2 DIREITOS DO FETO ANENCÉFALO
Um dos argumentos que tem sido utilizado para fundamentar, nas decisões judiciais, a concessão de antecipação terapêutica do parto, em hipóteses de feto anencefálico, é a equiparação da anencefalia (ausência de cérebro) à morte encefálica, prevista na Lei n.º 9.434/97, para fins de transplantes post mortem de órgãos e tecidos humanos. Neste contexto, não haveria direito à vida a ser preservado no que tange ao feto anencefálico e, portanto, seria viável a interrupção da respectiva gestação.
Este capítulo se responsabilizará pela análise e comprovação de que este argumento não procede. E, para tanto, examinar-se-á a suposta equiparação da anencefalia à morte encefálica, a aquisição de direitos pelo anencéfalo e o direito à vida a ele assegurado desde a concepção.
2.1 A não aplicação do conceito de morte encefálica ao anencéfalo e a aquisição de direitos por este ser humano
Com relação ao argumento de que a anencefalia caracterizaria situação semelhante à da morte encefálica, deve-se ressaltar que, uma coisa é utilizar a idéia de morte encefálica para permitir a extração de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento; outra coisa, bem diferente, é aproveitar este conceito para sustentar que o feto anencéfalo não merece qualquer proteção jurídica.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), em consulta realizada pelo Ministério Público do Estado do Paraná acerca da viabilidade do uso de órgãos de anencéfalos para transplante [20], afirma que a razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos está em que a morte não é um evento, mas sim parte de um processo, sendo o conceito de morte uma convenção que considera um determinado ponto desse processo. Isto é, "vida e morte constituem um processo contínuo, gradual e complexo, não um episódio isolado e, como processo, têm um desenrolar encadeado no tempo" [21].
A morte encefálica não se dá apenas com a ausência ou suspensão definitiva das atividades do sistema nervoso superior ou cortical, mas de todas as funções do encéfalo. O que não configura o caso do anencéfalo, que, apesar daquela espécie de ausência, possui resíduos do tronco encefálico e, consequentemente, desenvolve funções vitais, como a respiratória e a cardiovascular.
Outrossim, o que se pretende com o conceito de morte encefálica é apenas determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não sendo possível aduzir que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que minguante. Trata-se, pois, de conceito de morte para uma finalidade específica.
De acordo com o art. 1º da Resolução n.° 1.480, do Conselho Federal de Medicina, "a morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias" [22]. Acontece que os exames complementares necessários para constatação de morte encefálica só são realizados em seres humanos com no mínimo sete dias de vida e, geralmente, os anencéfalos que chegam a nascer morrem clinicamente durante a primeira semana de vida, não sendo possível a realização destes testes com eles.
Ademais, é importante salientar que para a declaração final de morte encefálica é indispensável a ausência de respiração sem o auxílio de respiradores mecânicos, o que confirma a necessidade de lesão total de todo o encéfalo. No entanto, em alguns casos, dependendo do grau de lesão do tronco cerebral pela anencefalia, os fetos portadores desta anomalia são capazes de respirar sem o auxílio de qualquer tipo de aparelho.
Deste modo, levando-se em conta tudo o que foi exposto até agora, conclui-se que os critérios de morte encefálica são inaplicáveis com relação ao feto anencefálico, ou seja, não cabe ver, no anencéfalo, um morto no ventre materno ou sequer um ser com morte encefálica na existência extra-uterina. Isto porque, não se pode pretender que um ser humano que padece da falta de parte do tecido cerebral, mas que mantém as demais funções vitais, seja considerado morto por antecipação.
A natureza de ser humano, desde a concepção e até a morte, não se altera pela má-formação encefálica, que atinge parte das funções encefálicas de nível superior ou cortical. Pois, como expôs Pontes de Miranda, "o Código Civil desconhece monstros, monstra. Quem nasce de mulher é ser humano" [23]. Ainda nesta sentido, observam-se as palavras do filósofo australiano Peter Singer:
Não há dúvida de que, desde os primeiros momentos de sua existência, um embrião concebido do esperma e dos óvulos humanos é um ser humano; e o mesmo se pode dizer do ser humano com as mais profundas e irreparáveis deficiências mentais, até mesmo de um bebê que nasceu anencefálico – literalmente, sem cérebro. [24]
O art. 2º do Novo Código Civil estabelece que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". De uma análise deste dispositivo, percebe-se que o sistema jurídico brasileiro requer, para a aquisição de direitos pelo nascituro, apenas o nascimento com vida. Pressupõe, desta forma, que todo produto gerado da união de um espermatozóide com um óvulo é um ser humano por excelência e que não é a viabilidade ou potencialidade de vida que tornam um feto mais ou menos digno da proteção do Estado e da aquisição de direitos.
