Conforme anotamos anteriormente1, a Guarda Civil Municipal não é classificada como órgão ou polícia de segurança pública, sendo apenas uma polícia administrativa, como sói serem todos os órgãos públicos com atribuições de fiscalização.
Oportunamente, fazendo um adendo, acrescentamos ser raso o entendimento de que as guardas poderiam inclusive realizar funções de polícia judiciária, desde que houvesse previsão legal, haja vista que a Constituição da República não previu em nenhum momento a existência da Polícia Civil nos municípios.
Destarte, tal argumento desconsidera diversos princípios e regras interpretativas das normas constitucionais, que segundo Canotilho, citado por Alexandre de Moraes, seriam2:
Da unidade da constituição: a interpretação constitucional dever ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas; da justeza ou da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário.
Outrossim, diga-se de passagem que a maioria da doutrina administrativista classifica os poderes da administração pública em poder regulamentar, poder hierárquico, poder disciplinar e poder de polícia. É desse poder de polícia que se vale a Guarda Civil Metropolitana.
Nesse diapasão, nos termos das precisas lições do Advogado da União Fernando Baltar3,
O poder de polícia em sentido estrito seria aquele conferido pela lei, para a Administração fiscalizar e dar cumprimento às restrições individuais impostas pelo Direito. Conforme destaca Celso Antônio Bandeira de Mello, o poder de polícia, via de regra, impõe uma obrigação negativa ao administrado, um não fazer, visando propiciar um determinado benefício para a coletividade.
Destarte, o poder de polícia conferido aos órgãos municipais é aquele que visa um determinado benefício para a coletividade.
Por exemplo, quando o município cobra a taxa de localização e uso de espaço público dos feirantes, deve disponibilizar o serviço de segurança para os usuários daquele comércio, sob pena de enriquecimento sem causa.
Além disso, o artigo 28, inciso V, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil proíbe o exercício da advocacia aos ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza, deixando claro que não há necessidade de integrar o rol taxativo do artigo 144 da Constituição para incidir na vedação. Inclusive, nesse sentido já decidiu o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, verbis:
INCOMPATIBILIDADE - SERVIDOR DA GUARDA CIVIL - APLICAÇÃO DO INCISO V DO ARTIGO 28 DO ESTATUTO DA ADVOCACIA DA OAB. O servidor da Guarda Civil está proibido de exercer a advocacia enquanto no exercício permanente ou temporário da função, conforme determina o inciso V, do artigo 28, do Estatuto da Advocacia da OAB, em face da influência sobre as pessoas, devendo os policiais exercer, com exclusividade, a incumbência de segurança pública. Precedentes: E-3.462/2007 e E-3.283/2006. Proc. E-4.952/2017 - v.u., em 14/12/2017, do parecer e ementa da Rel. Dra. MARCIA DUTRA LOPES MATRONE, com declaração de voto convergente da Revisora. Dra. CRISTIANA CORRÊA CONDE FALDINI - Presidente Dr. PEDRO PAULO WENDEL GASPARINI.
