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O direito fundamental do feto anencefálico.

Uma análise do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54

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Agenda 04/10/2007 às 00:00

V. O PARECER DO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA [14]

43. A Procuradoria-Geral da República, à época chefiada pelo PGR Cláudio Fonteles, ofereceu parecer ministerial e requereu o indeferimento do pleito da CNTS.

44. Inicialmente, o PGR, estribado nas lições de Rui Medeiros (A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999), enfrentou o tema do cabimento da interpretação conforme à Constituição e defendeu a tese de que na controvérsia sob exame inviável aplicar essa modalidade de decisão constitucional, pois a interpretação conforme não pode trair a letra da lei nem autoriza o Judiciário a agir como legislador positivo, sobretudo em sede de direito penal, albergado pela regra da estrita legalidade.

45. Esse tema da interpretação conforme será visitado no tópico relativo ao modelo brasileiro de jurisdição constitucional.

46. No mérito, o PGR também se opôs à pretensão da Argüente – CNTS.

47. Segundo o PGR, as situações extintivas de punibilidade apresentam sentido inequívoco e preciso, que a lei penal apresenta, e legaliza o aborto a) para que a mãe não morra (aborto terapêutico) e b) se a mãe, vítima de estupro, consente no aborto (aborto sentimental). A situação de anencefalia não se coaduna nessas hipóteses.

48. Aduz o PGR que o feto anencefálico não causa a morte da mãe. Se causasse, estar-se-ia diante do aborto terapêutico.

49. Quanto ao aborto sentimental, o PGR, forte no magistério de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal), defendeu que se trata de hipótese excepcional que não comporta interpretação analógica que autorize sua prática.

50. Sustenta o PGR que a vingar a tese da Argüente, sacrificado está o direito à vida, em vista do enunciado contido no caput do art. 5º da Constituição da República que garante a inviolabilidade do direito à vida, que está posto como marco primeiro dos direitos fundamentais.

51. Defende o PGR que se há normal processo de gestação vida intra-uterina existe e "nos caos de anencefalia há o normal desenvolvimento físico do feto: formam-se seus olhos; nariz; ouvidos; boca; mãos, enfim o que lhe permite sentir, e também braços; pernas; pés; pulmões; veias; sangue que corre, o coração".

52. Recorda o PGR o disposto no art. 2º do Código Civil que põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, e o art. 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que enuncia que "Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção". Colaciona também a Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 1º, reconhece o direito intrínseco à vida que tem todo ser humano concebido. E invoca o Preâmbulo desta Convenção: "a criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento."

53. Conclui o PGR que, "portanto, os diplomas legais, tanto do direito interno, quanto internacional, estabelecem que vida há desde a concepção".

54. O PGR maneja o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda que define o "nascituro como o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato certo. E diz: o feto anencefálico, por certo nascerá. Pode viver segundos, minutos, horas, dias, e até meses. Isto é inquestionável".

55. Indaga o PGR: a compreensão jurídica do direito à vida legitima a morte, dado o curto espaço de tempo da existência humana? Responde: "Por certo que não!"

56. Alega o PGR em seu Parecer que "se o tratamento normativo do tema, como vimos, marcadamente protege a vida, desde a concepção, por certo é inferência lógica, inafastável, que o direito à vida não se pode medir pelo tempo, seja ele qual for, de uma sobrevida visível".

57. O PGR estabelece, em construção estritamente jurídica, "que o direito à vida é a temporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana".

58. Indaga o PGR: "E se assim o é, e o é afetivamente, dada a clareza dos textos normativos importa prosseguir, e indagar, então: a dor temporal da gestante é causa bastante a obscurecer, e então relativizar, a compreensão jurídica do direito à vida, como venho de assentar?". Responde: "Estou em que não!".

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59. Após uma digressão acerca da dor das gestantes, em cotejo com o princípio da proporcionalidade, o PGR defende que "por certo o sofrer uma dor, mesmo que intensa, não ultrapassa o por cobro a uma vida, que existe, intra-uterina, e que, seja sempre reiterado, goza de toda a proteção normativa, tanto sob a ótica do direito interno, quanto internacional".

60. Na linha do professado pela CNBB, o PGR brada: "O feto no estado intra-uterino é ser humano, não é coisa!".

61. Argumenta o PGR, com esteio no inciso I do art. 3º da Constituição da República, o objetivo de se construir uma sociedade livre, justa e solidária e, nessa trilha, que o pleito da Argüente "impede que possa acontecer a doação de órgãos do bebê anencefálico a tantos outros bebês que, se têm normal formação do cérebro, todavia têm grave deficiência nos olhos, nos pulmões, nos rins, no coração, órgãos estes plenamente saudáveis no bebê anencéfalo, cuja morte prematura frustrará a vida de outros bebês, assim também condenados a morrer, ou a não ver".

