro ou de outros quilombos.

Muitos dos escravos vindos de Palmares – com experiência de luta adquirida naquele reduto – estabelecerão um agrupamento de quilombolas em Cumbe, hoje usina Santa Rita. Iniciarão, logo depois de estabelecidos no local, uma série de ataques que os deixará temidos. Investiam contra fazendas para conseguirem víveres, armas e novos elementos que iriam engrossar o corpo dos insurretos. (MOURA, 2014, p. 167).

A formação de quilombo não só aumentava o desejo de fuga de homens e mulheres escravizadas, mas também gerava, por meio dos ataques às fazendas, mecanismos que facilitavam a fuga. Nas palavras de Shwartz (2016, p. 431), “[...] os quilombos se espalhavam pela zona rural e serviam de farol e refúgio para os escravos do engenho”. Os quilombos se alimentavam da esperança de resgatar a condição de humano perdida. As derrotas não os impediam de continuar se organizando para lutar.

Essa forma de luta não se constituiu em uma experiência que apenas a sociedade escravista brasileira presenciou. Nas Américas, onde houve escravidão, houve quilombos, palenques, cumbes, marrons. Em relação a esse fenômeno, mesmo na América espanhola, não há única palavra para nomeá-lo, mas várias, dependendo do país ou região em que aconteceu.

A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outras personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palenques, cumbes, etc.; na inglesa, marrons; na francesa,grande marronage (para diferencial da petit marronage, a fuga individual, em geral temporária). No Brasil, esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. (GOMES; REIS, 2016, p. 10, grifos dos autores).

Essa profusão de palavras com traduções que não guardam sintonia em si talvez indique que simplesmente resgatar a origem da palavra quilombo não seja o melhor caminho para compreender o fenômeno em sua inteireza.

Gomes (2015) chama a atenção de que, no Brasil, inicialmente, mocambo era a palavra pronunciada e escrita para designar tal fenômeno, e só posteriormente, no século XVII, foi substituída pelo termo quilombo. Além disso, “[...] as comunidades de fugitivos foram denominadas ao mesmo tempo de mocambos, principalmente na Bahia, e de quilombos em Minas Gerais; e o termo quilombo apareceu em Pernambuco somente a partir de 1681” (GOMES, 2015, p. 11, grifo no original).

Todas essas designações, a princípio, foram criadas e utilizadas pelas autoridades portuguesas. De acordo com Freitas (1983, p. 63), “[...] não dispomos de fontes diretas dos próprios quilombolas, que nada deixaram escritos, o que nos reduz às informações indiretas dos seus inimigos”. Para esses, autoridades coloniais e imperiais, a palavra quilombo designava local que abrigava escravos fugidos, por isso, criminosos, foras da lei.

No Brasil, os negros e as negras não demoraram muito para “cair na ilegalidade”. Oficialmente, o primeiro quilombo erguido em terras brasileiras aparece no Nordeste, mais precisamente no estado da Bahia, no ano de 1575. Antes havia cativos, agora há, também, os quilombolas, calhambolas ou mocambeiros (GOMES; REIS, 2016).

Fugir não era fácil. Além de vigilância severa, havia o desconhecimento, quase completo, das matas que circundavam os engenhos. Fugir, geralmente, era uma ação planejada em que os negros e as negras esperavam o momento mais adequado (GOMES, 2015).

Planejado ou fruto da angústia, os quilombos logo se espalharam por todo o Brasil, exercendo atração sobre negros e sobre negras que estavam no eito e na senzala, causando prejuízo aos senhores, pelos assaltos que os quilombolas praticavam contra os engenhos e as fazendas (GOMES, 2015).

Assim, a população de um quilombo é formada: inicialmente pelo grupo que desertou, depois alimentada em número de componentes pelos os que fugiram, individualmente ou em grupo, em sua direção após ele ser erguido. Segundo Gomes (2015, p. 14), muitos quilombos originaram-se de insurreições.

Se a revolta já atemorizava fazendeiros e autoridades – ainda mais nas áreas urbanas –, a possibilidade de uma rebelião virar um quilombo, ou, pior, um quilombo se transformar num deliberado ataque às vilas, fazendas e cidades era amedrontadora. Em fins dos séculos XVII, as autoridades baianas ficaram apavoradas com um levante com mais de cem escravos e a comunicação que eles estabeleceram com os quilombos em Camamu. Em Minas Gerais, em 1756, temia-se que escravos e quilombolas se articulassem para uma insurreição.

O temor de uma revolta coletiva da comunidade negra perseguiu os sonhos dos senhores e das autoridades coloniais e imperiais até o dia 13 de maio de 1888, e, quem sabe, depois dessa data também.

Acontece que qualquer quilombo desestabilizava a região. Havia aqueles quilombos que se fixavam em um determinado local, construindo moradias e plantando roças, e aqueles formados por pequenos grupos, que migravam permanentemente, procurando abrigo e meios que lhes garantisse sobreviver (GOMES, 2015). Um e outro causavam prejuízos.

Mais interessados em analisar os grandes e populosos quilombos, a historiografia da escravidão no Brasil deu pouca atenção aos pequenos quilombos que se incrustavam nos morros e encostas das cidades escravistas. Eles surgiam e desapareciam aos olhos das autoridades, dos senhores que reclamavam do sumiço de seus escravos, da imprensa que denunciava ou mesmo de viajantes que aqui passavam e bem sabiam disso tudo. (GOMES, 2015, p. 18).

Portanto, a composição numérica de um determinado quilombo poderia destoar significamente de outra comunidade em unidades, dezenas, centenas ou mesmo milhares.

Legalmente, porém, havia normas provinciais que considerava quilombo um ajuntamento de duas pessoas negras em fuga (MATTOSO, 2016).

Independentemente da quantidade de membros, no quilombo, pulsava vida de seres humanos que lutavam contra a coisificação, contra a sua desumanização, envolvendo-se com o comércio local, vendendo coisas que produziam, comprando alimentos e armas para enfrentar seus inimigos. Gomes (2015) defende que a proliferação de comunidade de fugitivos deveu-se pela capacidade de articulação com “[...] lógicas econômicas das regiões onde se estabeleceram” (GOMES, 2015, p. 20).

Nunca isolados, mantinham trocas econômicas com variados setores da população colonial, que incluíam taberneiros, lavradores, faiscadores, garimpeiros, pescadores, roceiros, camponeses, mascastes e quitandeiras, tantos escravos como livres. [...] No século XIX, as posturas municipais em várias regiões reproduziam num quase coro os artigos que tentavam reprimir os contatos e o comércio de quilombolas nas vendas e tabernas das vilas. (GOMES, 2015, p.20).

Tudo isso expõe que os quilombos faziam parte da dinâmica das cidades e dos lugarejos próximos onde estavam encravados, e que o isolamento não era a regra, mas exceção. Esses relacionamentos não impediram, por si só, os conflitos, mas “[...] significaram experiências que conectavam toda a sociedade escravista, tanto aquela que reprimia como a que acobertava os quilombolas e suas práticas” (GOMES, 2015, p. 20).

Essa integração entre os quilombolas e as vilas depende, logicamente, da proximidade com os núcleos habitacionais. Naqueles que se findaram nos arredores das Vilas e dos engenhos, o intercâmbio era, praticamente, intermitente.

Muitos desses quilombos não estavam longe dos núcleos populacionais, as cidades e engenhos, e sobreviviam de ataques e do comércio com populações vizinhas. No início do século XIX, os quilombos suburbanos – no Cabula, Matatu ou Itapoan, nas imediações de Salvador – estavam cada vez mais integrados à vida da escravidão urbana, talvez mesmo servindo, às vezes, como destinação de fugas temporárias, centros de assistência e descanso para os escravos urbanos. (SCHWARTZ, 2016, p. 432).

Essa integração permitia a formação de relações econômicas por meio das quais os quilombos forneciam farinha de mandioca, feijão, arroz, peixes, lenha, inclusive cachimbo e outros utensílios de cerâmica, de couro e de ferro à Vila, além de produtos roubados. Os quilombos procuravam ter produção artesanal e agrícola diversificada, embora possuíssem “vocação” própria. Freitas (1983, p. 63) classifica os quilombos de acordo com a economia da comunidade:

Segundo a forma de subsistência, houve pelos menos sete tipos de quilombos: os agrícolas, que prevaleceram por toda parte do Brasil; os extrativistas, característicos da Amazônia, onde viviam das drogas do sertão; os mercantis, também na Amazônia, que adquiriam diretamente de tribos indígenas a drogas para mercadejá-las com os regatões; os mineradores, em Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso, os pastoris, no Rio Grande do Sul, que criavam gado nas campanhas ainda não apropriadas e ocupadas pelos estanceiros; os de serviços, que saíam dos quilombos suburbanos para trabalhar nos centros urbanos, fazendo-os passar por negros forros; os predatórios, que existiram um pouco por toda parte e viviam dos saques praticados contra os brancos. Nos seis últimos tipos, a agricultura não estava ausente, mas desempenhavam um papel subsidiário.

Nos casos, quando o extrativismo era principal atividade econômica desenvolvida pela comunidade de fugitivos, como os acampamentos se encontravam mais afastados dos centros urbanos, para negociar com os donos das vendas, os quilombolas erguiam entrepostos provisórios (GOMES, 2015). Essa relação quilombo-vilarejo possibilitava a manutenção da comunidade.