De outro vértice, em relação ao atual entendimento da jurisprudência quanto a Guarda Civil não ser órgão ou polícia de segurança pública, muitos guardas municipais alegavam que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça possuía um entendimento isolado acerca do assunto. Vejamos trechos do acórdão mais substancioso do Sodalício quanto ao assunto, datado de 16 de agosto de 2022, verbis:
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. ATUAÇÃO DAS GUARDAS MUNICIPAIS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO CLARA, DIRETA E IMEDIATA COM A TUTELA DOS BENS, SERVIÇOS E INSTALAÇÕES MUNICIPAIS. IMPOSSIBILIDADE. PROVA ILÍCITA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 157 E 244 DO CPP. RECURSO PROVIDO. 1. A Constituição Federal de 1988 não atribui à guarda municipal atividades ostensivas típicas de polícia militar ou investigativas de polícia civil, como se fossem verdadeiras “polícias municipais”, mas tão somente de proteção do patrimônio municipal, nele incluídos os seus bens, serviços e instalações. A exclusão das guardas municipais do rol de órgãos encarregados de promover a segurança pública (incisos do art. 144 da Constituição) decorreu de opção expressa do legislador constituinte – apesar das investidas em contrário – por não incluir no texto constitucional nenhuma forma de polícia municipal. 4. A exemplificar o patente desvirtuamento das guardas municipais na atualidade, cabe registrar que muitas delas estão alterando suas denominações para “Polícia Municipal”. Ademais, inúmeros municípios pelo país afora – alguns até mesmo de porte bastante diminuto – estão equipando as suas guardas com fuzis, equipamentos de uso bélico, de alto poder letal e de uso exclusivo das Forças Armadas. 7. Da mesma forma que os guardas municipais não são equiparáveis a policiais, também não são cidadãos comuns. Trata-se de agentes públicos com atribuição sui generis de segurança, pois, embora não elencados no rol de incisos do art. 144, caput, da Constituição, estão inseridos § 8º de tal dispositivo; dentro, portanto, do Título V, Capítulo III, da Constituição, que trata da segurança pública em sentido lato. Assim, se por um lado não podem realizar tudo o que é autorizado às polícias, por outro lado também não estão plenamente reduzidos à mera condição de “qualquer do povo”; são servidores públicos dotados do importante poder-dever de proteger o patrimônio municipal, nele incluídos os seus bens, serviços e instalações. 8. É possível e recomendável, dessa forma, que exerçam a vigilância, por exemplo, de creches, escolas e postos de saúde municipais, de modo a garantir que não tenham sua estrutura física danificada ou subtraída por vândalos ou furtadores e, assim, permitir a continuidade da prestação do serviço público municipal correlato a tais instalações. Nessa esteira, podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade específica de tutelar os bens, serviços e instalações municipais, e não de reprimir a criminalidade urbana ordinária, função esta cabível apenas às polícias, tal como ocorre, na maioria das vezes, com o tráfico de drogas. (REsp nº 1977119-SP)
Entretanto, em 27 de setembro de 2022, a 5ª Turma do Tribunal da Cidadania resolveu adotar o mesmo entendimento no julgado que segue, verbis:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS. ILICITUDE DAS PROVAS. PRISÃO EFETUADA APÓS ATOS INVESTIGATIVOS REALIZADOS POR GUARDAS MUNICIPAIS. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO CLARA, DIRETA E IMEDIATA COM A TUTELA DOS BENS, SERVIÇOS E INSTALAÇÕES MUNICIPAIS. PRECEDENTES DO STJ. BUSCA PESSOAL. INOBSERVÂNCIA AOS REQUISITOS DO ART. 244 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Recentemente, esta Corte Superior, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.977.119/SP, em 16/8/2022, da relatoria do e. Ministro Rogerio Schietti Cruz, propôs criteriosa análise sobre a atuação das guardas municipais e apresentou como conclusão, entre outras, que somente é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se houver, além de justa causa para a medida (fundada suspeita de posse de corpo de delito), relação clara, direta e imediata com a necessidade de proteger a integridade dos bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, o que não se confunde com permissão para realizarem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária. Assim, somente em situações absolutamente excepcionais a guarda pode realizar a abordagem de pessoas e a busca pessoal, quando a ação se mostrar diretamente relacionada à finalidade da corporação. 2. Na hipótese, constata-se a ilegalidade da atuação da Guarda Municipal, agindo como se fosse polícia investigativa e ostensiva, em flagrante desrespeito às suas atribuições constitucionais. Isso porque os guardas municipais, durante patrulhamento em local supostamente conhecido como ponto de tráfico de drogas (embora não se tenha notícia de equipamento ou serviço municipal a ser resguardado na região), seguiram o paciente apenas pelo fato de que ele começou a correr e, efetuada a busca pessoal, nada de ilícito foi encontrado. Após a abordagem, um dos guardas promoveu buscas na área e encontrou pequenas porções de drogas que teriam sido dispensadas pelo suspeito durante a fuga. Portanto, não se vislumbra sequer a presença de fundada suspeita a ensejar eventual abordagem policial, tampouco situação absolutamente excepcional a legitimar a atuação dos guardas municipais, porquanto não demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção do patrimônio municipal. 3. Ressalta-se, ademais, que a busca pessoal está apoiada apenas na genérica descrição de "atitude suspeita" do paciente, que teria empreendido fuga ao avistar os guardas municipais, de maneira que não foram apontados elementos concretos de fundada suspeita de que o averiguado estaria na posse de arma ou objetos ilícitos, conforme exige o art. 244 do Código de Processo Penal. 4. Assim, tendo em vista que a situação de flagrante delito só foi descoberta após a realização de diligências ostensivas e investigativas típicas da atividade policial e completamente alheias às atribuições da guarda municipal, o reconhecimento da ilicitude das provas colhidas com base nessas medidas e todas as que delas derivaram é medida que se impõe. 5. Agravo regimental do Ministério Público Federal a que se nega provimento. (HC nº 771.705-SP)
Portanto, agora, não só a 6ª Turma, como também a 5ª Turma, as quais compõe a 3ª Seção do STJ, possuem jurisprudência firmada sobre a questão. Será que será suficiente para moldar a atuação das Guardas Municipais? Ou será que perdurará o discurso de que, por não serem decisões vinculantes, não devem ser cumpridas?
