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Nova principiologia do direito de família

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Agenda 26/09/2024 às 18:40

5. Princípio da liberdade familiar (e da responsabilidade)

O princípio da liberdade aplicado às relações familiares diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.

O direito de família anterior era extremamente rígido e estático, não admitindo o exercício da liberdade de seus membros, que contrariasse o exclusivo modelo matrimonial e patriarcal. A mulher casada era juridicamente dependente do marido e os filhos menores estavam submetidos ao poder paterno. Não havia liberdade para constituir entidade familiar, fora do matrimônio. Não havia liberdade para dissolver o matrimônio, quando as circunstâncias existenciais tornavam insuportável a vida em comum do casal. Não havia liberdade de constituir estado de filiação fora do matrimônio, estendendo-se as conseqüências punitivas aos filhos. As transformações desse paradigma familiar ampliaram radicalmente o exercício da liberdade para todos os atores, substituindo o autoritarismo da família tradicional por um modelo que realiza com mais intensidade a democracia familiar. Em 1962 o Estatuto da Mulher Casada emancipou-a quase que totalmente do poder marital. Em 1977 a Lei do Divórcio (após a respectiva emenda constitucional) emancipou os casais da indissolubilidade do casamento, permitindo-lhes constituir novas famílias. Mas somente a Constituição de 1988 retirou definitivamente das sombras da exclusão e dos impedimentos legais as entidades não matrimoniais, os filhos ilegítimos, enfim, a liberdade de escolher o projeto de vida familiar, em maior espaço para exercício das escolhas afetivas. O princípio da liberdade, portanto, está visceralmente ligado ao da igualdade.

Na Constituição brasileira e nas leis atuais o princípio da liberdade na família apresenta duas vertentes essenciais: liberdade da entidade familiar, diante do Estado e da sociedade; e liberdade de cada membro diante dos outros membros e diante da própria entidade familiar. A liberdade se realiza na constituição, manutenção e extinção da entidade familiar; no planejamento familiar, que “é livre decisão do casal” (art. 226, § 7º da Constituição), sem interferências públicas ou privadas; na garantia contra a violência, exploração e opressão no seio familiar; na organização familiar mais democrática, participativa e solidária.

O princípio da liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção dos arranjos familiares, mas à sua permanente constituição e reinvenção. Tendo a família se desligado de suas funções tradicionais, não faz sentido que ao Estado interesse regular deveres que restringem profundamente a liberdade, a intimidade e a vida privada das pessoas, quando não repercutem no interesse geral.

O princípio da liberdade atrai para si a diretriz fundamental da responsabilidade, como faces da mesma moeda. A paternidade e a maternidade lidam com seres em desenvolvimento que se tornarão pessoas humanas em plenitude, exigentes de formação até quando atinjam autonomia e possam assumir responsabilidades próprias, em constante devir. Não somente os pais, mas também todos os que integram as relações de parentesco ou grupo familiar. Nesta linha, o art. 227. da CF/1988 impõe à família, em sentido amplo, e bem assim à sociedade e ao Estado, deveres em relação à criança, ao adolescente e ao jovem, concernentes à preservação da vida, à saúde, à educação familiar e escolar, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar. Por seu turno, o art. 229. da CF/1988 estabelece que os pais tenham o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Esse complexo enlaçamento de deveres fundamentais existe pelo simples fato da existência da criança e do adolescente, sem necessidade de ser exigível por estas. Basta a situação jurídica da existência, do nascer com vida.


6. Princípio da afetividade familiar

Afetividade como jurídico fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Recebeu grande impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da evolução da família brasileira, nas últimas décadas do século XX, refletindo-se na doutrina jurídica e na jurisprudência dos tribunais. O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família. A evolução da família “expressa a passagem do fato natural da consangüinidade para o fato cultural da afinidade”9 (este no sentido de afetividade).

A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares.

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O princípio da afetividade está implícito na Constituição. Encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família brasileira, além dos já referidos: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); d) a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).

A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do poder familiar. Na relação entre cônjuges e entre companheiros o princípio da afetividade incide enquanto houver afetividade real, pois esta é pressuposto da convivência. Até mesmo a afetividade real, sob o ponto de vista do direito, tem conteúdo conceptual mais estrito (o que une as pessoas com objetivo de constituição de família) do que o empregado nas ciências da psique, na filosofia, nas ciências sociais, que abrange tanto o que une quanto o que desune (amor e ódio, afeição e desafeição, sentimentos de aproximação e de rejeição). Por isso, sem qualquer contradição, podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência. No caso dos cônjuges e companheiros, o dever de assistência, que é desdobramento do princípio jurídico da afetividade (e do princípio fundamental da solidariedade que perpassa ambos) pode projetar seus efeitos para além da convivência, como a prestação de alimentos e o dever de segredo sobre a intimidade e a vida privada.

Mesmo na família tradicional, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos, constituem também família protegida pela Constituição.

