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Descriminalização do abortamento nos casos de fetos portadores de anencefalia

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04/10/2007 às 00:00
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5 DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTAMENTO NOS CASOS DE FETOS PORTADORES DE ANENCEFALIA: ARGUMENTOS TÉCNICO-DOGMÁTICOS

Além da ponderação de interesses, existem vários argumentos a favor da descriminalização do abortamento nos casos em que o feto é portador de anencefalia, estes argumentos atacam os diversos elementos da Teoria Jurídica do Crime, entre eles: a atipicidade material da conduta, a ausência de nexo de causalidade, o estado de necessidade e a inexigibilidade de outra conduta. A seguir, será realizado um exame de cada um deles.

5.1 Atipicidade material da conduta

Não são todas as formas de comportamento humano que possuem relevância para o Direito Penal. Na verdade, para que uma conduta humana seja penalmente relevante, o legislador precisa reduzi-la a um tipo penal. "O tipo penal é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente proibidas)" [48]. Ele é um modelo da conduta (ação ou omissão) incriminada.

A tipicidade, por sua vez, é uma relação de adequação entre a conduta humana e o tipo penal. É um atributo da ação, que a considera típica (caso a conduta se encontre descrita como crime por um tipo penal) ou atípica (caso a conduta não seja adequada a um tipo), esta é penalmente irrelevante. Desta forma, para que haja delito é preciso que o agente realize, no caso concreto, todos os elementos componentes da descrição típica.

Cumpre ressaltar que, na moderna teoria do delito, há uma distinção entre tipicidade formal e tipicidade material. Corresponde a primeira à adequação da conduta ao tipo penal descrito na norma. Enquanto que a segunda consiste na conduta capaz de atingir ou expor a perigo de lesão o bem ou interesse tutelado pela norma penal.

Argumentam os defensores da atipicidade material do abortamento dos anencéfalos que, ao punir o aborto, o Direito Penal está, efetivamente, punindo a frustração de uma expectativa potencial de surgimento de uma pessoa. Por esse motivo, o delito de aborto é contra uma futura pessoa, ou seja, porque o feto contém a energia genética potencial para, em um futuro próximo, constituir uma realidade jurídica distinta de seus pais, o que ocorrerá se for cumprido o tempo natural de maturação fetal e se o parto ocorrer com sucesso. Desta forma, apenas a conduta que frustra o surgimento de uma pessoa tipificará o crime de aborto. [49]

Entre os fetos, há aqueles que apresentam anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina, que os impedem de adquirir o status de pessoa. Assim, esses fetos não são sujeitos passivos do crime de aborto, uma vez que não apresentam aptidão para atingirem o status de pessoa, para serem investidos, com o nascimento, dos demais atributos da personalidade.

A anencefalia, independentemente da idade gestacional, produzirá a morte fetal durante a gravidez, durante o parto ou logo após o nascimento, não existindo meios medicamentosos nem cirúrgicos capazes de reverterem esse quadro, nem intra nem extra-útero.

O tipo penal do aborto se preocupa com a potencialidade do feto para continuar vivendo fora do útero materno. Neste sentido, se uma conduta interrompe a gestação, mas não frustra o surgimento de uma pessoa, essa conduta não tipifica o crime de aborto, pois o feto inviável por malformação incompatível com a vida fora do útero não é suporte fático do desta espécie de delito. [50]

Esse é o pensamento defendido por Diaulas Costa Ribeiro:

O interesse da sociedade a ser preservado na gravidez não é a gravidez como fato fisiológico em si mesmo, mas a expectativa de que o feto, decorrida a gestação, dê lugar a um ser humano, previsivelmente vivo. Se, ao contrário, não há mais essa expectativa, não há bem jurídico a ser preservado, não há tipo penal, não há crime. A pessoa da gestante, entretanto, há que ser preservada, voltando-se para ela, na integralidade, toda a proteção jurídica disponível. Conseqüentemente, a gestante e o médico que, com o consentimento dela, interrompe a gravidez de um feto com inviabilidade por má-formação, não praticam crime de aborto, simplesmente porque não há tipicidade. [51]

Neste caso, não há tipicidade material, uma vez que a interrupção da gravidez não é capaz de atingir o bem jurídico tutelado pelos arts. 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, qual seja, a potencialidade plena do feto nascer e se transformar numa pessoa.

5.2 Ausência de nexo de causalidade

O nexo de causalidade é a relação natural de causa e efeito existente entre a conduta do agente e o resultado dela decorrente. Sua função é identificar quem deve ser considerado autor do resultado de dano ou de perigo ao bem jurídico, pois um indivíduo não pode ser punido por um resultado a que não tenha dado causa com sua conduta.

O Código Penal Brasileiro adotou, no caput do art. 13, no que se refere ao nexo de causalidade, a teoria da equivalência das condições, também conhecida como teoria da conditio sine qua non. Para esta teoria, causa é a condição sem a qual o resultado não teria acontecido, ou seja, tudo que concorre para o resultado é causa dele, sendo decisivo que sem essa condição o resultado não pudesse ocorrer como ocorreu. Assim, esta corrente considera que o resultado é produto de uma multiplicidade de causas e condições, sendo todas elas igualmente contributivas para produção do resultado.