Outra constatação importante é o fato de que ambos os julgados são oriundos do Estado de São Paulo, onde se percebe um maior ativismo guardacial (em analogia ao ativismo policial que tem surgido na literatura), movimento esse pernicioso para o sistema de justiça criminal.
Nesse sentido, a mesma crítica feita ao ativismo judicial cabe ao ativismo guardacial (das guardas), conforme palavras do Juiz Federal Roberto Wanderley Nogueira4:
O ativismo judicial, nestes termos, se expressa mediante forte carga política, um certo pendor metassistemático se manifesta enfaticamente e se torna mais perceptível do que o emprego previsível da tecnicalidade subsuntiva que o exercício jurisdicional, em síntese, deve descrever para realizar sua função institucional clássica. No limite, o ativismo judicial não encontra pauta sequer na cognição dos objetos, na sua ordem natural, mas na espiritualidade do juiz, para o bem ou para o mal. É por isso que representa um perigo sério de imprevisibilidades na arte de produzir decisões, sobretudo ao nível da mais elevada instância da Administração da Justiça e nada obstante a universalização da matéria relacionada aos Direitos Humanos, porque, doravante, em certos casos já não cabe ao Supremo Tribunal Federal o monopólio da "última palavra", o direito de "errar por último", conforme uma célebre locução atribuída ao gênio de Rui Barbosa, pelo seu maior discípulo, João Mangabeira. (g. n.)
Concluindo, finalizamos com uma observação do advogado Alberto Filho, para quem “as guardas municipais podem, hoje, enquanto instituição de segurança sui generis, desenvolver, ao seu modo, o chamado policiamento comunitário, ou seja, como explica Miguel Reale (apud ARCHIMEDES, 2010), ‘aquela que diuturnamente convive com o povo, não é senão a visão da polícia à luz do valor da amizade’”.5
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALTAR NETO, Fernando Ferreira. Direito Administrativo. 12ª Ed – Salvador, Juspodivm. 2022.
MENDONÇA FILHO, Alberto Hora. Natureza jurídica e atuação das guardas: disciplina normativa e potencialidades. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-20/mendonca-filho-natureza-juridica-atuacao-guardas-municipais?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook Acesso em: 23 mar. 2023.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 36ª ed. - São Paulo: Atlas, 2020.
NOGUEIRA, Roberto Wanderley. Ativismo judicial destrói o Estado Democrático de Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-06/opiniao-ativismo-judicial-destroi-estado-democratico-direito Acesso em: 14/10/2022.
TORMENA, Celso Bruno. A guarda civil municipal não é órgão da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6884, 7 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97322. Acesso em: 13 out. 2022.
1 A guarda civil municipal não é órgão da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27 , n. 6884, 7 mai. 2022 . Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97322. Acesso em: 13 out. 2022.
2 Direito Constitucional. 36ª ed. - São Paulo: Atlas, 2020, pág. 75.
3 Direito Administrativo. 12ª ed. - Juspodivm. 2022, pág. 221.
4 Ativismo judicial destrói o Estado Democrático de Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-06/opiniao-ativismo-judicial-destroi-estado-democratico-direito Acesso em: 14/10/2022.
5 Natureza jurídica e atuação das guardas: disciplina normativa e potencialidades. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-20/mendonca-filho-natureza-juridica-atuacao-guardas-municipais?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook Acesso em: 23 mar. 2023.