No entanto, a principal face quilombola era camponesa, como bem apontou Freitas (1983). Ao lado da monocultura, marginalmente, pulsavam as hortas, as roças quilombolas: batata-doce, milho, feijão, inhame, arroz, mandioca, inclusive cana-de-açúcar. Mas não só isso: em alguns quilombos se produziam roupas e peças e utensílios de metal e de couro.

Marcações de ‘“casas de ferreiro”’, ‘“casa de tear”’, ‘“casas de pilões”’ e ‘“curtume de couros”’ sugerem ali formatações econômicas complexas, com quilombolas mantendo lavouras, fabricando farinha em seus “pilões”, produzindo roupas com os teares e manejando forjas de ferreiro para fabricarem utensílios e ferramentas, além de incipiente manufatura de couros. (GOMES, 2015, p. 27).

Moura (2014) aponta que grande parte dos grupos africanos que foram traficados para o Brasil detinha técnica agrícola relativamente adiantada, além de conhecimentos em fundição de metais. A cumplicidade dos donos das vendas advém exatamente do fornecimento pelos quilombolas de produtos que as Vilas não confeccionavam. Além de adquirirem produtos que não produziam, os quilombolas recebiam notícias sobre milícias, formadas para destruir os quilombos.

A relação dos quilombos com as cidades e as senzalas ia além da compra e da venda, havia uma verdadeira integração social. “Em Sergipe, os quilombolas eram acusados de visitar as senzalas e participar das festas de congadas organizadas pelos escravos” (GOMES, 2015, p. 21). “A reclamação de quilombolas em tabernas era tanta que se dizia que ‘[...] cada venda é um quilombo’ em Vila Rica” (GOMES, 2015, p. 20). Os quilombolas também se entrecruzavam nas feiras com escravizados e escravizadas.

Cativos e quilombos constituíram práticas econômicas a partir das quais interagiram. Escravos frequentavam feiras e mercados locais aos sábados e domingos – em seus “das livres” costumeiros – onde, montavam “quitandas” e vendiam produtos de suas roças. Lá podiam encontrar quilombolas com o mesmo objetivo: estabelecer conexões mercantis. (GOMES, 2015, p. 28).

Depreende-se desta afirmação de Gomes que os escravizados e as escravizadas também plantavam roças e que comercializavam seus produtos em feiras livres. A relação de negras e negros cativos com a terra ia além do trabalho compulsório nas plantações, pois, em algumas situações, os escravizados recebiam parcelas de terras para cultivarem suas roças, portanto, tratava-se de complexidade com várias facetas na luta para conquistar sua autonomia.

Os quilombolas radicalizavam nessa busca, e as mulheres negras exerciam papel de destaque na comunidade. Gomes (2014) assevera que há poucas notícias sobre mulheres nos quilombos. Para ele, deve-se ao fato de que os relatos sobre essas comunidades geralmente partiam de comandantes das tropas que pesavam as tintas nas dificuldades que tiveram de vencer para destruir os quilombos.

Há raras notícias sobre a presença da mulher nos mocambos, sugerindo equivocadamente sua ausência ou menor importância. Temos de lembrar que aqueles que descreveram os quilombos – especialmente os comandantes das tropas – o faziam para justificar a necessidade de sua destruição. (GOMES, 2014, p. 39).

Ao tempo em que invisibilizavam a presença feminina, os homens eram tachados de fujões, bandidos, assassinos, loucos (GOMES, 2015). Mas, segundo Gomes, as mulheres desempenhavam atividades econômicas e militares, por conseguinte, no enfrentamento das tropas escravistas. Ao que parece, havia divisão de tarefas por conta do sexo, mas em situação de agressão, a defesa do quilombo pertencia a todos e a todas. Defender, aqui, possui o sentido de combate, como de encontrar meios que garantissem a sobrevivência da comunidade.

Certos mitos na memória coletiva de alguns remanescentes revelam a função das mulheres. Por exemplo, cabia a elas esconder o máximo de grãos na cabeça – entre seus penteados – e escapar para as matas, o mais longe possível. A economia de um quilombo atacado era reconstruída exatamente a partir desses grãos. (GOMES, 2014, p. 39).

Essas sementes representam a possibilidade de se criar o novo, de gerar alimentos para a comunidade de acordo com as necessidades de cada um. A guarda desses grãos pertencia às mulheres, da mesma forma como elas traziam no útero o ser humano que não nascia e nem crescia escravizado. Sobre esse ambiente em que essas crianças brincavam, corriam, choravam, quase nada se sabe, e as notícias que se tem são oriundas daqueles que queriam destruir os quilombos (GOMES, 2014). O cotidiano dos quilombos permanece incógnito.

Acreditar em comunidades de fugitivos que procuravam reeditar as mesmas experiências vivenciadas no continente africano seria, contudo, um equívoco, pois “[...] um quilombo como fruto de uma fuga coletiva de cativos africanos, [...] reunia pessoas de várias origens étnicas” (GOMES, 2014, p. 42), sem considerar que não havia um isolamento cultural, em função das atividades comerciais com moradores das vilas.

Por isso, diz este autor que, pela diversidade cultural dos componentes do quilombo, é razoável acreditar que adaptassem suas práticas e seus costumes a partir de uma perspectiva comum, formando um “mosaico cultural gestado nas senzalas” (GOMES, 2014, p. 43). As comunidades negras no espaço quilombola, simplesmente, não reproduziam seus modos de viver adquiridos no continente africano, adaptava-os aos valores culturais dos outros e das outras que compunham o grupo e ao meio ambiente no qual estava fincado o quilombo.

As trocas culturais e as alianças sociais foram feitas intensamente entre os próprios africanos, oriundos de diversas regiões da África, além, é claro, daquelas nascidas das relações que desenvolveram com os habitantes locais, negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios. Em toda parte, esse processo de seu seguindo ritmos e criando combinações que variavam na imensidão territorial do Brasil escravocrata. (GOMES; REIS, 2016, p. 12).

Se os quilombos não eram um pedaço da África em solo brasileiro, nem todas as comunidades de quilombos surgiram da fuga de escravizados e escravizadas. Gomes (2014) menciona que existiu comunidade quilombola proveniente de ocupações das próprias fazendas onde antes estariam assenzalados.

Por muito tempo a moranagem foi considerada uma prática ‘“africana”’ e eminente colonial que diminuiu devido à crioulização da população escravizada. Entendida como prática dos quilombolas de São Mateus, ela não significava um esforço “restauracionista" de preservar ou recriar uma comunidade baseada na África, separada da sociedade escravista. Em vez disso, a maronagem foi forjada pelos quilombolas para viverem como agentes livres profundamente enredados na sociedade escravista. (MIKI, 2014, p. 36).

A maronagem era uma prática dos quilombolas de viver e agir como agentes livres nas vilas e cidades. Ao invés de fugir, permaneciam nas fazendas, vivendo como se fossem pessoas livres de fato (MIKI, 2014). Deslocando-se frequentemente, esses quilombolas ofereciam sua mão de obra em troca de alimentos, armas, munições e abrigos. “Esse quadro nos oferece um tipo diferenciado de economia quilombola, distinto daquele baseado no cultivo independente e na venda de seus produtos” (MIKI, 2014, p. 41).

A singularidade dessa experiência quilombola reside no fato de que as pessoas a quem os negros e as negras prestavam serviço não eram seus proprietários, negociando as condições de trabalho, quantidade de horas, valor da remuneração, como se fossem livres, donos da sua força de trabalho.

Acrescente-se que o processo de resistência à coisificação a que estavam submetidos não era atitude exclusiva daqueles que fugiam, construindo ou não comunidades quilombolas. Aqueles e aquelas que permaneciam nas fazendas, nas senzalas, nas minas, cotidianamente, lutavam por sua dignidade de ser humano.

Baseados numa visão integracionista da sociedade escravista, alguns estudiosos têm sugerido que os grupos escravos, na busca de forjar espaços de autonomia econômica, social e cultural, interagiram com o regime de trabalho a que estavam submetidos, respondendo às diferentes conjunturas com a acomodação e resistência, moldando, em última análise, o sistema escravista que procurava reduzi-los a meros instrumentos de produção das riquezas coloniais. (MACHADO, 1988, p. 146).

À medida que são desenvolvidas novas pesquisas sobre os escravizados e a respeito da escravidão, e dos próprios quilombos, descobrem-se novas faces dessas comunidades (MATTOSO, 2016). Considerá-las um fenômeno uniforme seria um grande erro por diversos motivos: a diversidade étnica e cultural dos negros e das negras africanas que foram trazidos para o Brasil (CUNHA, 1985); o longo período em que a escravização de seres humanos foi considerada legal, cerca de quatrocentos anos; a área em que esse fenômeno ocorreu – praticamente em todo o território nacional –, portanto, com uma relação humano-natureza cercada de diversidade de solo, de clima e de vegetação; as atividades econômicas desenvolvidas durante a Colônia e o Império, que requeriam regimes de trabalhos diferenciados e, portanto, uma relação entre senhor e escravizado diferentes, com vigilância extrema, como na mineração, ou mais leve, como nas fazendas de gado.