Ratificando tal explanação, utilizar-se-á dos ensinamentos de Pontes de Miranda:
Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (= sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar de viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto trato de tempo em que viveu. [25]
Entretanto, se o feto vem a falecer logo após o parto, como é comum acontecer com os anencéfalos que chegam a nascer, como saber se efetivamente viveu? Nestes casos, a Medicina Legal responde que a vida será comprovada pela respiração do bebê. Havendo dúvidas a respeito da ocorrência da respiração, realiza-se o exame clínico denominado Docimasia de Galeno, através do qual os pulmões do feto são imersos em água. Caso os pulmões flutuem, constata-se que se encheram de ar pelo menos uma vez. Assim, o bebê viveu e, consequentemente, adquiriu todos os direitos daí decorrentes. Contudo, se os pulmões afundarem, não houve troca de gases entre o feto e o meio ambiente, logo, não há que se falar em vida e em aquisição de direitos.
Portanto, se, após terem decorrido os nove meses de gestação, se opera o parto de feto anencefálico (nascimento) que respira (vida), é evidente que ele adquire personalidade civil, tornando-se sujeito de direitos e obrigações. Tanto é assim, que nascido o feto, não importando a duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e enterrado. [26]
Outrossim, examinando-se a segunda parte do dispositivo acima transcrito (art. 2º do NCC), percebe-se que também é lícito afirmar que o ser humano, mesmo antes de se separar do corpo da mãe, já é titular de direitos. Pois, mesmo erigindo o nascimento como requisito indispensável à aquisição da personalidade, o ordenamento jurídico pôs a salvo os direitos deste ser em formação desde a concepção. Trata-se de vida intra-uterina, que também merece proteção jurídica por dizer respeito a um ser humano.
Neste momento, passar-se-á a análise do direito à vida de que é titular o anencéfalo.
2.2 Direito à vida
O Art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, o direito à vida. Este é, na verdade, o mais fundamental de todos os direitos, aquele direito originário para o qual todos os outros existem e estão submetidos. Assim, seria absolutamente inútil assegurar outros direitos fundamentais, como a liberdade, a igualdade, a intimidade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.
Além do art. 5º, a Carta Magna impõe o respeito à vida em diversos outros dispositivos. Ao assegurar o direito à saúde (art. 196), a proteção à criança e ao adolescente (art. 227), o amparo aos idosos (art. 230), por exemplo, a Lei Maior demonstra que a proteção à vida assume caráter de verdadeiro princípio, a nortear todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Ao tratar do tema, Ives Gandra Martins leciona:
O direito à vida, talvez mais do que qualquer outro, impõe o reconhecimento do Estado para que seja protegido e, principalmente, o direito à vida do insuficiente. Como os pais protegem a vida de seus filhos logo após o nascimento, pois estes não teriam condições de viver sem tal proteção, dada sua fraqueza, e assim agem por imperativo natural, o Estado deve proteger o direito à vida do mais fraco, a partir da ‘teoria do suprimento’. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidas contra insuficientes. [27]
A expressão ‘direito à vida’ compreende uma dupla acepção: 1ª) o direito de permanecer vivo, que já pressupõe a existência do indivíduo; e 2ª) o direito de nascer vivo, que antecede ao surgimento do indivíduo no mundo exterior. Qualquer indivíduo gerado no ventre de uma mulher tem esse direito, não importando para isso o modo de nascimento, seu estado físico ou psíquico. Por isso, cumpre ressaltar que a Carta Constitucional protege a vida de forma geral, desde a concepção até a morte.
Na primeira acepção da expressão ‘direito à vida’, encontra-se caracterizado o direito à existência, que, de acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva, "consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável" [28].
Já na segunda acepção, verifica-se que o direito à vida abrange também a vida intra-uterina, uma vez que o embrião representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe. Neste caso, protege-se a potencialidade da vida, ou seja, o desenvolvimento da vida na fase da gestação e sua continuação no pós-parto.
