4 PONDERAÇÃO DE INTERESSES: DIREITOS DO FETO ANENCÉFALO X DIREITOS DA GESTANTE
Ao analisar a questão atinente à possibilidade ou não de interrupção do parto de um feto anencefálico, percebe-se, claramente, a existência de um conflito de interesses. De um lado, o feto que tem assegurado, desde a concepção, o direito à vida, ainda que esta seja breve. E, de outro, uma mulher abalada psicologicamente ao se ver obrigada a manter uma gestação, cujo feto é portador de uma anomalia incompatível com a vida extra-uterina, tendo, assim, sua dignidade de pessoa humana, sua liberdade e seu direito à saúde violados.
Direitos que naturalmente se completam, vida e dignidade humana, agora entram em conflito, reclamando conciliação por parte do intérprete do Direito para preservar seus núcleos mínimos de existência. Diante desta situação, como o jurista deve proceder? Não há dúvida que a solução para a questão passa evidentemente pela técnica da ponderação do valor de tais bens a partir da observância do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade que deve pautar a atividade de interpretação do direito.
O cerne da questão é justamente saber qual é o ponto de equilíbrio entre estes direitos em aparente tensão. Deve prevalecer o direito do feto anencéfalo de viver, ainda que somente de forma intra-uterina ou por alguns instantes após o parto, mas sem perspectiva de desfrutar efetivamente da vida extra-uterina, porquanto desprovido de massa encefálica e, pois, de consciência, inconsciência e de todos os sentidos que, ao que tudo indica, dão razão à vida?
Ou, por outro lado, deve prevalecer o direito à dignidade da mãe, que sabe por comprovação médico-científica que o ser que gera não poderá viver fora de seu ventre, de modo que deve ser colocada a salvo da dor e sofrimento que o prolongamento do processo de gestação lhe causará? Neste embate entre vida e dignidade, direitos igualmente fundamentais do homem, qual deve preponderar sobre o outro?
Este capítulo se encarregará de buscar uma resposta para estes questionamentos. Neste propósito, antes de adentrar no mérito da questão, analisando o conflito apresentado, explicitar-se-á o funcionamento da técnica de ponderação de interesses.
4.1 A técnica da ponderação de interesses
A ponderação de interesses consiste no método utilizado para resolução dos conflitos constitucionais. Este método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto que deu origem ao conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado constituem determinantes para a atribuição do peso específico a cada princípio em confronto, sendo, conseqüentemente, essenciais à definição do resultado da ponderação.
A aplicação desta técnica só será necessária quando, de fato, estiver caracterizada a colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais incidentes sobre um caso concreto. Assim, de acordo com Daniel Sarmento, "a primeira tarefa que se impõe ao intérprete, diante de uma possível ponderação, é a de proceder a interpretação dos cânones envolvidos, para verificar se eles efetivamente se confrontam na resolução do caso, ou se, ao contrário, é possível harmonizá-los" [39].
Ou seja, quando se deparar com uma possível colisão entre interesses constitucionais, a primeira missão do intérprete será tentar traçar os limites imanentes dos princípios que os consagram, para verificar se, de fato, ocorre o embate. Caso se observe que determinada hipótese é de fato tutelada por dois princípios constitucionais, que apontam para soluções divergentes, passar-se-á à segunda fase do processo, que envolve a ponderação propriamente dita entre os interesses em disputa.
Nesta segunda etapa, o operador do Direito terá de comparar o peso genérico que a ordem constitucional confere, em tese, a cada um dos interesses envolvidos. E, para isso, ele deverá adotar como norte o conjunto de valores subjacente à Constituição. É verdade que as constituições não costumam apresentar uma escala rígida de interesses ou valores, não havendo uma hierarquia entre normas constitucionais. Entretanto, isto não significa que a Carta Magna empreste a mesma relevância a todos os interesses que se abrigam sob o seu manto.
Na realidade, o peso genérico é tão-só um indiciário do peso específico que cada princípio irá assumir na resolução do caso concreto. O grau de compreensão a ser imposto a cada um dos princípios em jogo na questão dependerá da intensidade com que o mesmo esteja envolvido no caso concreto.
As limitações aos interesses em disputa devem ser arbitradas através do emprego do princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) [40]. Neste sentido, assim se manifesta Daniel Sarmento:
O julgador deve buscar um ponto de equilíbrio entre os interesses em jogo, que atenda aos seguintes imperativos: (a) a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro (b) tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto e (c) o benefício logrado com a restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico. [41]
Ao efetivar uma ponderação de interesses, o intérprete deverá levar em consideração os resultados da sua decisão. Entre várias escolhas possíveis, ele deve preferir aquela cujo resultado se lhe afigure mais justo. Ele estará sempre adstrito aos limites postos pela ordem jurídica, que não poderá jamais transcender.
