4. UMA PROPOSTA NO DIREITO AMBIENTAL
4.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES CONCEITUAIS SOBRE DIREITO AMBIENTAL E MEIO AMBIENTE
A expressão “meio ambiente” é demasiado rica em vários campos de estudo, notadamente no Direito, disciplina que dedica uma área específica para sua análise enquanto objeto de interesse e tutela. Nessa senda, o conceito legal de meio ambiente é fixado na Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, chamada de Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, inciso I, que o prescreve como sendo “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
O termo ambiente, de acordo com o Dicionário Houaiss significa “que rodeia ou envolve por todos os lados e constitui o meio em que se vive; tudo que rodeia ou envolve os seres vivos e/ou as coisas; recinto, espaço, âmbito em que se está ou vive; conjunto de condições materiais, culturais, psicológicas e morais que envolvem uma ou mais pessoas”. Vê-se, então, o quão polimorfo é o termo.
O festejado José Afonso da Silva, ao considerar o conceito de ambiente, afirma a redundância da expressão meio ambiente, na medida em que os termos “meio” e “ambiente” possuem o mesmo significado: “lugar, recinto, espaço onde se desenvolvem as atividades humanas e a vida dos animais e vegetais”62.
Contudo, afirma o autor que essa redundância é necessária para reforçar o sentido de determinados termos em expressões compostas. Desta feita, quiçá o legislador pátrio tenha preferido usar a palavra “meio ambiente” para dar maior exatidão na ideia que o termo inserido na norma cogite.
Para José Lutzemberger:
A evolução orgânica é um processo sinfônico. As espécies, todas as espécies, e o homem não e uma exceção, evoluíram e estão evoluindo conjuntamente e de maneira orquestrada. Nenhuma espécie tem sentido por si só, isoladamente. Todas as espécies, dominantes ou humildes, espetaculares ou apenas visíveis, quer nos sejam simpáticas ou as consideremos desprezíveis, quer se nos figurem como úteis ou mesmo nocivas, todas são peças de uma grande unidade funcional. A natureza não é um aglomerado arbitrário de fatos isolados, arbitrariamente alteráveis ou dispensáveis. Tudo está relacionado com tudo. Assim como uma sinfonia, os instrumentos individuais só têm sentido como partes do todo, é função do perfeito e disciplinado comportamento de cada uma das partes integrantes da maravilhosa sinfonia da evolução orgânica, onde cada instrumento, por pequeno, fraco ou insignificante que possa parecer, é essencial e indispensável.63
Em suma, pode-se dizer que meio ambiente é o espaço em que os seres vivem, se reproduzem, desenvolvem suas atividades cotidianas e, no caso dos seres humanos, constroem seu projeto existencial, sua essência. É, pois, o lugar onde se encontram condições para viver. Nesse contexto, o meio ambiente é composto por fatores bióticos, abióticos, sociais e culturais. De fato, os fatores sociais e culturais que cercam o homem têm exponencial relevância nas relações com o meio ambiente.
Já quanto à expressão “direito ambiental”, pode-se dizer, grosso modo, que tem por escopo abordar toda a matéria que verse sobre a proteção ao meio ambiente. O Direito Ambiental é um direito sistematizador, que faz a articulação da legislação, da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que integram o ambiente.
José Afonso da Silva define Direito Ambiental da seguinte forma:
Como todo ramo do Direito, também o Direito Ambiental deve ser considerado sob dois aspectos: a) Direito Ambiental objetivo, que consiste no conjunto de normas jurídicas disciplinadoras da proteção da qualidade do meio ambiente; b) Direito Ambiental como ciência, que busca o conhecimento sistematizado das normas e princípios ordenadores da qualidade do meio ambiente.64
No mesmo diapasão, De Plácido e Silva lembra que: “o Direito Ambiental é um conjunto de normas e princípios tendentes à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida”65.
Vale ressaltar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 225, além de orientar com princípios e preceitos o ordenamento jurídico brasileiro na matéria ambiental, ratifica a importância do meio ambiente equilibrado para uma sadia qualidade de vida. Ademais, atribui ao meio ambiente uma terceira espécie de bem, ou seja, não é bem público, tampouco particular, mas sim de “uso comum do povo”:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (grifo nosso).