Torna-se necessário reforçar que vida do feto deve ser protegida, ainda que apresente anomalia ou má-formação a comprometer o funcionamento de órgão ou de sistema próprio da natureza desse ente; pois, não obstante isso, o nascituro continua mantendo a vida, no ventre materno, com a deficiência que o acomete. [29]
A vida humana encontra sua principal proteção nas leis penais. Para concretização desta proteção, o ordenamento jurídico divide a vida em três estágios: o primeiro inicia-se na concepção e vai até o momento anterior ao início do trabalho de parto; o segundo situa-se entre o início do trabalho de parto até os momentos seguintes ao nascimento; e o último inicia-se quando o momento imediato ao parto é concluído e perdura por toda a vida do homem. A diferentes fases há diferentes crimes contra a vida: aborto, infanticídio e homicídio, respectivamente.
Ainda que constitucionalmente protegido, o direito à vida não é absoluto, havendo hipóteses nas quais ele pode ser violado. A primeira delas é a previsão constitucional da pena de morte, admitida somente no caso de guerra externa declarada, nos termos do art. 5º, inciso XLVII, alínea "a". Nestas situações, a Carta Maior considera que a sobrevivência da nacionalidade é um bem mais valioso do que a vida individual de quem porventura venha a trair a pátria por motivos bélicos.
A legítima defesa constitui outra situação legitimadora da violação ao direito à vida, uma vez que não se pode impedir que uma pessoa, injustamente agredida, se defenda, empregando os meios necessários e suficientes para repelir a agressão, mesmo que para isso acabe por tirar a vida de outrem.
Em estado de necessidade, também é possível eliminar a vida de alguém, desde que para salvar de perigo atual e inevitável, não provocado involuntariamente, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício não era razoavelmente exigível, e desde que não haja outra forma de evitar o dano. Aqui, pode-se mencionar como exemplo o aborto necessário ou terapêutico, no qual se salva a vida da mãe em detrimento da vida do concebido.
3 DIREITOS DA GESTANTE
Os fundamentos jurídicos a favor do aborto do feto anencefálico levantados pela Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, consistiam na afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade, além do desrespeito ao direito à saúde, em virtude da estrita subsunção da tipificação criminal do aborto, previsto nos arts. 124 e seguintes do Código Penal, mesmo nos casos em que verifica a ausência do cérebro no feto.
O objetivo do presente capítulo é analisar cada um dos direitos assegurados constitucionalmente as gestantes, quais sejam, respeito à dignidade da pessoa humana, direito à saúde e direito à liberdade. Por isso, sem maiores delongas, passar-se-á ao exame deles.
3.1 Dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal de 1988 elevou, no art. 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa do Brasil e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito. Passou, ainda, a considerar que é o Estado que existe em função da pessoa e não esta em função daquele. Assim, toda e qualquer ação estatal deve ser avaliada, sob pena de ser declarada inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando-se cada pessoa como um fim em si mesmo ou como meio para outros objetivos.
A dignidade da pessoa humana representa um complexo de direitos que são atributos da espécie humana, sem eles o homem se transformaria em coisa. São direitos como a vida, lazer, saúde, educação, trabalho, cultura, que devem ser propiciados pelo Estado e, para isso, paga-se tamanha carga tributária. Esses direitos servem para fortalecer o direito à dignidade humana.
Não existe uma determinação criteriosa de conceituação do que seja dignidade da pessoa humana. Na doutrina nacional, o conceito que melhor sintetiza todo o rol de proteção estabelecido por esse princípio, é o elaborado por Ingo Wolfgang Sarlet, ao afirmar que:
Entende-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [30]
O princípio da dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não pode ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, no art. 5º, III, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Por sua vez, a dimensão positiva presume que o Estado deve promover ações concretas que, além de evitar agressões, criarão condições efetivas de vida digna a todos, como preconizado por um projeto constitucional inclusivo.
Nos casos em que a mulher está grávida de um feto portador de anencefalia, a violação à dignidade da pessoa humana consiste no fato de se impor que ela leve adiante a gestação de um feto destinado a morrer instantes após o parto, causando-lhe dor, angústia e frustração. Neste contexto, muitas mulheres comparam a experiência da obrigatoriedade da gravidez de um feto portador de anencefalia à tortura. [31]
Imagine-se a situação psicológica da mãe que faz milhares de planos para quando seu filho nascer, adquire móveis e enxoval, escolhe o seu nome, imagina as características físicas e psicológicas que ele terá após o nascimento e que, de repente, sem aviso prévio, se descobre grávida de um feto que não possui qualquer tipo de chance de sobrevida extra-uterina, mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer antes de a gestação chegar ao fim.