Por fim, cabe ressaltar que as ponderações devem respeitar o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Porém, a identificação do núcleo essencial só pode ser realizada diante do caso concreto.
4.2 Aplicação da técnica da ponderação de interesses ao caso concreto: direito à vida do anencéfalo X direitos da gestante
Inicialmente, torna-se necessário efetuar uma breve apresentação do caso em apreço. Os fetos portadores de anencefalia são fetos que não possuem os hemisférios cerebrais nem o córtex, mas que possuem resquícios do tronco cerebral e, por isso, desenvolvem, entre outras, as funções cárdio-respiratórias. Em decorrência da ausência do cérebro, aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos anencéfalos nascem mortos e os 35% (trinta e cinco por cento) restantes só logram sobreviver umas poucas horas, dias ou semanas. O perecimento do anencéfalo resulta da necessária interdependência entre o cérebro e o tronco:
Ainda que o tronco produza determinadas funções essenciais como o batimento cardíaco e o movimento pulmonar (ademais de outros movimentos involuntários e às diversas funções anatomicamente associadas ao tronco), é certo que a permanência deste funcionamento depende de outras atividades que incumbem ao cérebro, como o funcionamento de glândulas e o movimento muscular que facilita a própria respiração. Sem estas, aos poucos perece a própria atividade do tronco. [42]
Todavia, apesar de estarem destinados a morrer tão logo se separem do organismo materno, estes seres têm assegurado, desde a concepção, o direito à vida.
Por outro lado, a gestante, tomando conhecimento de que seu filho é portador desta anomalia, mergulha num estado de dor, angústia, sofrimento e decepção tremendos, pois sabe que seu filho, se não morrer dentro do seu útero, morrerá ao deixá-lo. Diante deste quadro, ela se desespera ao saber que, ao invés de escolher um belo berço para o seu neném, deverá comprar um caixão para enterrá-lo.
O destino do feto anencefálico já está traçado, havendo antecipação ou não do parto, o certo é que ele morrerá sem chorar nem sentir o beijo ou o abraço da sua mãe. Contudo, o Código Penal Brasileiro não abriga a possibilidade de exclusão da antijuridicidade nas hipóteses de aborto em que o feto seja portador de anencefalia, obrigando-se, assim, as gestantes a darem continuidade a esta gravidez, mesmo que para isso, tenham sua dignidade, sua liberdade e seu direito à saúde violados.
Diante deste quadro, percebe-se que o direito à vida assegurado ao anencéfalo entra em tensão com os direitos da gestante, sendo impossível harmonizá-los, uma vez que a opção pelos interesses de um deles implicará, necessariamente, no suprimento dos interesses do outro. Portanto, resta ao operador do Direito passar à segunda etapa da técnica de ponderação, qual seja, aquela que envolve a ponderação propriamente dita entre os interesses em disputa.
Neste momento, cumpre ressaltar que o princípio da dignidade humana desempenha múltiplas funções, entre as quais a de servir de critério material para a ponderação de interesses. Entretanto, a dignidade da pessoa humana, sendo um fim e não um meio para o ordenamento constitucional, não se sujeita a ponderações. [43]
Perante esta afirmação, poder-se-ia alegar que o presente conflito já estaria solucionado, prevalecendo a dignidade da mãe em face da vida do filho. Acontece que, do outro lado da moeda, está presente o direito à vida que é o mais fundamental de todos os direitos, porquanto sem vida não há que se falar em sociedade ou mesmo em Direito de espécie alguma. Por isso, tendo em mente que a ponderação de interesses tem de ser efetivada à luz das circunstâncias concretas do caso, dever-se-á proceder a ponderação, mesmo sendo a dignidade da pessoa humana um dos interesses envolvidos.
Como já foi dito anteriormente, a expressão ‘direito à vida’ compreende uma dupla acepção: 1ª) o direito de permanecer vivo, que já pressupõe a existência do indivíduo; e 2ª) o direito de nascer vivo, que antecede ao surgimento do indivíduo no mundo exterior. Porém, o que se verifica no caso do anencéfalo é que mais da metade deles não chegam nem a nascer e os que têm o privilégio de nascer com vida morrem dentro de pouco tempo. Logo, mais da metade não faz uso do direito de nascer vivo e todos os que nascem com vida não fazem jus ao direito de permanecer vivo.