Um exemplo de como a experiência quilombola não comporta uma única explicação, Schwartz (2016), a partir da análise das revoltas que ocorreram na Bahia do século XIX, afirma que, em terras baianas, a formação de quilombos, a que denomina de resistência endêmica, e as revoltas e as conspirações compunham táticas mutuamente articuladas por negros e por negras contra o sistema escravocrata, demonstrando que havia cooperação e coordenação de ações entre escravizados urbanos e rurais.

Porém, as palavras de Clóvis Moura sobre esse fenômeno resumem as diversas experiências quilombolas: quilombo é resistência. Onde houve escravidão, houve quilombo.

O quilombo como meio de resistência à escravidão legalizada findou com a extinção do sistema escravocrata no Brasil, que se deu legalmente com a Lei 3.353/1888 (BRASIL, 1888). Este trabalho não pretende esmiuçar as razões pelas quais a monarquia brasileira resolveu tomar tal atitude. No entanto, quer-se destacar a luta dos próprios escravizados como uma das causas, sem estabelecer qualquer hierarquia, que determinou ou influenciou na extinção do trabalho escravo em terras brasileiras.

Próximo ao seu fim, a maioria dos escravizados e das escravizadas encontravam-se cientes de sua situação de explorados e exploradas, desobedecendo às ordens dos seus senhores, formando grupos que não estavam mais circunscritos às comunidades quilombolas. A rebeldia havia chegado às senzalas (MOURA, 2014). “Os escravos fluminenses incendiavam canaviais e fugiam” (MOURA, 2014, p. 100). E, como destaca Moura (2014), havia o medo de que os próprios escravizados fizessem a própria abolição.

1.3Pós-abolição: liberdade como pertencimento

A Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, declarou extinta a escravidão (BRASIL, 1888). A Lei Áurea, como ficou sendo conhecida, tem apenas dois artigos: um que declara extinta a escravidão no Brasil; outro que revoga as disposições em contrário.

As disposições em contrário aos negros e às negras, agora libertos, superam, em muito, questões de ordem legal. Há uma realidade que se impõe impiedosa: analfabetismo, miséria, saúde débil, acesso à terra para plantar e morar; disposições em contrário a uma vida digna, plena, que a lei não revogou.

Suprimida a escravidão, os negros continuariam irremissivelmente sujeitos a outras modalidades de escravidão e de alienação: à escravidão da miséria ou a condição de párias de uma sociedade de classes em formação, engajados automaticamente, como ficariam, no exército proletário de reserva. (CARDOSO, 2011, p. 313).

O trabalho livre não pode ser definido pelos motivos acima expostos, como o fim da coação, mas como estrutura de controle da extinta mão de obra escrava (COOPER; HOLT, SCOTT, 2005). O pagamento de salários mais baixos aos negros e às negras corroboram, infelizmente, esta afirmação.

Para Cooper, Holt e Scott (2005, p. 42), “[...] a noção de liberdade não está no passado nem em outro lugar; é o terreno histórico que habitamos hoje em dia, o sistema que governa nossa vida, nosso meio de vida e nossa consciência”. Isto é, a liberdade pretendida por negros e por negras que compõem as comunidades negras rurais hodiernamente se ocupa de outros espaços e de outras lacunas: a titulação das terras que habitam e a manutenção ou alteração, segundo os seus desejos e as suas necessidades, dos seus modos de criar, de fazer e de viver.

A resistência à coisificação a que foram submetidos homens e mulheres negras em território brasileiro apenas sofre mudanças quanto ao cenário. Em suas multivariadas manifestações, os quilombos adquirem uma nova roupagem, outro aspecto: luta pelo pertencimento, por fazer parte (COOPER; HOLT, SCOTT, 2005, p. 45) de uma comunidade, familiar ou de um país.

Argumentam que “no conceito ocidental, a antítese de ‘escravidão’ é ‘liberdade’ significa autonomia e falta de restrições sociais”. Entretanto, ‘[n]a maioria das sociedades africanas, a ‘liberdade’ não está em afastar-se numa autonomia sem sentido e perigosa, um poder – um apego que ocorria dentro de um arcabouço hierárquico bem-definido. É nesta direção que o estrangeiro comprado teria de mover-se para reduzir sua marginalidade inicial. Aqui a antítese de “escravidão” não é ‘liberdade’, no sentido de autonomia, mas sim ‘pertencer, ‘fazer parte’.´

É nesse espectro que a comunidade negra objetiva alterar ou reduzir a situação de marginalidade em que se encontra. Procura afirmar a sua dignidade humana, lutando contra o processo de desumanização, iniciado com a escravização e que não findou com a Abolição.

Para isso, a formação de quilombos continua sendo a resposta encontrada pela comunidade negra.

Nascimento (2009, p. 205) considera que “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”, rompendo com o discurso que percebe o quilombo como ilícito, e com o pensamento que o considera apenas como um fenômeno social próprio do regime escravocrata.

Abdias Nascimento refuta, portanto, a redução da palavra quilombo a escravos fugidos, dando a este termo uma conotação que abriga outras experiências coletivas de resistência dos negros e das negras ao regime escravocrata em solo brasileiro e a outras que sucederam a “Abolição”.

Os quilombos, segundo Nascimento (2009), são instrumentos que homens e mulheres negras utilizaram na luta contra a submissão, a exploração e a violência gerada no sistema escravista. Para este autor, os quilombos assumiram, ao longo da história, modelos de organizações permitidas ou toleradas, como associações religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio-mútuo, bem como proibidos e ostensivamente combatidos, como as comunidades erguidas em lugares de difícil acesso, possibilitando, no entanto, sua defesa e sua organização econômico-social própria.

Para Nascimento (2009), os quilombos são focos de resistência física e cultural. A uns se toleravam; a outros se combatiam. Os primeiros, geralmente constituídos em forma de associações; os outros, formados a partir de rebeliões, insurreições, fugas. No entanto, ele pondera: “Porém, tanto os permitidos quanto os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história.” (NASCIMENTO, 2009, p. 203).

Nesta busca de ter em suas mãos o próprio destino, homens e mulheres continuam se aquilombando. Isso porque “[...] os arranjos econômicos e sociais que seguiram à escravidão ficaram muito longe dos ideais de solo livre, trabalho livre e homens livres” (COOPER; HOLT; SCOTT, 2005).

Estes autores assinalam, ainda, que ex-escravizados e ex-escravizadas lutam por sentir que fazem parte de comunidades elaboradas por eles próprios (COOPER; HOLT; SCOTT, 2005), e mencionam, ainda, que, para Patterson, a escravidão seria uma alienação natal ou morte social, pois envolve remoção física e, consequentemente, afastamento do espaço familiar e das relações sociais.

Há relatos de pessoas negras vagando à procura de notícias de parentes para restaurar os laços familiares desfeitos (FORNER, 1988). A terra (o solo) representa o elemento aglutinador a partir do qual antigas e novas relações sociais serão atadas. É a partir de um pedaço de terra, cultivando roças, que as novas comunidades quilombolas, pós-abolição, surgirão, resistindo física e culturalmente ao processo de desumanização, iniciado pelo sistema escravocrata.

[...] o escravo foi socialmente representado não apenas como coisa, mas também como homem-tornado-coisa. Sociologicamente essa ambiguidade não pode ser interpretada como se derivasse do caráter do senhor (o bom e o mau senhor), ou da consciência que o senhor era capaz de desenvolver da situação de escravo. Ela deriva da própria situação de senhor e de escravo na sociedade escravista. (CARDOSO, 2011 p. 307).

Ora, se a sociedade escravista havia convertido homens e mulheres negras em homem-tornado-coisa, uma norma jurídica não haveria de modificar essa situação em um passe de mágica. Acreditar que a comunidade negra não continuou se aquilombando significa pensar que a Lei 3.353/1888, ao torná-los livres, restaurou-lhes a condição de humano.

Cardoso (2011) afirma que o ser humano escravizado, ao desenvolver um trabalho mais complexo, o escravo-alfaiate, o escravo-ferreiro, o escravo-tecelão, externava a possibilidade humana que lhes era inerente de atuar sobre a natureza, modificando-a de acordo com suas necessidades, despindo, assim, o trabalho escravo da aparência de atividade anti-humana.

É lógico que o cultivo de roças para seu sustento e de seus pares e a comercialização do excedente enquadra-se no trabalho mais complexo descrito pelo autor. Tem-se, então, o escravo-lavrador ou escravo-roceiro.

Os escravizados e as escravizadas desenvolviam atividades agrícolas, geralmente nos fins de semana, em pequenos lotes de terra (GOMES, 2006). Não se trata, como dito anteriormente, um ato de benevolência do senhor, mas que tinha um cunho patrimonialista e paternalista, uma vez que reduzia as despesas com alimentação, servindo, também, para atenuar, amortecer a relação conflituosa senhor-escravizado.

Largamente aplicadas nas fazendas de café de São Paulo e do Rio de Janeiro, a política de controle social dos cativos, através da concessão de terras para a prática do roçado, parece ter surtido efeito paralelo em Teresina. As crises de produção e os elevados preços dos alimentos de primeira necessidade na dieta dos escravos contribuíram para que os encarregados das obras públicas da nova capital agissem de maneira conivente com os cativos que se alternavam entre a roça e a construção da cidade, inclusive, concedendo dias de folga para o cultivo e o comércio de produtos. (SILVA, 2014, p. 44).