Nesta direção, observa-se um excerto do voto [32] proferido pelo Ministro do STF, Carlos Ayres Britto, nos autos da ADPF n.º 54:
Embora como um desvio ou mais precisamente um desvario, não há como recusar à natureza esse episódico destrambelhar. Mas é cultural que se lhe atalhe aqueles efeitos mais virulentamente agressivos de valores jurídicos que tenham a compostura de proto-princípios, como é o caso da dignidade da pessoa humana. De cujos conteúdos fazem parte a autonomia de vontade e a saúde psico-físico-moral da gestante. Sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada pelo compositor Chico Buarque de Hollanda ("A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu"), pois o fruto de um parto anencéfalo não tem sequer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus. [33]
Uma mulher que recebe o diagnóstico de uma gravidez cujo feto é anencéfalo vê cair por terra todos os seus planos de realização e felicidade. É uma dor inimaginável, um sofrimento que só aquelas que passam por tal situação têm condições de descrever. Por isso, vejam-se alguns trechos da entrevista concedida por Gabriela de Oliveira Cordeiro [34] a Débora Diniz no dia 03 de março de 2004:
Uma mulher chegou ao nosso lado e me perguntou: "Por que está chorando? É o primeiro filho? Qual o nome? Tem berço?". Eu chorei tanto, que assustei o hospital todo, todo mundo veio falar comigo. Isso já acontecia antes. Eu saía na rua, as pessoas viam minha barriga e me perguntavam: "já fez o chá-de-bebê?".
(...)
Um dia eu não agüentei. Eu chorava muito, não conseguia parar de chorar. O meu marido me pedia para parar, mas eu não conseguia. Eu saí na rua correndo, chorando, e ele atrás de mim. Estava chovendo, era meia-noite. Eu estava pensando no bebê. Foi na semana anterior ao parto. Eu comecei a sonhar. O meu marido também. Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando. O meu marido tinha outro sonho. Ele sonhava que o bebê ia nascer com cabeça de monstro. Ele havia lido sobre anencefalia na Internet. Se você vai buscar informações é aterrorizante. Ele sonhava que ela tinha cabeça de dinossauro. Quando chegou perto do nascimento, os sonhos pioraram.
(...)
Eu não tive esperanças na hora do parto. Ela não chorou. O médico falou que ela poderia durar três dias. O corpo estava todo perfeito. O pior momento foi quando ela morreu. O desespero foi enorme. [35]
Assim, tendo em vista todo o sofrimento enfrentado por essas mulheres, pode-se concluir que obrigá-las a carregar, em seu ventre, um ser que deixará de existir se dela desconectado, constitui uma ofensa à sua dignidade de mulher, de mãe, enfim, de pessoa humana.
3.2 Direito à saúde
O conceito de saúde formulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), abrangendo aspectos sociais e emocionais, além da simples ausência de doença, engloba o completo bem-estar físico, mental e social. Seguindo esta conceituação, o direito à saúde, garantido constitucionalmente nos arts. 6º, caput, e 196 a 200, impõe ao Estado a obrigação de atendimento às demandas que possam propiciar aos cidadãos uma vida sem nenhum comprometimento que afete seu equilíbrio físico ou mental.
Nos casos em que a mulher grávida é obrigada a dar continuidade a gestação de um feto anencefálico, seu direito à saúde é violado pelos mesmos motivos pelos quais se argumentou, logo acima, que haveria violação à sua dignidade pessoal, ou seja, a lesão à sua integridade física e moral.
Com relação à integridade física da gestante, verifica-se que a anencefalia aumenta significativamente o risco da gravidez e do parto por várias razões. Em primeiro lugar, há pelo menos 50% (cinqüenta por cento) de chance de polidrâmnio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido, a possibilidade de descolamento prematuro da placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade. [36]
Além disso, os fetos anencefálicos, por não terem o pólo cefálico, podem iniciar a expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter a chamada distocia do ombro, porque nesses fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média, podendo haver um acidente obstétrico na expulsão do feto.
Por outro lado, como já foi explanado no tópico acima, é inquestionável, na hipótese da anencefalia, que a saúde psíquica da mulher passa por graves transtornos. O diagnóstico da anencefalia já se mostra suficiente para criar, na mulher, uma grave perturbação emocional, idônea a contagiar a si própria e a seu núcleo familiar. São evidentes as seqüelas de depressão, de frustração, de tristeza e de angústia suportadas pela mulher gestante que se vê obrigada à torturante espera do parto de um feto absolutamente inviável.