62. Segundo o PGR, o pleito da Argüente "vai na contra-mão da construção da sociedade solidária a que tantos de nós, brasileiras e brasileiros, aspiramos, e o ser solidário é modo eficaz de instituir a cultura da vida".

63. Opina o PGR, pugnando pelo descabimento da técnica da interpretação conforme a Constituição e defendendo a primazia jurídica do direito à vida, pelo indeferimento do pleito da CNTS.


VI. O PARECER DE JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA [15]

64. A União dos Juristas Católicos – UJC, por seu Presidente o advogado Paulo Silveira Martins Leão Jr., formulou consulta ao Ministro aposentado do STF José Néri da Silveira sobre o tema em questão vazada nos seguintes termos:

"Pedimos um parecer de V. Exa. sobre a matéria, sendo que o Memorial em anexo já coloca diversos pontos de questionamento, quanto ao cabimento e ao mérito da ADPF. Aos mesmos cabe aduzir, a meu ver, a invasão de competência constitucional (i) do legislador constituinte originário, no que se refere às cláusulas pétreas protetoras da vida humana, que não podem ser modificadas nem mesmo pelo constituinte derivado (vide art. 60, § 4º., IV) em especial os art. 1º., III, art. 3º., IV e art. 5º., caput, todos da Constituição Federal, devendo ser ressaltado a propósito que para redação dos direitos fundamentais relativos à vida humana certamente contribuiu abaixo assinado subscrito por mais de dois milhões de cidadãos, contrários ao aborto, apresentado aos constituintes; (ii) do Congresso Nacional, quanto a sua competência para legislar sobre matéria penal, certo que há décadas se debate o aborto eugênico no país, o qual vem sendo seguidamente rejeitado pelo Legislativo, que inclusive no momento aprecia projetos de lei sobre a matéria (vide art. 22, I c./c. art. 59, III, CRFB); (iii) do Superior Tribunal de Justiça, de julgar em última instância causas relativas a lei federal (vide art. 105, III, "a" e "c").

Deve ser enfatizado a propósito que a ADPF n° 54 foi ajuizada logo após o Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, Relatora a Ministra LAURITA VAZ, à unanimidade de votos, haver concedido a ordem no HABEAS CORPUS 32159, cassando autorização para aborto de feto anencéfalo (acórdão proferido em 17/02/2004 e transitado em julgado em 28/04/2004). Também no HC 32 757, Relator o Ministro Félix Fischer, fora concedida liminar para impedir o abortamento de outro feto anencéfalo. Havia decisões de 1º e 2º grau nos Estados da Federação a favor e contra autorização de aborto de feto anencéfalo, mas sempre sujeita a matéria a exame da prova, inclusive quanto ao alegado risco à saúde da gestante. Porém, somente após haver sido firmada a jurisprudência pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido contrário à autorização para aborto de feto anencéfalo, e pouco depois disso, é que foi ajuizada a referida ADPF nº 54.

Entendo que o pedido da ADPF nº 54 colide também com os princípios do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, eis que autoriza a eliminação de uma vida humana sem qualquer análise do Judiciário e baseada tão somente em laudo médico, sabido por todos a quantas falhas e manipulações estão sujeitos tais laudos, de que são exemplos os escândalos envolvendo as verbas públicas do INSS. O "parecer" médico que acompanhou a inicial da ADPF nº 54 não está assinado, tende a induzir a erro o julgador, vez que apresenta como complicações prováveis da gravidez de feto anencéfalo, complicações mais ou menos comuns em qualquer gravidez e que não colocam em risco a vida ou a saúde da gestante, e àquele parece se contrapõem diversos outros pareceres médicos, de que são exemplos os que acompanham o Memorial anexo."

65. Ao fim de seu parecer, o ilustre jurista deu as subseqüentes respostas:

"1. A argüição de descumprimento de preceito fundamental aforada (ADPF n° 54) não reúne condições para ser conhecida, quer no concernente ao pedido principal, quer quanto ao pedido alternativo, nos termos da fundamentação desenvolvida nos itens 1 a 7.

2. Desde a concepção, há vida humana; o feto é ser humano vivo e revestido também da dignidade humana, com a proteção do sistema jurídico, constitucional e legal. Na condição de conceptus sed non natus, adquire personalidade jurídica, na ordem civil, no momento do nascimento com vida, pouco importando que a ciência lhe preveja vida extra-uterina breve. Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intra-uterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis (itens 9 a 12).