É a partir desses roceiros negros que escravizados e escravizadas conseguiam suprir, timidamente, a escassa alimentação que lhes era fornecida e que não supria as necessidades de um dia intenso de labor. Caso houvesse algum excedente, vendiam no comércio local e, com os trocados ganhos, compravam algo ou economizavam para a compra da alforria.

Gomes (2006) fala que o cultivo de roças em conjunto com um pequeno mercado informal originou, ao longo do tempo, uma economia camponesa, gestando o campesinato negro.

Um campesinato, predominante negro, formado ainda na escravidão, constituído e articulado por libertos, mascates, escravos, taberneiros, lavradores, vendeiros, roceiros, pequenos arrendatários e quilombolas. Em muitas regiões, alguns quilombos foram praticamente identificados como comunidades camponesas. (GOMES, 2006, p. 292).

Há, desse modo, relação estreita entre o cultivo de roças e a presença de africanos, africanas e de seus descendentes em terras brasileiras. Muitos dos protestos negros objetivavam a conquista e a manutenção de espaços de autonomia, por conseguinte, de humanização que a atividade agrícola permitia (GOMES, 2006). Conforme este autor, mesmos os negros que se encontravam em situação de escravidão podiam trabalhar com métodos próprios e com supervisão mais branda de senhores ou de feitores. Havia, então, autonomia, embora vigiada.

Ao se apropriar da natureza por meio do cultivo de roças, de forma útil e consciente, o escravizado se descoisifica e, nesse processo de humanização, luta por mais espaço de autonomia, alterando a organização do trabalho. Essa experiência modifica o modo de vida dessas pessoas negras.

Também em torno dessas roças, os escravos reelaboravam modos de vida autônomos e alternativos, forjando experiências profundas que marcaram o período da pós-emancipação. A organização social escrava em torno do sistema de roças, mais do que simplesmente reduzir-se a simples práticas econômicas, estava relacionada a importantes aspectos simbólicos e culturais do modus vivendi reinventado pelos cativos. (GOMES, 2006, p. 294).

Os escravizados e as escravizadas reinventam-se a si mesmos. Coisificados pelo direito e pelo labor cotidiano, o plantio, ainda que seja em um pequeno pedaço de terra que não lhes pertence, de coisas das quais se alimentam, nutre-os da humanidade que germina do solo e cresce em seus corpos.

A concessão de tempo e de pequenos lotes de terra às pessoas escravizadas aumentou com o passar dos anos de escravidão. Com raríssimos casos, nos séculos XVI e XVII, esta prática se torna comum ao longo dos séculos XVIII e XIX. Segundo Gomes (2006), negros e negras, além de poderem cultivar pequenos lotes de terra, recebiam a autorização para comercializar em vendas próximas às fazendas. E para comprovar, a contrário sensu, afirma que:

Desde o início do século XIX, registram-se diversas posturas municipais, proibindo taberneiros e vendeiros de comerciar com os escravos e também fugitivos, o que indica a possível existência de uma ampla economia informal em gestação, apesar de tentativas de proibições. (GOMES, 2006, p. 295).

No ato de comercializar, os escravizados e as escravizadas se distinguiam do objeto em negociação, apartando seu ser da coisificação a que estavam submetidos no sistema escravocrata. No entanto, Pinsk (2015, p. 54) entende que o plantio de roças e a comercialização de produtos em pequenas vendas em nada contribuíam para humanizar as pessoas escravizadas, constituindo-se em forma adicional de exploração do “braço escravo”.

Moura (2014) faz uma crítica mais contundente ao surgimento do campesinato a partir das brechas camponesas. De acordo com esse autor, “[...] o termo brecha camponesa foi criado por Tadeus Lepkowski para designar um tipo de exploração agrícola individual ou familiar do escravo em terra do seu senhor, para o seu sustento e da sua família” (MOURA, 2014, p. 52, grifo no original).

Moura (2014, p. 53) crítica, inicialmente, o uso da categoria camponês, pois tal conceito refere-se a “homem livre (juridicamente livre)”, condição que as pessoas escravizadas não detinham. Do mesmo modo, entende que em função de o roceiro escravizado trabalhar por consentimento do senhor, “[...] não perde a sua condição (essência) de ser alienado (socialmente), da sua condição humana [...]”, uma vez que o “[...] o direito, em abstrato, [do senhor em dispor da mão de obra escravizada], continuava existindo, não o usando por não necessitá-lo ou não querê-lo” (MOURA, 2014, p. 55).

Discorda-se dos posicionamentos adotados por Pinsk e Moura em relação aos roceiros negros. Em primeiro lugar, deve-se considerar que o cultivo de roças ocorria nos finais de semana e nos dias santos (PINSK, 2015), ou seja, a quantidade de horas, a princípio, despendida nessas atividades era definida pelo roceiro ou pela roceira. A gestão do tempo livre ficava distribuída segundo os interesses dos negros e das negras, e não do senhor.

Ora, segundo Moura (2014), é a dicotomia contraditória entre senhor e escravo que impulsiona a dinâmica social do modo de produção escravista. A contradição aqui repousa no fato de o roceiro encontrar-se em situação de escravo e trabalhar como se fosse livre, dono do seu tempo e de sua produção. O direito abstrato sublimava-se na realidade das roças, e caso o senhor houvesse intenção de tê-lo por inteiro, encontraria resistência negra (GOMES, 2006).

Quanto à utilização da categoria camponês na expressão brecha camponesa, Moura (2014, p. 53) coloca: “[...] o que interessa neste quadro não é a produção, o produto em si, mas as relações sociais concretas que são estabelecidas para produzi-la”. Sendo assim, a relação entre senhor e escravo sofria modificações substanciais: os escravizados e as escravizadas produziam o que lhes interessava; aquilo que colhiam lhes pertencia; os produtos comercializados lhes traziam rendimentos.

Cabe trazer a descrição de Fernandes, contida em seu livro “A integração do negro na sociedade de classes”, volume I, como negros e negras procuravam dispor de seu tempo e de sua energia conforme a leitura que faziam sobre liberdade.

A recusa de certas tarefas e serviços; a inconstância na frequência do trabalho; o fascínio por ocupações real ou aparentemente nobilitantes; a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio; a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada; a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer o trabalho assalariado uma fonte de independência econômica, essas e outras “deficiências” do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com se defrontavam no regime de trabalho livre. (FERNANDES, 2013, p. 46-47).

Esta descrição de Florestan Fernandes desmonta a ideia de que a pessoa escravizada aceitava sem nenhum questionamento o controle físico e moral exercido pelos senhores, sem perceber o que estava em disputa. Se livres sentem repulsa por uma supervisão efetiva das atividades que lhes foram destinadas; escravizados, resistem, na medida do possível, ao gerenciamento total e ilimitado de suas vidas.

O cultivo de roças por escravizados e escravizadas compõe, assim, um processo de negação e de afirmação. Afirmação como seres humanos e negação da escravização, da coisificação. Processo que era radicalizado quando fugiam e erguiam quilombos. Gestava, a partir da interação entre aquilombados e assenzalados, uma economia camponesa em que se encontrava em disputa o direito ao produto do trabalho e acesso às trocas mercantis e aos mercados locais (GOMES, 2006).

A partir das experiências da escravidão, destacando-se a longa tradição dos quilombos, não só no Rio de Janeiro no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas também em outras partes do Brasil, é possível avaliar que assenzalados e aquilombados tenham cada vez mais procurado forjar significados compartilhados em seus protestos. (GOMES, 2006, p. 301).

Havia, então, uma partilha de sonhos e de vivências entre aquilombados e assenzalados. Gomes procura demonstrar que senzala e quilombo não compunham dois espaços totalmente distintos e que, ao contrário, havia interação entre esses dois mundos negros.

A busca por mais autonomia, por mais liberdade para transitar, produzir e negociar não se dava de forma singular, mas dependia da situação concreta. Mesmos os que não fugiam, negociavam por mais autonomia ou auxiliavam aqueles que empreendiam fuga. Soares fala de locais em centros urbanos denominados de casa de quilombo que eram utilizados para encontros da comunidade negra e de refúgio de cativos em fuga.

Os escravos compunham a esmagadora maioria daqueles vítimas da vigilância policial na Corte. Assim, o códice 403 é também um amplo registro da cultura escrava urbana e suas singularidades, como as misteriosas casas de quilombo, onde os africanos e crioulos se encontravam para trocas sociais ou que constituíam o refúgio dos cativos em fuga. (SOARES, 2008, p. 75).

Essas casas de quilombo revelam uma rede de solidariedade entre libertos, quilombolas e assenzalados e demonstram que havia um contato permanente entre eles, tanto nas cidades quanto nas fazendas. No campo, as roças representam o elo que os une.

Assim, a gestação de um campesinato negro encontra-se vinculada aos quilombos e aos assenzalados que cultivavam roças. Tanto uma quanto a outra comunidade de roceiro visava influir no processo de coisificação em que seus corpos se encontravam. O acesso à terra, ainda que de forma frágil, pela posse vigiada, nas roças dos assenzalados, ou pelo caráter temporário do quilombo, significava trazer em suas mãos o significado da vida, mesmo dolorosa, que a escravização havia roubado.