A igualdade entre filhos biológicos e não biológicos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-a à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é sua fundação na afetividade. A decisão do STF, ao fixar tese de repercussão geral de admissão da multiparentalidade em nosso sistema jurídico, promoveu o reconhecimento definitivo da parentalidade socioafetiva, em igualdade de direitos e deveres da parentalidade biológica. O princípio da afetividade familiar esteve subjacente nessa decisão.

O art. 1.593. do Código Civil enuncia regra geral que contempla o princípio da afetividade, ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. Assim os laços de parentesco na família (incluindo a filiação), sejam eles consangüíneos ou de outra origem têm a mesma dignidade e são regidos pelo princípio da afetividade.

A força determinante da afetividade, como elemento nuclear de efetiva estabilidade das relações familiares de qualquer natureza, nos dias atuais, torna relativa e, às vezes, desnecessária a intervenção do legislador. A afetividade é o indicador das melhores soluções para os conflitos familiares. Para muitos, quanto menor a intervenção tanto melhor, como se dá com a união estável, cuja regulamentação distanciou-a de sua natureza livre, ou do reforço legal da culpa como causa de separação judicial dos cônjuges. Outras vezes a intervenção legislativa fortalece o dever de afetividade, a exemplo da Lei 11.112/2005 que tornou obrigatório o acordo relativo à guarda dos filhos menores e ao regime de visitas, na separação conjugal, assegurando o direito à companhia e reduzindo o espaço de conflitos.

A doutrina jurídica brasileira tem vislumbrado aplicação do princípio da afetividade em variadas situações do direito de família, nas dimensões: a) da solidariedade e da cooperação; b) da concepção eudemonista, que tema a família como espaço de realização da felicidade10; c) da funcionalização da família para o desenvolvimento da personalidade de seus membros11; d) do redirecionamento dos papéis masculino e feminino e da relação entre legalidade e subjetividade12; e) dos efeitos jurídicos da reprodução humana medicamente assistida13; f) da colisão de direitos fundamentais14; g) da primazia do estado de filiação, independentemente da origem biológica ou não biológica15.

A concepção revolucionária da família como lugar de realização dos afetos, na sociedade laica, difere da que a tinha como instituição natural e de direito divino, portanto imutável e indissolúvel, na qual o afeto era secundário. A força da afetividade reside exatamente nessa aparente fragilidade, pois é o único elo que mantém pessoas unidas nas relações familiares.


7. Princípio da convivência familiar

A convivência familiar é a relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum. Supõe o espaço físico, a casa, o lar, a moradia, mas não necessariamente, pois as atuais condições de vida e o mundo do trabalho provocam separações dos membros da família no espaço físico, mas sem perda da referência ao ambiente comum, tido como pertença de todos. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças.

No fato da vida, em projeção de transeficácia, hauriu o princípio normativo seus elementos para assegurar direitos e deveres envolventes. A casa é o espaço privado que não pode ser submetida ao espaço público. Essa aura de intocabilidade é imprescindível para que a convivência familiar se construa de modo estável e, acima de tudo, com identidade coletiva própria, o que faz que nenhuma família se confunda com outra. O inciso XI do art. 5º da Constituição estabelece que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo nela penetrar sem consentimento do morador”. Mas, a referência constitucional explícita ao princípio será encontrada no art. 227. Também no Código Civil, o princípio se expressa na alusão do art. 1.513. à não interferências “na comunhão de vida instituída pela família”. A Convenção dos Direitos da Criança, no art. 9.3, estabelece que, no caso de pais separados, a criança tem direito de “manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, ao menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança”.

O direito à convivência familiar, tutelado pelo princípio e por regras jurídicas específicas, particularmente no que respeita à criança e ao adolescente, é dirigido à família e a cada membro dela, além de ao Estado e à sociedade como um todo. Por outro lado, a convivência familiar é o substrato da verdade real da família socioafetiva, como fato social facilmente aferível por vários meios de prova. A posse do estado de filiação, por exemplo, nela se consolida. Portanto, há direito à convivência familiar e direito que dela resulta.

A convivência familiar também perpassa o exercício da autoridade parental. Ainda quando os pais estejam separados, o filho menor tem direito à convivência familiar com cada um, não podendo o guardião impedir o acesso ao outro, com restrições indevidas.

O direito à convivência familiar não se esgota na chamada família nuclear, composta apenas pelos pais e filhos. O Poder Judiciário, em caso de conflito, deve levar em conta a abrangência da família considerada em cada comunidade, de acordo com seus valores e costumes. Na maioria das comunidades brasileiras, entende-se como natural a convivência com os avós, tios, primos, todos integrando um grande ambiente familiar solidário. Portanto, o direito à convivência familiar é abrangente de pais, avós e de todas as pessoas com os quais a criança ou adolescente mantenha vínculo afetivo, observando-se, assim, os melhores interesses destes.

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Nova principiologia do direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7757, 26 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105910. Acesso em: 27 set. 2024.

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