Com efeito, quando a Constituição Federal diz que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, aponta a existência de um direito vinculado à hipótese de um bem comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.66
Em outras palavras, meio ambiente é bem difuso, o que faz do direito ambiental, por conseguinte, um direito difuso. Deveras, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se distancia do indivíduo singular como seu destinatário para englobar um número indeterminado de pessoas, destinando a proteção genérica dos grupos ou da humanidade. Infere-se, portanto, que tem natureza jurídica de direito difuso, pois os titulares deste direito subjetivo que se pretende proteger são indeterminados e indetermináveis.
Assim, pode-se dizer que o Direito Ambiental é um conjunto de normas e princípios que se manifesta como instrumento de tutela do meio ambiente como bem difuso, almejando ajustar o comportamento humano com o meio ambiente que o cerca em busca do equilíbrio entre ambos.
4.2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO AMBIENTAL
Com vistas a consubstanciar o argumento pretendido no presente opúsculo, não se abordarão todos os princípios que o direito ambiental brasileiro postula, mas se protestará por um em especial que, decerto, é o epicentro de toda a preocupação do direito ambiental, princípio este que contribuirá sobremaneira para o desfecho deste trabalho, a saber: princípio da dignidade da pessoa humana.
A preocupação em torno de tal princípio emerge da própria Constituição Federal, em seu art. 1.° III, quando diz:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Nessa mesma esteira, o art. 225 da Constituição pátria é fundado no mesmo princípio e somente nele encontra a sua razão de ser. De fato, é a partir da ideia da dignidade da pessoa humana, como princípio basilar, que decorrem todos os demais preceitos constitucionais, mormente os que orientam o direito ambiental.
O reconhecimento internacional do princípio da dignidade da pessoa humana encontra guarida, por exemplo, no princípio 1 da Declaração de Estocolmo proclamada em 1972, que diz:
Princípio 1- O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras [...]67(grifo nosso)
No mesmo sentido está a Declaração do Rio, proferida na Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, Rio 92: “Princípio 1 - Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”68 (grifo nosso).
Para Paulo de Bessa Antunes, o ser humano é o centro das preocupações do direito ambiental, que existe em função do ser humano e para que ele possa viver melhor na terra69. Essa discussão em torno do princípio da dignidade da pessoa humana marcou, no direito ambiental, o que se chamou de visão antropocêntrica. Tal visão, ou abordagem, tenciona explicar a quem o direito ambiental serve.
De acordo com essa visão, o direito ambiental é voltado para a satisfação das necessidades humanas. É bem verdade, porém, que a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.º 6.938/81) visa a proteger a vida em todas as suas formas, de maneira que todos os seres vivos, e não só o homem, são tutelados e protegidos pelo direito ambiental, assim como também são protegidos os seres que não tem vida, na medida em que possa ser essencial à sadia qualidade de vida do ser humano, em face do que determina a Constituição Federal de 1988. Contudo, é cristalino que o centro das preocupações é o ser humano.
Dessa forma, a vida que não seja humana só poderá ser tutelada pelo direito ambiental na medida em que sua existência implique garantia da sadia qualidade de vida do homem, uma vez que em uma sociedade organizada este é destinatário de toda e qualquer norma.70
Grizzi, citando Miguel Reale, lembra que:
A pessoa é valor fonte de todos os valores, é o principal fundamento do ordenamento jurídico, sendo que cada direito da personalidade corresponde um valor fundamental (que se revela através do processo histórico) e, portanto, que os direitos da personalidade se espraiam por todo o ordenamento jurídico.71
Claro está, então, que uma interpretação teleológica do direito ambiental não levará a outra inferência, senão esta: que o ser humano é o epicentro de toda abordagem do direto ambiental, este enquanto conjunto de normas e princípios que se manifesta como instrumento de tutela do meio ambiente como bem difuso e essencial à sadia qualidade de vida do ser humano.
4.3 MEIO AMBIENTE E SADIA QUALIDADE DE VIDA
Muito do que se falou no tópico precedente está em estreita relação com o tema que será aqui abordado. Isso porque, quanto se falou do princípio da dignidade da pessoa humana, muitas vezes se fez referência à “sadia qualidade de vida”. Mas isso é parte da própria natureza e fundamento do direito ambiental, de modo que não é possível separar o conceito de “dignidade da pessoa humana” da ideia de “sadia qualidade de vida”. São expressões ontologicamente complementares.
Como já visto alhures, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, na Declaração de Estocolmo/72, salientou que o ser humano tem direito fundamental a adequadas condições de vida em um “meio ambiente de qualidade”; por sua vez, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na Declaração Rio de Janeiro/92, afirmou que os seres humanos têm direito a uma “vida saudável”.