Os quilombos representavam a radicalização dessa luta. Se não deram cabo ao sistema escravocrata, mudaram suas próprias vidas e de todo aqueles que entraram em contato com aquelas comunidades.

No entanto, como demonstrado, as roças dos cativos e as roças dos quilombos se entrelaçam e se sobrepõem embora em espaços geográficos diferentes. Após a abolição, irão con(fundir-se) em um campesinato negro, resistindo coletivamente, portanto uma experiência quilombola, ao aniquilamento físico e cultural, orquestrado pelo Brasil republicano.

Gomes (2006) acentua que a história dos quilombos se articula com a história da pós- abolição, com a questão agrária brasileira, com a história do trabalho e com a dos movimentos sociais. Segundo Risério (2012), a história da resistência de homens negros e de mulheres negras em terras brasileiras divide-se em dois períodos: um em que a comunidade negra luta contra a sua situação de escravizada; no outro, em que articula para finalizar uma abolição inconclusa.

Para este autor, “[...] se a questão central, do século XVI ao XIX, era livrar-se da condição escrava, passou esta questão a ser, do século XX ao XXI, livrar-se da linha de pobreza e da condição proletária” (RISÉRIO, 2012, p. 326). Entende-se que não há uma descontinuidade no processo de resistência negra. Tanto a escravização quanto a pobreza subtraem das pessoas sua condição de humano.

O BICHO

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem. (BANDEIRA, 2009, p. 119).

Agora livres legalmente, homens negros e mulheres negras continuavam sem poder participar ou desfrutar das riquezas que produziram como pessoas escravizadas por quase quatrocentos anos. Como dito anteriormente, a Lei 3.353/1888 nada dispõe sobre como o Estado brasileiro iria incluí-los no seu projeto de Nação. Este silêncio perdura até hoje.

Excetuando os índios, o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador, durante três séculos e meio, a erguer as estruturas deste país chamado Brasil. Mas a despeito dessa realidade histórica inegável e incontraditável, os africanos e seus descendentes nunca foram e não são tratados por iguais pelos segmentos minoritários brancos que complementam o quadro democrático nacional. Estes têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional. (NASCIMENTO, 2009, p. 202).

Anteriormente, a alimentação era escassa. A jornada diária de trabalho era extenuante. A senzala onde os negros ficavam abrigados era fétida. Os açoites eram frequentes. As prisões arbitrárias ocorriam cotidianamente. Não havia escola, apenas trabalho degradante. A abolição da escravatura mantém a comunidade negra brasileira onde ela sempre esteve: na marginalidade.

Risério aponta, por exemplo, que os negros e as negras que habitavam o meio rural não possuíam nenhuma terra para cultivar. Na cidade, ocupam os piores postos com os salários mais baixos em virtude do nível educacional. Tanto no campo como na zona urbana, os negros e as negras não sabem nem ler nem escrever.

Com a inconclusão da obra abolicionista, com o abandono ou a rejeição da meta maior do movimento, os negros viram-se entregues à sua própria sorte. No campo, não tinham terras para cultivar. Na cidade, não recebiam educação, nem contavam com a instrução técnica necessária para se engajar no novo mundo produtivo que se configurava. E assim, chegamos ao século XX. (RISÉRIO, 2012, p. 353).

Não havia sorte, apenas azares. Os negros e as negras que foram coisificados pela escravização teriam, agora, que lutar contra a desumanização que a miséria provoca, e o mais grave, alijados dos meios que possibilitam superar esta situação: sem trabalho, sem saúde, sem escola, sem moradia, sem terra.

Os motivos pelos quais os negros e as negras se aquilombaram perduram. Como afirma Abdias Nascimento (2009, p. 205), “[...] os quilombos dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista”. Este patrimônio se refere à luta coletiva para garantir a “sobrevivência e existência do ser” (NASCIMENTO, 2009, p. 202).

O legado quilombola de resistência à desumanização e ao quase genocídio negro se expressa e se materializa através de diversas falas e de múltiplos instrumentos: imprensa escrita, esporte, cinema, teatro, literatura, música. Os caminhos são diferentes, mas os negros e as negras continuam percorrendo becos, picadas e frestas da legalidade, conquistando vitórias, sofrendo derrotas, emergindo desses passos coerência e contradição.

Na leitura de Moura (1992), a primeira manifestação de resistência negra, logo após a abolição, ocorre de maneira equivocada: a Guarda Negra. Esse grupo defendia o regime monárquico, por se sentir em débito com a Coroa, chegando a provocar tumultos, inclusive com morte, em comícios republicanos. “Via a abolição como um ato de manifestação social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessa medida e as consequências negativas que a Abolição traria, feita de forma inconclusa como o foi” (MOURA, 1992, p. 65). Proclamada a República, a Guarda Negra se desmobilizou completamente.

A escravização se foi, o açoite não. Esta era a situação pela qual os marinheiros, a maioria negros, enfrentavam nos navios brasileiros, agora republicanos. Os castigos por comportamentos considerados indisciplinados eram frequentes.

O movimento que vinha sendo articulado pelos marinheiros foi antecipado em face da indignação dos marujos contra o espancamento de mais um companheiro. O marinheiro Negro Marcelino recebeu 250 chibatadas aos olhos de toda a tripulação, formada no convés do Minas Gerais. Desmaiou, mas os açoites continuaram. (MOURA, 1992, p. 67, grifo no original).

Lá o pelourinho, aqui o convés. Em ambos, há uma plateia observando o negro ser chicoteado, vilipendiado e humilhado (MOURA, 1992). O corpo negro era, mais uma vez, alvo de uma fúria insana, desmedida, gratuita.

Os marinheiros liderados pelo negro João Cândido amotinaram-se, ou aquilombaram- se, apoderando-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira, exigindo, principalmente, a eliminação de castigos corporais por meio do uso da chibata. Era o dia 22 de novembro de 1910. A norma que estabelecia essa espécie de punição disciplinar foi revogada. No entanto, o Estado cobrou um preço caro por isso.

João Cândido, que não embarca no Satélite, juntamente com alguns companheiros foram recolhidos a uma masmorra da Ilha das Cobras, onde viviam como animais. Dos 18 recolhidos ali, 16 morreram. Uns fuzilados sem julgamento, outros em consequência das péssimas condições em que viviam enclausurados. João Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados. Tuberculoso e na miséria, consegue, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente, morre como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado, com mérito, de Almirante Negro. (MOURA, 1992, p. 69).

A eliminação física de negros e de negras rebeldes, que era uma prática no Brasil Colônia e Imperial, se estenderá por toda República. As táticas do Estado são diversas: exílio, desemprego, aprisionamento. O intento é sempre o mesmo: dobrar, física e/ou psicologicamente, os que não aceitam em silêncio um sistema que os violenta, que os desumaniza.

Em 1915, quatro anos depois do término da Revolta da Chibata, os negros paulistanos, assenzalados por uma imprensa que não os via, fundaram o próprio jornal: O Menelick.

Aquilombados, nas páginas desse jornal, lutavam para que a comunidade negra tivesse uma vida digna, combatendo o racismo e valorizando a vida associativa, cultura e social do povo negro. Estas páginas negras serão escritas até 1963, quando encerra as atividades o Correio d’Ébano.

Após o primeiro, outros se sucederam na seguinte ordem: a rua e o Xauter, 1916; O Alfinete, 1918; O Bandeirante, 1919; A Liberdade, 1919; A Sentinela, 1920; O Kosmos, 1922; O Getulino, 1923; O Clarin da Alvorada e Elite, 1924; Auriverde, O Patrocínio e O Progresso, 1928; Chibata, 1932; A Evolução e A Voz da Raça, 1933; O Clarim, O Estímulo, A Raça e A Tribuna Negra, 1935; A Alvorada, 1936; Senzala, 1946; Mundo Novo, 1950; O Novo Horizonte, 1954; Notícias de Ébano, 1957; O Mutirão, 1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso Jornal, 1961; e Correio d’Ébano, 1963. (MOURA, 1992, p. 70).

Esta relação nominal dos periódicos com a data em foram fundados demonstra que a imprensa negra se manteve com fôlego durante bastante tempo, noticiando os acontecimentos da comunidade negra. Tornava significativo aquilo que, para a grande imprensa, não era digno sequer de uma pequena nota. Nas suas páginas, era escrito um código de moral (MOURA, 1992). Os negros e as negras secretavam um sentimento de culpa, responsabilizando-se pela vida miserável que levavam (RISÉRIO, 2012, p. 353).

O preto pode e deve “subir na vida”. Para isso, é necessário educação, aprimoramento cultural, bom comportamento e boas maneiras. As duas últimas recomendações dizem respeito a uma conduta pessoal mimética. O negro tinha de aprender a comer, a ser vestir, etc., como um branco classemediano. Nada de espalhafatoso ou colorido. Nem à mesa, nem no traje. (RISÉRIO, 2012, p. 359).