A prova do nexo de causalidade é feita a partir da fórmula da conditio sine qua non, também chamada de procedimento hipotético de eliminação, segundo a qual é causa de um

resultado toda condição que, suprimida mentalmente, faria desaparecer o resultado.

O delito de aborto consiste na interrupção da gravidez com a conseqüente morte do produto da concepção, que pode ser o ovo, o embrião ou o feto. O bem jurídico tutelado na incriminação do aborto é a vida do ser humano em formação. E o objeto material do delito, por sua vez, é o embrião ou feto humano vivo em qualquer momento da sua evolução, até o início do parto. Por isso, torna-se necessário provar que o ser humano em formação estava vivo quando ocorreu a intervenção abortiva e que sua morte foi decorrência precisa desta intervenção ou da imaturidade do feto para viver no meio exterior.

No caso da antecipação terapêutica do parto de um feto anencefálico, a morte deste não é uma decorrência precisa da intervenção cirúrgica realizada pelo médico. Ela decorre da malformação fetal congênita cujo feto é portador, pois não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro de anencefalia, o que torna a morte inevitável e certa, ainda que decorridos os nove meses normais de gestação.

Neste sentido, assim se pronuncia o Promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro:

No crime de aborto, a causa da morte fetal pode ser direta ou indireta. É aborto a introdução de um objeto pérfuro-cortante no espaço intra-uterino da mulher visando matar o feto. Se o feto, lesionado, morrer, haverá crime de aborto independentemente da sua expulsão. Entretanto, se a ação abortiva, mesmo visando o feto, se voltar para a mulher, provocando o trabalho de parto e a expulsão do feto (normalmente com o uso de ocitocina ou substâncias de efeitos semelhantes), causando indiretamente a morte por prematuridade (e não a morte diretamente pela ação provocada), também haverá crime de aborto. Nas duas situações o feto morre em conseqüência de tais ações. Na primeira, morre em conseqüência da lesão provocada, independentemente a idade gestacional. Na segunda, morre em conseqüência exclusiva da prematuridade.

Situação diferente ocorre na antecipação de parto de feto inviável, em que não há nexo causal entre a ação médica indireta voltada para o término da gravidez e a morte do feto. O feto cessa suas atividades biológicas em conseqüência da patologia prévia e não da intervenção médica. [52]

5.3 Estado de necessidade

O estado de necessidade é uma causa de exclusão da antijuridicidade prevista na Parte Geral do Código Penal (art. 23, I, e 24), sendo válida para todas as condutas típicas estabelecidas na Parte Especial ou em leis penais especiais. Ele consiste no sacrifício de um interesse juridicamente protegido, para salvar de perigo atual e inevitável direito do próprio agente ou de terceiro, desde que outra conduta, nas circunstâncias, não seja razoavelmente exigível. [53]

Para que uma situação de risco configure esta causa excludente de ilicitude, torna-se necessária a presença dos seguintes requisitos: perigo atual, proteção a direito próprio ou de terceiro, involuntariedade na geração do perigo e inexistência do dever legal de enfrentar o perigo.

Perigo atual não é o que está ocorrendo, é aquele que, conforme a experiência, apresenta efetiva potencialidade de produzir dano ao final ou durante a evolução de um processo causal determinado e identificado. No caso em análise, verifica-se que a permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a anencefalia empresta à gravidez um caráter de risco notadamente maior do que o inerente a uma gestação normal, sem contar que, na grande maioria dos casos, causa graves transtornos psicológicos.

O bem jurídico em perigo pode ser do autor da ação acobertada pelo estado de necessidade ou de uma terceira pessoa. Desta forma, tanto a mãe quanto o médico são abrangidos por esta excludente, no primeiro caso, há o estado de necessidade próprio e, no segundo, o estado de necessidade de terceiro.

A lei só proíbe a invocação do estado de necessidade quando a situação de perigo tiver sido causada intencionalmente pelo agente. Na presente hipótese, sabe-se que a anencefalia é uma má-formação fetal congênita, ou seja, adquirida antes do nascimento. Outrossim, ainda não se sabe o que causa esta anomalia, sendo ela desencadeada, provavelmente, por uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Assim, percebe-se que há uma involuntariedade na geração do perigo, sendo impossível a geração do mesmo pelo gestante ou pelo profissional da saúde.

Com relação à inexistência do dever legal de enfrentar o perigo, deve-se salientar que nenhuma mulher é obrigada a manter em seu ventre um feto que põe em risco a sua saúde e, principalmente, a sua vida. Tanto é assim, que o Código Penal, no seu art. 128, I, autoriza o médico a efetuar o aborto quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante.

Ademais, para que o estado de necessidade seja reconhecido no caso concreto, é imprescindível, também, a existência destes requisitos: inevitabilidade da conduta, razoabilidade do sacrifício do bem e ânimo de conservação de um bem jurídico.