Resta compreensível, desse modo, “que não basta viver ou conservar a vida, é justo buscar e conseguir a qualidade de vida”72, o que só será possível em um meio ambiente _em seu sentido mais amplo _ equilibrado e também “seguro”. Saliente-se seguro, visto ser mais verossímil o gozo e exercício do direito ao meio ambiente equilibrado, com vistas à sadia qualidade de vida, se o ser humano puder fruir seu direito à vida e à liberdade, sem temor de ser molestado ou ter seus direitos mitigados sob a ameaça real ou simbólica de um estado de constante insegurança.
De fato, como será possível o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, se o ser humano não puder desfrutar da natureza, das praias, dos rios, parques, praças, logradouros, etc., se não se sentir seguro em tais lugares? É, portanto, falacioso pensar em fruição do meio ambiente natural, artificial ou cultural, sem a certeza de poder gozá-lo plenamente e com segurança.
Um meio ambiente equilibrado e, além disso, seguro é, portanto, um meio ambiente de qualidade, onde seja viável o gozo de uma vida saudável, na senda dos princípios e preceitos do direito ambiental.
4.4 DIREITO AMBIENTAL E SEGURANÇA PÚBLICA: UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM SISTÊMICA
Conforme a breve discussão em torno do conceito de segurança pública no Brasil contemporâneo, restou evidenciada a premente necessidade de se trabalhar, do ponto de vista ideológico, para o fomento de novos conceitos e definições da segurança pública, ou seja, de sua ressignificação com vista a se construir uma cultura de segurança que dialogue uníssono com o ideal dos direitos humanos e da garantia das liberdades, conforme as razões levantadas no início deste trabalho.
Por outro lado, em busca de um marco inicial de ponderação, foi apontado o fenômeno da violência como demasiadamente prejudicial para uma sadia qualidade de vida da população, já que é fato originador de problemas diversos, entre os quais: efeitos negativos nos planos econômicos, social, psicológico e de saúde pública; além de afetar de maneira negativa o desenvolvimento social e econômico da sociedade, a cotidianidade, a liberdade de movimento e o direito de desfrutar o “espaço social”. Dessa maneira, a sociedade tem mitigado o seu direito de fruir de um ambiente saudável e seguro, o que fere flagrantemente direitos humanos de todos.
Registre-se que o “espaço social” a que se fez referência faz parte do próprio conceito de meio ambiente aqui adotado. De fato, conforme visto, o meio ambiente pode ser concebido como o espaço em que os seres vivem, se reproduzem, desenvolvem suas atividades cotidianas e constroem seu projeto existencial e sua essência, através da cotidianidade e do exercício da liberdade. É, pois, o lugar onde se encontram condições para viver. Mas não é possível pensar em um projeto existencial sem a presença do outro, ou seja, da coexistência, pois existir é um constante “existir-com”. Daí porque falar em “espaço social” como integrante do meio ambiente, razão pela qual, quando se fizer referência ao meio ambiente, também estará incluída a perspectiva que aqui se denominou de “espaço social”.
O meio ambiente recebe proteção particular do ordenamento jurídico brasileiro e de documentos de natureza supranacional, os quais garantem, por meio de princípios e preceitos, o direito a um meio ambiente equilibrado e adequado para uma sadia qualidade de vida, tendo o ser humano como grande destinatário de tais tutelas.
Nesse diapasão, é inegável que a proteção do meio ambiente, mediante direito positivado, é reconhecido como uma evolução das ciências jurídicas na seara dos direito humanos. A relação umbilical entre direitos humanos e direito ambiental é de relevância patente na defesa da dignidade da pessoa humana, notadamente porque tem por epicentro, consoante linhas epigrafadas, o próprio ser humano na busca de seu direito a um meio ambiente equilibrado, com vistas a uma sadia qualidade de vida.
Logo, emerge uma proposta viável de trabalho de ressignificação ou releitura conceitual da temática “segurança pública”; releitura essa sob as lentes do direito ambiental brasileiro. Institui-se, assim, um aporte dialógico verossímil entre a segurança pública e os direitos humanos, através de uma abordagem sistêmica do direito ambiental. Isso é possível porque os elementos terminológicos, alguns princípios e entendimentos do campo do direito ambiental permitem um diálogo aproximado da segurança pública com os direitos humanos, o que, quiçá, poderá atender às hodiernas necessidades sociais, no tocante à forma de se compreender e se fazer segurança pública no Brasil contemporâneo.