Obrigar uma mulher a conservar no ventre, por longos meses, o filho que não poderá ver crescer e se desenvolver como ser humano impõe a ela sofrimento desnecessário e cruel. Adiar o parto, que não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte, viola a integridade física e psicológica da gestante, em situação análoga à da tortura.
3.3 Princípio da legalidade e direito à liberdade
O princípio da legalidade vem estampado no inciso II do art. 5º da CF/88: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Trata-se da base fundamental do Estado Democrático de Direito, a submissão de todos, Poder Público e cidadãos, ao império da lei. Assim, somente a lei pode limitar a vontade individual, por ser o produto da vontade geral, e obrigar alguém a fazer ou não fazer alguma coisa. Fazendo a leitura em sentido inverso, pelo princípio da legalidade, um indivíduo pode fazer tudo que a lei não proíbe.
Neste contexto, emerge o direito à liberdade. Liberdade é a faculdade que uma pessoa tem de fazer ou não fazer alguma coisa. Envolve sempre um direito de escolha entre duas ou mais alternativas, de acordo com a sua própria vontade. De acordo com José Afonso da Silva:
O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. É boa, sob esse aspecto, a definição de Rivero: "a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal". Vamos um pouco além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal. Nessa concepção, encontramos todos os elementos objetivos e subjetivos necessários à idéia de liberdade; é poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente. [37]
Entretanto, o direito à liberdade não é absoluto, pois a ninguém é dada a faculdade de fazer tudo o que bem entender. Essa concepção de liberdade importaria no esmagamento dos mais fracos pelos mais fortes. Para que uma pessoa seja livre é indispensável que os outros respeitem a sua liberdade. Ademais, levando em consideração o princípio da legalidade, apenas as leis podem limitar a liberdade individual.
A conduta de interrupção da gestação será configurada como crime de aborto, descrito nos arts. 124 e seguintes do Código Penal, quando tiver como resultado prático a subtração da vida do feto, sendo este elemento (morte do feto) indissociável do delito ali tipificado. Todavia, o legislador, no campo da exclusão de antijuridicidade, apresentou duas exceções a essas regras dos arts. 124 e seguintes: 1ª) o aborto necessário ou terapêutico (art. 128, I), quando a vida da mãe está em perigo; e 2ª) o aborto humanitário ou sentimental (art. 128, II), quando a gravidez resulta de estupro.
É preciso ressaltar que, em ambos os casos, a lei apenas exclui a antijuridicidade da conduta, permitindo que a mãe decida se quer prosseguir ou não com a gestação, não punindo sua conduta caso opte pela interrupção da gravidez. Ou seja, a lei preserva o direito de escolha da mulher, não atentando para a viabilidade ou inviabilidade do feto. A norma penal chancela a liberdade da mulher de optar pela continuidade ou pela interrupção da gestação.
Nos casos em que o feto é portador de anencefalia, não existe possibilidade alguma deste feto sobreviver fora do útero materno, uma vez que, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gravidez, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do embrião. Nesse caso, a eventual opção da mulher pela interrupção da gestação pode ser considerada crime?
Quem responde a este questionamento é o Ministro do STF, Joaquim Barbosa:
Em casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extra-uterina, uma interpretação que tipifique a conduta como aborto (art. 124 do Código Penal) estará sendo flagrantemente desproporcional em comparação com a tutela legal da autonomia privada da mulher, consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou de interromper a gravidez, nos casos previstos no Código Penal. Em outras palavras, dizer-se criminosa a conduta abortiva, para a hipótese em tela, leva ao entendimento de que a gestante cujo feto seja portador de anomalia grave e incompatível com a vida extra-uterina está obrigada a manter a gestação. Esse entendimento não me parece razoável em comparação com as hipóteses já elencadas na legislação como excludente de ilicitude de aborto, especialmente porque estas se referem à interrupção da gestação de feto cuja vida extra-uterina é plenamente viável. [38]
Configuraria um contra-senso chancelar a liberdade e a autonomia privada da mulher no caso do aborto humanitário, permitindo nos casos de gravidez resultante de estupro, em que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, e vedar o direito a essa liberdade nos casos de malformação fetal incompatível com a vida extra-uterina, em que inexiste um real conflito entre bens jurídicos detentores de idêntico grau de proteção jurídica.
Há a legítima pretensão da gestante em ver respeitada sua vontade de dar continuidade à gravidez ou de interrompê-la, cabendo ao direito permitir essa escolha, respeitando o princípio da liberdade, da intimidade e da autonomia privada da mulher.