3. O aborto, crime contra a vida previsto no Código Penal (arts. 124 a 126), ocorre com a interrupção voluntária da gravidez e morte do feto, em decorrência desse ato (item 13).

4. O feto anencefálico é ser humano vivo e em desenvolvimento no útero materno, embora a anomalia que o acomete, tendo a sua vida e a dignidade humana a proteção da ordem constitucional e legal. A natureza de ser humano, desde a concepção e até a morte, não se altera pela malformação encefálica, que atinge parte das funções encefálicas (as de nível superior ou cortical), subsistindo, porém, as funções do sistema nervoso dos níveis medular e encefálico inferior, na nomenclatura do professor Arthur Guyton, com a presença de tronco encefálico e "porções variáveis do diencéfalo", possuindo organismo vivo, dotado de órgãos e sistemas vitais, conforme a ciência o revela (itens 14 a 17), não cabendo ver, nele, destarte, um morto no ventre materno ou sequer um ser com morte cerebral, na existência extra-uterina (item 17).

5. Constitui crime de aborto, capitulável nos arts. 124 a 126 do Código Penal, conforme a hipótese, a interrupção voluntária da gravidez, com a conseqüente morte do feto anencefálico; o crime não se descaracteriza, na espécie, pela circunstância de haver expectativa de reduzida existência extra-uterina, não sendo sequer possível, desde logo, prever o momento provável do óbito, máxime, em face de tratamentos intensivos utilizáveis (itens 18 a 20).

6. Não se aplica ao aborto voluntário de feto anencefálico o disposto no art. 128, I, do Código Penal, não resultando dessa gestação especial risco à vida ou mesmo à saúde da gestante, conforme a doutrina e pronunciamentos técnicos examinados (itens 21 e 22).

7. O direito à vida, como o primeiro dos direitos fundamentais (CF, art. 5º., caput), é garantido, pela Constituição e ordenamento legal, ao ser humano, desde a concepção até a morte. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve (itens 11 a 13).

8. Numa ponderação hierárquica dos direitos e valores concernentes à vida e à dignidade humana garantidas também ao nascituro anencefálico, vivo e em desenvolvimento no ventre materno, em face de invocados direitos fundamentais da gestante, quanto à dignidade de pessoa humana, liberdade e autonomia de vontade, no sentido de interromper a gravidez, do que resultaria a morte do feto, - não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é ferida pelo fato dessa maternidade, valor constitucionalmente exaltado. A gestante - em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, - não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, - revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, - cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade.

Não cabe dar prevalência ao que se pretende na inicial, que instrui a Consulta, porque isso importaria em destruir a vida do ser vivo e em desenvolvimento no útero materno, ou seja, fulminar, irreversivelmente, o direito fundamental à vida do feto anencefálico, antecipando-lhe a morte, eliminando uma vida que, mesmo se houver de ser breve, embora indeterminado o momento do óbito, nem com isso deixará de ser vida humana protegida pela Constituição e as leis, com a nobreza do ser humano (itens 23 a 25)".

66. Em seu parecer, José Néri da Silveira aborda, de início, a questão do cabimento da ADPF e da técnica de interpretação conforme a Constituição, e conclui pela inviabilidade da ação e da aludida técnica interpretativa.

67. No mérito, o Parecerista visita textos de bio-direito e a doutrina tradicional brasileira e estrangeira, surpreendendo a técnica da ponderação dos bens e valores, para concluir desfavoravelmente ao pleito da CNTS.


VII. A DECISÃO CAUTELAR DO PLENO DO STF [16]

68. Em sessões de julgamento ocorridas em 02.08.2004, 20.10.2004 e 27.04.2005, o Plenário do STF apreciou questões de ordem relativas ao cabimento da ADPF 54 e sobre a medida cautelar monocrática e liminarmente deferida pelo Relator Ministro Marco Aurélio e decidiu por sua revogação no que tange à permissão do aborto, mas manteve em relação à suspensão dos processos em curso, até a decisão final do STF. O Tribunal, resolvendo questão de ordem, conheceu do cabimento da ADPF e admitiu o ingresso de várias entidades como "amici curiae" ("amigos da Corte").

69. O acórdão desses julgamentos, publicado em 31.08.2007, está vazado nos seguintes termos:

ADPF – ADEQUAÇÃO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO ANENCÉFALO – POLÍTICA JUDICIÁRIA – MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal.

ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia.

70. Na sessão de julgamento do dia 20.10.2004 o Tribunal iniciou a apreciação do cabimento ou não da ADPF. Houve pedido de vista do Ministro Carlos Britto acerca desse tema: cabimento da ADPF.

71. O Ministro Eros Grau, na mesma assentada, suscitou questão de ordem para que o Tribunal deliberasse acerca da manutenção da liminar concedida ou por sua revogação, ao entendimento de que se havia dúvida em relação ao principal, em sede processual (o cabimento da ADPF), não poderia subsistir o acessório, em sede processual (a liminar concedida monocraticamente).

72. Assim, nada obstante o pedido de vista do Ministro Carlos Britto quanto ao cabimento da ADPF, o Tribunal apreciou a conveniência da manutenção ou revogação da liminar.

73. O Relator manteve o seu entendimento esposado na mencionada liminar concedida favorável ao pleito da CNTS. Foi acompanhado pelos Ministros Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Votaram em sentido contrário os Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Nelson Jobim e Carlos Velloso. A liminar foi revogada.

74. O Ministro Carlos Britto acompanhou o voto do Relator sob o fundamento de que o feto anencefálico não será pessoa viável e não tem vida em sentido pleno, sendo o útero materno uma espécie de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), que mantém a sua vida "artificialmente". Não haveria porque obrigar a gestante a continuar com uma gravidez que não resultará em vida.

75. A divergência foi inaugurada pelo Ministro Eros Grau no sentido de que uma vez existente a dúvida acerca do cabimento da própria ADPF não deveria subsistir a liminar concedida monocraticamente pelo Relator.

76. Entendeu o Ministro Eros que o feto anencefálico é pessoa humana e não uma coisa e que não havia risco de morte para as mães-gestantes de fetos com essa patologia. Segundo o Ministro Eros Grau estava-se diante de um perigo invertido, ou seja, na dúvida não poderia a decisão liminar ser contrária à vida do feto anencefálico. Quem corria riscos eram os fetos nessas situações, em vez das gestantes. Cuidava-se, segundo esse Ministro, de uma liminar da vida, mas contra a vida.

77. O Ministro Cezar Peluso acompanhou a divergência inaugurada pelo Ministro Eros Grau sob o argumento de que o feto anencefálico é ser humano, pessoa física, titular de direitos e não coisa ou objeto de livre disposição das pessoas. Também entendeu que a circunstância da brevidade da vida extra-uterina ou a sua iminente morte pós-parto não retira a proteção penal da vida intra-uterina do feto anencefálico. Segundo o Ministro Peluso o sofrimento em si não é algo que degrade a dignidade humana, faz parte da experiência humana. Assim como o remorso que se pretende evitar proibindo-se o aborto.

78. O Ministro Gilmar Mendes votou desfavoravelmente à manutenção da liminar porquanto entendeu que a matéria era delicada e tratava de valores sensíveis, e que se estaria ensejando a uma "mutação constitucional" mediante a atuação da jurisprudência do STF. Por essa razão entendia que não poderia ser via medida cautelar.

79. O Ministro Carlos Velloso acompanhou a divergência e também entendeu que incabível a cautelar, sobretudo porque não havia risco de morte para as gestantes, mas sim para os fetos anencefálicos. E no sopesamento entre o direito da gestante e o direito do feto, optou pelo direito à vida do feto anencefálico.

80. Na sessão de julgamento ocorrida em 27.04.2005 o Tribunal retomou a apreciação do cabimento ou descabimento da ADPF. O STF, por maioria, julgou admissível a ação. Votaram pela admissibilidade os Ministros Marco Aurélio (Relator), Nelson Jobim (à época Presidente) Sepúlveda Pertence (à época Decano), Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Britto e Joaquim Barbosa. Votaram pela inadmissão da ADPF os Ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie, Cezar Peluso e Eros Grau.

81. O STF ainda não apreciou definitivamente o mérito da presente controvérsia. Portanto, a questão permanece aberta. Ou seja, o STF ainda não decidiu se a antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico é conduta lícita ou ilícita. Até o presente, em face da revogação da liminar, permanecem válidas as disposições do Código Penal e estão sujeitos às cominações legais as gestantes e/ou profissionais de saúde que realizarem esse tipo de procedimento cirúrgico.

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; Orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O direito fundamental do feto anencefálico.: Uma análise do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1555, 4 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10488. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Palestra proferida no evento "Sexta Jurídica", organizado pela Seção Judiciária da Justiça Federal no Estado do Piauí, em Teresina, 27/09/2007.

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