Neste sentido, não parece justo sacrificar a saúde física e mental da mãe, expondo-a ao risco de morrer antes, durante ou logo após o parto, em favor de um embrião que, se nascer, terá pouco tempo de vida e não tomara conhecimento do que acontece ao seu redor, ou seja, não irá chorar ao sair do ventre materno, deixando seu calor e escuridão para trás, não irá sentir o abraço e o beijo carinhosos de sua mãe, não sentirá fome ou frio.
Assim, entre uma vida que já está em pleno desenvolvimento e outra que não irá prosperar, deve prevalecer aquela. Claus Roxin, ao analisar a tutela da vida humana durante a gravidez, expõe:
Se a vida daquele que nasceu é o valor mais elevado do ordenamento jurídico, não se pode negar à vida em formação qualquer proteção; não se pode, contudo, igualá-la por completo ao homem nascido, uma vez que o embrião está somente a caminho de se tornar um homem e que a simbiose com o corpo da mãe pode fazer surgir colisões de interesse que terão de ser resolvidas por meio de ponderações. [44]
Neste sentido, se não é possível igualar a vida de um embrião saudável a vida de um ser humano vivo, imagine a vida de um embrião que, ao nascer, estará em estado vegetativo, ou seja, respirando e com o coração batendo, mas sem conseguir desenvolver os sentidos de uma vida tal qual se espera.
Ainda no sentido de confirmar que a vida do ser humano vivo possui um valor mais elevado do que a vida do feto, observem-se as palavras de Luiz Regis Prado ao analisar o aborto terapêutico:
O mal causado (morte do produto da concepção) é menor do que aquele que se pretende evitar (morte da mãe). E essa assertiva resulta da própria valoração feita pelo Código Penal brasileiro, que confere maior valor à vida humana extra-uterina que à intra-uterina: a pena do homicídio simples é de reclusão, de seis a vinte anos (art. 121, caput, CP), enquanto a pena do aborto praticado por terceiro sem o consentimento da mulher é de reclusão, de três a dez anos (art. 125, CP). [45]
Além do mais, veja-se o caso do aborto humanitário, em que o legislador autoriza a antecipação do parto de um feto saudável tendo em vista que os nove meses de gestação representam uma suprema exigência e sofrimento da mãe que a cada instante estará revendo as cenas horrendas que produziram esta gravidez.
Se é possível abortar um feto com plena capacidade de se desenvolver e se transformar numa pessoa na vida extra-uterina, por que é proibido abortar um feto portador de anomalia incompatível com a vida fora do útero materno e que, ainda por cima, acarreta riscos para saúde da mãe? Sem contar que a gravidez de um anencéfalo, no que tange ao período gestacional, também produz aflição psicológica na mulher, que a cada dia estará vendo o desenvolvimento agônico de um ser que dá mais um passo no inexorável caminho da morte.
É certo que a antecipação do parto de um anencéfalo não põe fim à dor, à angústia e ao sofrimento da gestante e de sua família, mas os ameniza consideravelmente, uma vez que a aflição psicológica de que é acometida a gestante que constata que gera um anencéfalo é permanente e crescente na medida em que se aproxima o final traumático da gestação. Ademais, a antecipação do parto elimina os riscos à saúde e, até mesmo, à vida da mãe.
Submeter a mulher ao sofrimento de gestar por nove meses um ser que sabe de antemão virá a morrer logo após o parto, proibindo-a de interromper este processo, é negar-lhe uma gestação digna. E, neste sentido, é que Guilherme de Souza Nucci alega que "nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida. Por isso, é perfeitamente admissível o aborto em circunstâncias excepcionais, para preservar a vida digna da mãe" [46].
De uma análise da presente exposição, percebe-se que os direitos da gestante
prevalecem sobre o direito à vida do anencéfalo. No mesmo sentido, se manifestou o Procurador Federal Kleber Tagliaferro:
Neste conflito entre o direito a vida de um ser que inevitavelmente morrerá em pouquíssimo tempo - muitas vezes até no próprio ventre materno - sem, pois, qualquer potencialidade de vida extra-ulterina, e o direito a dignidade de uma pessoa humana, psíquica, física e espiritualmente formada, cuja dor da lembrança dos acontecimentos ela carregará consigo por toda sua existência, parece razoável que a falta de perspectiva de vida do feto imponha que se mitigue a reivindicação deste direito, de sorte que ceda espaço à preservação daquele relativo à dignidade, como forma de se minimizar o sofrimento que o prolongamento do contato materno com o feto certamente lhe proporcionará. [47]
Por último, convém destacar que não se trata de o Estado obrigar as gestantes de fetos anencefálicos a interromperem sua gestação, negando-lhes o direito de levar a gravidez até seu termo final, mas simplesmente de assegurar-lhes a liberdade de decidirem se desejam dar prosseguimento ou não à gestação.