Esses jornais foram escritos por uma pequeníssima classe média negra que havia rompido as barreiras sociais por meio de dedicação incomum e qualidades pessoais, sem perceber que os “[...] ex-escravizados e descendentes de escravos permaneceram, em sua maioria, não apenas em estado de pobreza – e mesmo de miséria –, mas também, sem os instrumentos indispensáveis à superação de tal situação” (RISÉRIO, 2012, p. 353).

Mantidos pelo próprio grupo que os editavam, deixavam de fora críticas ao Governo, notícias sobre greves, sobre as lutas operárias e o posicionamento do Jornal em relação a tais acontecimentos (MOURA, 1992).

Os negros paulistanos se agrupavam basicamente, até então, em sociedades dançantes e entidades esportivas. É daí que vai surgir uma pequena imprensa negra. Jornalecos que faziam uma reprodução do noticiário social da grande imprensa (onde, aliás, desde pelo menos Luiz Gama e Patrocínio, sempre existiram jornalistas negros). Falavam de bailes, aniversários, recepções; faziam fofocas e fuxicos; e mesmo caprichavam na maledicência, como o Alfinete, que se dedicava a ‘“cutucar os negrinhos e as negrinhas”. (RISÉRIO, 2012, p. 359).

Se a Frente Negra defendia a monarquia constitucional, a imprensa negra não criticava a República. No entanto, Risério (2012) afirma que o movimento modernista (1922), a revolta tenentista (1924), a Coluna Prestes (1925-1927) e a formação do Partido Comunista Brasileiro (1922) foram fundamentais para impulsionar a comunidade negra na formulação de suas demandas.

Nesse caldeirão ambíguo, em 16 de setembro de 1931, surge a Frente Negra Brasileira, movimento de caráter nacional com repercussão internacional, que, em determinados momentos, defende posições reacionárias, sendo que alguns dos seus integrantes eram simpáticos ao nazismo.

Recapitulando, o objetivo central da Frente Negra era promover a raça. Mobilizar o negromestiço, como força política autônoma, em função de seus próprios interesses. Da conquista de seu lugar na sociedade brasileira. Da participação na riqueza nacional. Reivindicava-se, portanto, a superação das assimetrias sociorraciais brasileiras, com o fito de remover a defasagem existente entre a nossa realidade jurídica e a nossa realidade social. (RISÉRIO, 2012, p. 366).

A atuação da Frente Negra se incumbiu também de defender a pátria que os relegou à situação social em condição de senzalas. Com a instalação do Estado Novo, em 1937, as organizações negras acomodaram-se em clubes de lazer. O processo de resistência sofre uma retração pelo caráter autoritário do Governo Vargas. Apenas em 1945, após a derrota do nazismo, a resistência negra, por meio do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, volta à tona com uma pauta extensa:

[...] convocação de uma Assembleia Constituinte; anistia ampla e incondicional para os crimes políticos; extinção do Tribunal de Segurança Nacional; intensificação do esforço de guerra; liberdade de palavra escrita e falada; liberdade de agremiação; direito de voto aos membros das Forças Armadas sem distinção de postos e direitos a sua participação na Assembleia Constituinte; direito de voto nos navios mercantes; reconhecimento do direito de greve; aumento de relações diplomáticas com a URSS; autonomia sindical; direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas; assistência ao trabalhador rural; direito de sindicalização para as empregadas domésticas; liberdade de culto às religiões afro-brasileiras; ensino gratuito; punição às empresas que fazem seleção racial e de cor; abolição de seleção de cor nas escolas militares; participação do negro nos assuntos de colonização e imigração; democratização de todas as organizações negras, aproximando-as das organizações dos brancos; fazer a aproximação das escolas de sambas, clubes dançantes, associações esportivas, sociedades beneficentes, organizações religiosas, livrando-as da exploração políticas e comercial; e criar escolas de alfabetização em todo o território nacional. (MOURA, 1992, p. 75).

Nesta lista de reivindicações, elaborada pelo Comitê Democrático Afro-Brasileiro, não se encontra, infelizmente, a necessidade de o Brasil fazer ou ter uma reforma agrária que contemple os ex-escravizados e as ex-escravizadas e seus descendentes. Requer, genericamente, assistência ao trabalhador rural. Uma pauta democrática que não toca no cerne da questão: a abolição inconclusa. No entanto, demonstra como a resistência negra começava a ensaiar outros movimentos, outras posturas.

O Teatro Experimental do Negro (tem), no Rio de Janeiro em 1944, trouxe a questão social negra para outros palcos e com ele surge um grande personagem quilombola urbano: Abdias do Nascimento. As peças ensaiadas e apresentadas pelo TEN objetivavam dinamizar a consciência da negritude brasileira (MOURA, 1992). O próprio nome do jornal do grupo, O Quilombo, definia bem o seu pensamento.

Em 1949, o TEN organizou a Conferência Nacional do Negro. Dessa conferência participa o quilombola-poeta Solano Trindade, um dos fundadores do Teatro Popular Brasileiro, juntamente com Edison Carneiro e Dirceu de Oliveira, “[...] composto de artífices, operários de fábricas, domésticas e pessoas de outras camadas populares” (MOURA, 1992, p. 76). A articulação das bandeiras de raça e classe eram passos significativos de uma luta mais coletivizada como cenário de rebelar-se contra forças de manutenção da ordem estabelecida.

Como se pode notar, a história de resistência pós-abolição da comunidade negra acontece de forma descontínua. O Golpe Militar, em 1964, impossibilitou a atividade de organizações que fizessem qualquer espécie de questionamento sobre o funcionamento da sociedade. Antes disso, porém, em 1954, organiza-se a Associação Cultural do Negro (ACN), em São Paulo. “A ACN possuía departamentos de Cultura, Esporte, Estudantil, Feminino, e uma comissão de Recreação. Geraldo Campos de Oliveira dinamizou as atividades da associação e editou um Caderno de Cultura Negra” (MOURA, 1992, p. 77).

Apenas em 1978, estruturam-se novas organizações que continuam a priorizar atividades culturais, sociais e recreativas e “[...] de vez em quando posições abertas contra o preconceito racial” (MOURA, 1992, p. 78). No entanto, a violência institucional contra negros fez o movimento alterar sua rota: a unificação de diversas organizações, criando-se, em 18 de junho de 1978, o Movimento Negro Unificado; e manifestações públicas passam a constar das táticas de resistência.

A unificação dessas organizações deu-se, finalmente, a partir do dia 18 de junho de 1978, quando da realização de um ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Os fatos que determinaram a sua convocação foram a morte do trabalhador negro Robson Silveira da Luz, no mês de maio, devido a torturas em uma delegacia de Guaianases, na Capital de São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas juvenis negros do Clube de Regatas Tietê; e, finalmente, o assassinato por um policial, no bairro paulistano da Lapa, de Nilton Lourenço, operário negro. (MOURA, 1992, p. 78).

As sevícias sofridas pelos escravizados e pelas escravizadas eram agora desferidas contra negros libertos. O pelourinho agora possuía uma nova denominação: Delegacia; e o capitão do mato, um policial que persegue, tortura e mata negros. Em maio, não há nada a comemorar. Os negros e as negras continuam nas senzalas e só adentram a Casa Grande (Clube Regatas Tietê) quando for para limpar banheiros e servir à mesa. Era preciso reagir.

A resistência à desumanização de negros e negras possui uma longa história de contradições, sendo que, muitas vezes, os erros se sobrepõem aos acertos. Não se pode esquecer que o capitão do mato era um negro africano ou afrodescendente; que quilombos foram destruídos e quilombolas mortos por meio de traições de pessoas negras. Da mesma forma, o processo de resistência, pós-abolição, foi pautado, na maioria das vezes, por uma classe média negra que ascendeu socialmente, que entendia que os negros e as negras deveriam copiar o padrão de comportamento estabelecido por pessoas que se autoidentificavam como brancas. E, muitas vezes, a miséria e o analfabetismo da comunidade negra são vistos como problema pessoal e não estrutural.

O processo de resistência à desumanização, imposto, inicialmente, pelo sistema escravocrata e, agora, perpetrado pelo sistema capitalista e racista, é forjado por homens e mulheres negras que se utilizam de táticas distintas por se encontrarem em circunstâncias diferentes e, por isso mesmo, fazem uma leitura da realidade com outros olhos. Não se fala, aqui, do capitão do mato. A traição se conjuga com um projeto pessoal ou familiar. Trata-se daqueles e daquelas que se aquilombaram para resgatar negros e negras das senzalas e das favelas.

Há, também, aqueles e aquelas que lutaram e lutam para que o solo se tornasse livre e que homens negros e mulheres negras quilombolas pudessem e possam manter os seus modos de criar, de fazer e de viver. Para isso, organizaram-se para incluir na Constituição norma de garantia ao quilombola do direito de propriedade de todas as terras em extensão territorial que viabilize sua reprodução física, social, econômica e cultural.

A regularização das terras de quilombo, durante muito tempo, sequer foi pautada pelas entidades de defesa dos direitos de negros e de negras (PEREIRA, 2013). Essa invisibilidade é uma via de mão dupla: uma pavimentada pelos próprios quilombolas, como meio de permanecer na clandestinidade de um sistema opressor; a outra, pela marginalidade imposta aos ex-escravizados e às ex-escravizadas pela República.