A lesão ao bem jurídico alheio deve ser absolutamente inevitável para salvar o direito próprio ou de terceiro que está sofrendo a situação de risco. Na gestação de um anencéfalo, apenas a antecipação do parto é capaz de eliminar os riscos à vida da gestante, assim como de diminuir o desgaste emocional e o forte abalo psicológico enfrentados por esta e sua família.

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Para que a hipótese do estado de necessidade seja aplicada ao caso concreto, é preciso ainda que o bem jurídico preservado seja, no mínimo, de mesmo valor que o bem jurídico agredido. Sacrifica-se a breve e inconsciente vida do feto em benefício da vida, da saúde física e mental, da dignidade humana e da liberdade da mãe.

E, por último, não se aplica a excludente quando o sujeito não tem conhecimento de que age para salvar um bem jurídico próprio ou alheio. Tanto o médico quanto a gestante, após o diagnóstico da anencefalia, buscam antecipar o parto com a vontade e o objetivo de preservar os direitos desta, acabando assim com o seu sofrimento.

Deste modo, estando presente todos os requisitos imprescindíveis para configuração do estado de necessidade, reconhece-se que a gestante e o seu médico podem se valer desta causa excludente de ilicitude para justificar a realização da antecipação terapêutica do parto de um feto anencefálico.

5.4 Inexigibilidade de outra conduta

A culpabilidade é um juízo de reprovação pessoal, incidente sobre o autor de um fato típico e antijurídico, porque, podendo se comportar conforme o direito, o autor do referido fato optou livremente por se comportar de modo contrário ao direito. São três os elementos que compõem a culpabilidade: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

A idéia de exigibilidade de outra conduta é ligada à idéia de liberdade, pois se reprova pessoalmente o sujeito que, podendo de comportar conforme o Direito, optou livremente por se comportar contrário a ele. Assim, exigindo do autor uma conduta diversa da que ele praticou, o Direito pode imputar-lhe o juízo de censura da culpabilidade.

A falta deste elemento da culpabilidade dá origem à inexigibilidade de conduta diversa, que está legislada (art. 22 CP) em dois casos: na coação moral irresistível e na obediência hierárquica. Até muito breve, só era reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro estes casos de inexigibilidade de outra conduta.

Entretanto, a partir do desenvolvimento dos estudos da culpabilidade, a inexigibilidade de outra conduta passou a ser admitida fora dos casos de coação moral irresistível e obediência hierárquica, pois quando ela aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser considerada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que dispensa a existência de norma expressa a respeito. [54]

Por mais previdente que seja o legislador, é absolutamente impossível legislar, expressamente, sobre todas as causas de inexigibilidade de conduta diversa que devem ser admitidas em direito, pois tais causas são o que de mais próximo há entre o sistema normativo e as constantes evoluções sociais, políticas, culturais e científicas. Por isso, é possível a existência de um fato, não previsto pelo legislador como causa de exclusão da culpabilidade, que apresente todos os requisitos da inexigibilidade de outra conduta. Quando, na situação concreta, era inexigível comportamento distinto, não há que se falar em culpabilidade, mesmo que não tenha o legislador previsto expressamente como causa exculpante.

Neste contexto, vejam-se as palavras de Francisco de Assis Toledo:

Não age culpavelmente – nem deve ser, portanto, penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso. [55]

A antecipação do parto nos casos de anencefalia amolda-se totalmente nos requisitos necessários à exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta. Não se pode exigir que a gestante carregue em seu ventre um feto que, logo ao nascer, falecerá, tendo em vista que essa situação lhe causa uma grave perturbação psicológica, idônea a contagiar a si própria e a seu núcleo familiar. Diante de tantas circunstâncias anormais não se pode exigir da gestante conduta diversa do abortamento.

Ademais, com relação ao médico que realiza o abortamento, também não se pode exigir outra conduta. Tal profissional da saúde não pode ser compelido a prolongar o sofrimento psíquico da gestante, assim como o risco à sua saúde.

Nessa situação, a tese da inexigibilidade de outra conduta teria dois enfoques: o da mãe, não suportando gerar e carregar no ventre um bebê de vida inviável; e o do médico, julgando salvar a mãe do forte abalo psicológico e do risco de complicações que vem sofrendo. Comprovando este entendimento, assim já se pronunciou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

Conclui-se que: comprovado que a mulher está grávida de feto anencefálico, como no presente, realizadas duas ecografias, acrescida do relatório médico atestando a total incompatibilidade com a vida, independe de norma legal positiva a autorização de interrupção da gravidez, evita-se o prolongamento do sofrimento físico, psíquico e emocional da mãe, consciente ela de que traz no ventre não a vida querida e desejada, mas a morte inevitável. Caso em que, portanto, inexigível outra conduta, tanto para ela que consente com o aborto como para o médico que o faz, respaldado no reconhecimento judicial da excludente da culpabilidade. [56]

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Sobre o autor
Adriana Tenorio Antunes Reis

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Adriana Tenorio Antunes. Descriminalização do abortamento nos casos de fetos portadores de anencefalia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1555, 4 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10492. Acesso em: 25 nov. 2024.

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