A vida de negros e de negras carrega o peso dos tempos idos de escravidão e de um presente grávido desse passado. Forner (1988, p. 10) entende que “[...] os negros trouxeram da escravidão uma compreensão da sua nova condição pautada tanto por sua experiência como escravos, quanto pela observação da sociedade livre ao seu redor”.

Desse modo, negros e negras mergulharam no pós-abolição em dois mundos ao mesmo tempo, sendo que um não excluía o outro: um passado em que foi violentado física e psicologicamente e um presente repleto de angústias e de desejos. Um alimentava o outro. Era preciso, inicialmente, extrair as marcas da escravização, “[...] a fim de destruir a autoridade real e simbólica que os brancos haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidas” (FORNER, 1988, p. 12). Era necessário, em primeiro lugar, alterar o nome cristão recebido no momento do batismo.

Escravizado não possuía sobrenome, uma vez que esta parte do nome corresponde à família a que esta pessoa pertence. Escravo era uma coisa, um bem semovente, semelhante a um animal. Chamava-se, então, o escravizado e a escravizada apenas pelo primeiro nome: Joaquim, Raimunda, Jacinta, Januária. Após a Abolição, negros e negras aproveitaram a situação para modificar o nome.

Uma crioula de 50 anos, ganhadeira, presa por desordem na freguesia da rua do Paço em 31 de outubro de 1889, que no tempo da escravidão se chamava Januária, deve ter aproveitado os ares de liberdade dos novos tempos para “chamar-se Januária Martinha dos Santos”. (FRAGA, 2014, p. 157).

A liberdade permitia aos negros e às negras construírem seus nomes segundos seus interesses e suas estratégias de vida. Há relatos de ex-escravizados e ex-escravizadas que mantinham o patronímico dos antigos senhores com o intuito de se aproveitar das benesses que os nomes das famílias influentes poderiam garantir a quem os possuísse (FRAGA, 2014).

Este autor chama a atenção para o fato de que muitos negros e muitas negras alteraram o nome e o sobrenome para mascarar a situação de ex-escravizado ou de ex-escravizada, uma vez que havia boatos de que a Lei 3.353/1888 seria revogada e, consequentemente, restaurado o sistema servil (FRAGA, 2014). Era preciso negar ou esconder o passado. Permanecer sorrateiramente, matreiro, embora às claras, naquele mundo de pessoas livres.

Contudo, a ocultação ou adoção de outro nome e sobrenome talvez refletisse a incerteza e a insegurança daqueles primeiros anos de abolição, quando ex- senhores e seus representantes reclamavam abertamente no Parlamento e na imprensa por leis que restabelecessem o controle sobre ex-escravos. Há pouco sancionada, nada garantia que a Lei Áurea “pegasse” ou que o cativeiro pudesse de alguma forma retornar, restabelecendo laços de dependência. (FRAGA, 2014, p. 159).

Negros e negras irão perambular pelas ruas das cidades e das vilas com outra identidade. Joaquim agora é João. Maria agora é Raimunda. Um era escravizado, o outro havia adquirido a liberdade pela lei. Uma era estrupada pelo seu dono; a outra queria o prazer de sentir-se livre. Ocultar-se sob o véu frágil de um nome parecia ser uma solução sagaz. Se houvesse o retorno à situação anterior, não encontraria nem o Joaquim nem a Maria.

Modificar o nome não era bastante, às vezes, mudar, ou seria melhor utilizar a palavra fugir, para outra localidade, era considerado mais seguro. Após a abolição, houve uma intensa movimentação de negros e de negras, principalmente do campo para a cidade, porém, em menor número, da cidade para o campo. Não se pretendia apenas se esconder, mas gozar o que a liberdade permitia: viajar, mudar de residência, abandonar o local onde foi cativo (FRAGA, 2014), restaurar os laços familiares desfeitos pela escravidão (FORNER, 1988).

A historiadora Ana Rios elaborou uma tipologia que – embora identificada com o Sudeste – bem pode nos ajudar a entender uma face das formações camponesas negras. Segundo ela, tais formações do pós-emancipação estavam pelo “campesinato itinerante”, ou seja, as famílias de libertos organizadas num parentesco ampliado que vivenciaram processos de imigração contínua em busca de terra e de trabalho em várias áreas entre Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. O deslocamento permanente foi um traço marcante para várias famílias de libertos nas primeiras décadas do século XX. Através de arranjos de moradias, trabalho e parceria, as primeiras gerações de libertos tentavam reconstruir territórios para si e suas famílias. (GOMES, 2015, p. 126).

Esses arranjos de moradia, trabalho e parceria irão formatar as centenas de comunidades negras rurais espalhadas por todo o território nacional que emergem da movimentação de famílias negras de libertos e de quilombolas nos anos que seguem a pós- abolição. Não se pode esquecer de que no período que antecedeu a abolição houve um aumento significativo do número de fugas, chegando até mesmo a provocar uma “desorganização do trabalho” (COSTA, 2008, p. 133), principalmente nas fazendas.

Se havia um contato permanente entre escravizados e quilombolas, após a abolição, essas relações se intensificam a tal ponto de libertos e quilombolas se confundirem nos mesmos espaços, integrando-se, ao longo do tempo, e construindo comunidades com uma lógica de produção própria e de valores culturais específicos.

Em uma época instável socialmente, no ano seguinte, a abolição dos escravizados instalou-se a República (1889), as comunidades negras permaneciam se aquilombando, no intuito de se proteger de um sistema que os oprimia, antes pela força, agora, pelo aparente abandono que se configura como política de Estado de ataque ao povo negro. O medo do retorno do sistema escravista era real, pois os fazendeiros, sentindo-se prejudicados, queriam alterar as regras do jogo com “[...] a reivindicação de indenização que prosseguiu por algum tempo” (COSTA, 2008, p. 134).

Essa autora acentua que há um “[...] silêncio das fontes sobre o que aconteceu aos escravos depois da abolição” (COSTA, 2008, p. 134-135), dificultando um estudo mais sistemático, ainda mais porque não houve nenhuma medida oficial em nível nacional destinada a oferecer assistência aos libertos (COSTA, 2008). Nesse mesmo sentido, aponta Furtado (2017, p. 200);

Se bem não existam estudos específicos sobre a matéria, seria difícil admitir que as condições materiais de vida dos antigos escravos se hajam modificado sensivelmente após a abolição, sendo pouco provável que esta última haja provocado uma redistribuição de renda de real significação.

Para fugir dessa situação de penúria, construir comunidades negras continuava ser uma solução adequada e necessária aos problemas enfrentados pelos antigos escravizados. Era preciso permanecer aquilombados.

Costa apresenta uma dica de qual trilha homens e mulheres escravizadas, agora livres, seguiram: “As poucas referências disponíveis parecem indicar que alguns abandonaram as fazendas e procuraram se estabelecer em terras aparentemente sem dono, só para se defrontar com a polícia ou com algum proprietário enfurecido que reclamava sua saída” (COSTA, 2008, p. 136).

Não se pode acreditar que o pensamento de fugir e de construir comunidades negras tenham se dissipado diante de um cenário que lhes continuava desfavorável. Kopytoff e Miers (apud COOPER; HOLT; SCOTT, 2005), como já referido, consideram que, para muitas culturas africanas, a ideia de liberdade encontra-se relacionada à noção de ‘pertencer’, ‘fazer parte’ de um grupo de parentesco, um patrono, um poder.

Por isso que é perfeitamente lógico abarcar outras experiências comunitárias negras no conceito de resistência à desumanização, desencadeada pela escravização, ainda que não seja composta por ‘escravos fugidos’. A liberdade para aqueles homens negros e mulheres negras no pós-abolição pode ter contado com algo assemelhado ao afirmado por Kopytoff e Miers, visando pertencer a uma determinada comunidade, forjada segundo seus interesses e valores, no formato de comunidades que se autoidentificam como quilombo, como unidade básica de resistência de homens e de mulheres livres, enfrentando as adversidades por meio de antigos e de novos laços comunitários.

Essas adversidades não foram e ainda não são poucas, como se já se descreveu aqui, em outros momentos: sem educação, sem teto, sem terra e sem direito à presunção de inocência e à assistência social. Aos negros e às negras, a República lhes destina o confinamento, a marginalidade, as prisões, os hospícios. Costa (2008, p. 138) apresenta um resumo de como todo um aparelho repressor se desenvolveu para controlar negros e negras, agora livres e miseráveis.

Após a abolição as autoridades pareciam mais preocupados em aumentar a força policial e em exercer o controle sobre as camadas subalternas da população. Com esse objetivo multiplicaram-se leis estaduais e regulamentos municipais. [...] Multiplicaram-se as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e mendigos.

Assenzalam-se negros e negras em presídios, hospícios, prisões fétidas, sem direito à defesa, simplesmente por se encontrarem desempregados ou desempregadas. A República faz uma assepsia das cidades, proibindo “o comércio ambulante” e “[...] festividades características da população negra, como batuques cateretês, congos e outras” (COSTA, 2008, p. 138).

Acolher parentes ou amigos negros ou negras desempregados tornou-se caso de polícia com a possibilidade de encarceramento. “Uma postura da cidade de Limeira proibia que se acolhesse liberto desempregado por mais de três dias sem avisar a polícia, que poderia intimá-lo a “tomar ocupação” sob pena de oito dias na cadeia e multa correspondente a um mês de salário” (COSTA, 2008, p. 138).

O desemprego, portanto, era considerado um desvio social que deveria ser combatido e punido exemplarmente com penas de prisão e pecuniária. Liberdade, mas não para todos e todas. Vítima de um sistema que os mantinha excluídos, negros e negras serão responsabilizados social e juridicamente por isso. Para Fernandes (2014, p. 568, grifo no original), “[...] a ordem social competitiva emergiu-se, expandiu-se compactamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos”. Apenas as portas das antigas e novas senzalas encontravam-se abertas, mas muitos nem podiam sair por não ter para onde ir.

Por tudo isso, manter-se invisível em um mundo de branco foi necessário. As comunidades negras quilombolas do período republicano se mantiveram em um silêncio que as protegia. Não havia como confiar naqueles que os seviciavam, que as estupravam, que os demonizavam, que os denominavam de preguiçosos, feios, fétidos, que controlavam suas vidas.

Em alguns lugares eles têm mais memória da escravidão do que em outros. No cajueiro, eles não gostavam de falar da escravidão. Aí toda vez que eu tocava no assunto: ‘“Não. Isso não. Isso foi do tempo do vai”’. Eles dizem que os brancos só diziam: ‘“Vai fazer isso! Vai fazer aquilo! Vai encher água! Vai”’. Aí eles ficaram dizendo que era do tempo do ‘“vai”’. Aí o que eu deduzi? Em alguns lugares, mesmo que todos tivessem em comum a história do cativeiro, uns procuravam apagar de sua memória. (PEREIRA, 2013, p. 303).

A memória e o esquecimento compartilham as mesmas angústias de um tempo em que a escravização corrompia seus corpos. Ambas são instrumentos de defesa. É o momento e a situação que define qual das duas deverá ser acionada.

No livro “Marca de fogo: quilombos, resistência e a política do medo – Minas Gerais, século XVII”I, Lima (2016) demonstra como o Quilombo de Palmares encrustou no imaginário dos colonizadores e das autoridades imperiais como expressão da possibilidade de rebeldia de toda a comunidade negra escravizada.

A memória das experiências vividas pelas autoridades colonizadoras luso- brasileiras em relação aos quilombos de Palmares foi marcante na construção dos estereótipos aos quilombos mineiros em registros escritos. O medo de repetição do fenômeno-problema de Palmares ecoou, de maneira evidente, nas representações sobre quilombos em Minas Gerais. Hipoteticamente, antes de qualquer quilombo sequer existir nas Minas, já existia o temor da rebeldia escrava e da formação de quilombos, medo sentido pelas autoridades devido à memória de Palmares. (LIMA, 2016, p. 74).

Este medo se combatia através de repressão violenta e de discurso de ódio em que se encarceravam os quilombolas em adjetivos nada elogiosos, tipificando-os como sujeitos violentos, cruéis.

No entanto, a longa duração de existência do quilombo de Palmares seduzia e demonstrava a força e o poder da organização quilombola. Não havia como apagar das vivências de homens negros e de mulheres negras a experiência palmarina.

Os famosos mocambos do Brasil estariam localizados nas sombras da sociedade escravista, em regiões onde a autoridade colonial teria dificuldades de penetrar. A memória de Palmares seria, portanto, como uma sombra que provocava temor e espanto nas autoridades não apenas pela sua ousadia e capacidade de resistência, mas também pela notoriedade da suposta organização social e cultural, religiosa e política dos palmarinos. (LIMA, 2016, p. 75).

Após a Abolição, desenvolveu-se uma narrativa para apagar os quilombos da história brasileira ou transformá-los em uma experiência esporádica e regionalizada. Zumbi estava morto. Dandara estava morta. Era preciso silenciar suas vozes e os tambores que ecoavam da Serra da Barriga. Conseguiram fazer o isolamento acústico, abafando-o, utilizando diversos artifícios. Mas as dores dos negros e das negras reverberaram e reverberam aqueles sons, repletos de esperança e de luta.

Quilombo se eterniza como símbolo de luta e de resistência. Nos anos de 1960, principalmente de 1970, resgata-se a palavra quilombo, relacionando-a à resistência à ditadura, instalada com o Golpe Militar de 1964. “Nas interpretações e nos usos políticos, o quilombo podia ser tanto a resistência cultural como a resistência contra a ditadura” (GOMES, 2015, p. 127). No entanto, a necessidade da regularização das terras que as comunidades quilombolas ocupam permanecia esquecida.

No Nordeste, região onde se encontrava encravado Palmares, os sons palmarinos foram sentidos, já no século XX, em agosto de 1985, por negros e por negras maranhenses que moravam em “terras de preto”. Tinham a posse, situação jurídica precária, queriam a titulação daquelas terras. O momento era extremamente propício para debater sobre o tema: a Assembleia Nacional Constituinte, convocada por José Sarney, em junho de 1985.

Em 1986, o Centro de Cultura Negra (CCN) realizou o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão, em que se discutiu a necessidade da regulamentação das terras em que habitavam (PEREIRA, 2013). Na verdade, “[...] desde a década de 1980, o Centro de Cultura Negra do Maranhão, através do Projeto Vida de Negro (CCN/MA/PVN), passou a priorizar os conflitos agrários nas terras de preto ou terras de quilombos no Maranhão” (GOMES, 2009, p. 188).

No mesmo ano, em Brasília, no mês de agosto, o Movimento Negro Unificado organizou a Convenção Nacional “Negro e a Constituinte”. Nesse encontro, propuseram a criminalização do racismo e a regularização das terras de quilombos, com destaque do papel das organizações nordestinas para esta última pauta, principalmente, as radicas no Maranhão.

Não se quer, aqui, descrever, minuciosamente, incluindo os debates na Assembleia Constituinte, o itinerário que os quilombolas percorreram até a inserção na Constituição de 1988 de uma norma que lhes garante a titularidade das terras que ocupam. Este caminho é muito longo, ultrapassando décadas, séculos de resistência à desumanização de homens negros e de mulheres negras.

Os quilombolas haviam conseguido, pela primeira vez na história do direito brasileiro, inverter o sinal que os identificava como criminosos, violadores da lei, para percebê-los como pessoas que resistiram e resistem à opressão. Quilombos são direitos humanos de negros e de negras brasileiras que se expressam coletivamente na luta contra a violação da dignidade da pessoa humana negra.

Não se pode esquecer que, no direito brasileiro, o termo quilombo é inserido na legislação colonial como ilícito, portanto, proibido e sancionado, conforme dispõem as Ordenações Filipinas, especialmente, no Livro V, ao estabelecer as sanções para as fugas e para quem colaborasse com elas, que vai das galés à pena de morte (LARA, 2000).

Quilombo reaparece na legislação brasileira, inicialmente, na Lei 7.668, de 22 de agosto de 1988, que criou a Fundação Palmares, e, depois, na Constituição Federal de 1988, com sentido modificado para direito, atrelado à garantia, ao gozo e à fruição dos direitos decorrentes da propriedade imóveis urbanos e rurais.

Portanto, a atual Constituição Federal brasileira abriga em seu corpo, mais precisamente no art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a seguinte norma: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Diz-se que os quilombos reaparecem na legislação brasileira, pois nas cidades e nos campos sempre estiveram presentes, principalmente, na zona rural com o cultivo de roças e na manutenção de práticas culturais aprendidas com seus descendentes escravizados. “Os quilombos [na verdade] nunca desapareceram, pelo contrário, se disseminaram mais ainda” (GOMES, 2015, p. 123).

Serra da Barriga Serra da Barriga!

Barriga de negra-mina!

As outras montanhas se cobrem de neve, de noiva, de nuvem, de verde!

E tu, de Loanda, de panos da costa, de argolas, de contas, de quilombos!

Serra da Barriga!

Te vejo da casa em que nasci. Que medo danado de negro fujão!

Serra da Barriga, buchuda, redonda,

do jeito de mama, de anca, de ventre de negra! Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!

Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos? Serra da Barriga,

Serra da Barriga, as tuas noites de mandinga, cheirando a maconha, cheirando a liamba?

Os teus meios-dias: timbum nos peraus Tibum nas lagoas!

Pixains que saem secos, cobrindo Sovacos de sucupira

Barrigas de baraúna!

Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!

De noite: tantãs, curros-curros e bumbas, batuques e baques! E cucas: ô ô!

E bantos: ê ê!

Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos! Aqui é Zumbi!

Barriga da África! Serra da minha terra!

Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi! Depois, minha serra, tu desabando, caindo,

Levando nos braços Zumbi! (LIMA, 2016, p. 134-135).

Entende-se que a picada representada por esta norma no solo íngreme, que é o Direito, pois sua interpretação encontra-se sempre em disputa (BOURDIEU, 1989), começou a ser aberta lá atrás, com o primeiro ato de resistência de uma pessoa negra, escravizada, repleta de medo e de rebeldia: a fuga.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Joaquim José Ferreira. Disputa de sentidos do conceito de quilombo.: Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7014, 14 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100146. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí como requisito para obtenção do título de mestre em Sociologia. Linha de pesquisa: Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

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