2 OS FUNDAMENTOS DO ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A MOTIVAÇÃO DO DECRETO PRISIONAL
Abordadas as previsões legais específicas que regem a prisão preventiva bem como as características particulares desse instituto, passa-se à análise das expressões constantes no artigo 312 do Código de Processo Penal, dispositivo gerador de posicionamentos divergentes quanto à interpretação do significado das expressões e que, ao mesmo tempo, é determinante para a aplicação da medida em estudo.
2.1 Os pressupostos e fundamentos autorizadores da prisão preventiva constantes no artigo 312 do Código de Processo Penal
Já se analisou, no capítulo anterior, o caráter excepcional do qual se reveste a prisão preventiva, a exigência da configuração da necessidade para sua aplicação, os legitimados ao seu requerimento e as condições em que é admitida. A partir disso, quando da aplicação da medida é necessário que o julgador verifique a existência desses elementos e constate se efetivamente estão preenchidos os pressupostos e os fundamentos da referida prisão, dispostos no artigo 312 do Código de Processo Penal, os quais, consoante já referido representam, respectivamente, o fumus boni iuris e o periculum in mora.
A título de informação, é de se destacar o posicionamento expresso por Aury Lopes Jr. (2004, p. 189-190) quanto a essas duas expressões utilizadas para caracterizar os referidos pressupostos e fundamentos, o qual também foi repetido na obra de Paulo Rangel (RANGEL, 2005, p. 594). O entendimento daquele autor é o de que constitui uma "impropriedade jurídica (e semântica)" a utilização da expressão fumus boni iuris, sendo o termo correto a ser utilizado, "fumus comissi delicti", uma vez que tal requisito consiste na probabilidade da ocorrência de um delito e não da existência do direito da acusação. Também o autor considera inadequada a utilização do termo periculum in mora tendo em vista que o perigo decorre do "estado de liberdade do imputado" e não do tempo, motivo pelo qual deve ser utilizada a expressão "periculum libertatis". Acrescenta, ainda, que o periculum é fundamento das medidas cautelares, enquanto que o fumus comissi delicti é requisito.
Não obstante, e tendo em vista o objeto do presente trabalho, passa-se à análise do artigo 312 do Código de Processo Penal, para o que se continuará utilizando os termos adotados pela doutrina clássica.
O referido dispositivo apresenta a seguinte redação: "A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria".
Inicialmente será analisada a última parte do citado artigo, uma vez que sinaliza os pressupostos da prisão preventiva, sem os quais a medida não poderá ser decretada, conforme já se aventou. Estes estão contidos nas expressões "prova da existência do crime" e "indícios suficientes de autoria".
De acordo com Mirabete (1999, p. 412-413), o primeiro pressuposto está relacionado à materialidade delitiva, ou seja, à existência de "laudo de exame de corpo de delito, documentos, prova testemunhal etc.". Referindo o texto legal a existência de prova, não são admitidas, a fim de se justificar a decretação da prisão preventiva, simples suspeitas ou indícios de que tenha ocorrido um ilícito penal. A lição de Paulo Rangel (2005, p. 631) complementa esse entendimento ao referir que a materialidade deverá ser atestada por "laudo pericial, documentos ou prova testemunhal idônea", sendo que o referido laudo é hábil a comprovar a materialidade dos crimes que deixam vestígios (FREITAS, 2004, p. 44).
Também é necessário ressaltar que são "elementos conceituais e estruturais do crime" a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade e, por assim ser, faltando algum desses elementos não haverá crime. Como conseqüência disso, a prisão preventiva não será passível de ser decretada. Nesse diapasão, quando se faz presente alguma causa excludente de ilicitude, não é possível a decretação da prisão preventiva, o que é determinado, inclusive, pelo art. 314 do CPP [já explicitado no capítulo anterior]. De igual forma não será possível a adoção da medida quando existir uma "eximente de culpabilidade", ou seja, quando houver inimputabilidade, erro de tipo ou proibição (casos em que o erro deverá ser comprovado), coação moral irresistível ou "estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico" (PEDROSO, 1994, p. 99-100).
Para elucidar essa questão, colaciona-se a lição de Mirabete (2001, p. 98), o qual define como fato típico "o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca, em regra, um resultado, e é previsto como infração penal". Nesse contexto, "positivo" e "negativo" significam, respectivamente, ação ou omissão.
Como fato antijurídico, o autor entende "aquele que contraria o ordenamento jurídico", sendo a antijuridicidade "a relação de contrariedade entre o fato típico praticado e o ordenamento jurídico". Já a culpabilidade é definida como "a reprovação da ordem jurídica em face de estar ligado o homem a um fato típico e antijurídico [...] a contradição entre a vontade do agente e a vontade da norma".
Necessária que é a prova para atestar a existência do crime, o mesmo não ocorre quanto aos "indícios suficientes de autoria", como bem resume Fernando de Almeida Pedroso (1994, p. 99-100), ao afirmar que "o delito precisa estar ‘provado’ e a autoria necessita ser pelo menos ‘provável". Isso porque, conforme se verifica do texto legal, este se refere a "indícios" e não a provas. Nesse sentido, Aury Lopes Jr. (2004, p. 191), citando o pensamento de Carnelutti em sua obra "Lecciones sobre el Processo Penal (1950, p. 180)", salienta a imprecisão da expressão relativa ao segundo pressuposto da prisão preventiva, mencionando que "a proposição ‘indícios suficientes’ não diz nada".
Em que pese a amplitude de tal expressão, a doutrina a interpreta de maneira a agregar-lhe um "juízo de probabilidade" (LOPES JR., 2004, p. 192). Neste aspecto, é a lição de Paulo Rangel, como se verifica de suas palavras:
Indícios suficientes de autoria não são provas contundentes, robustas e que geram certeza absoluta de autoria do indiciado ou acusado. Basta apontamentos de que o indigitado ou acusado é o autor do fato. Elementos que apontem a fumaça no sentido de que o acusado é o autor do ilícito penal que ora se apura. São indicações. Não é necessário o fogo da certeza, mas sim a mera fumaça de que ele pode ser o autor do fato (2005, p. 631) [grifo do autor].
Não sendo, portanto, necessária a certeza quanto à autoria, a verificação da suficiência dos indícios é confiada ao Magistrado, o qual deverá, com base nos "elementos colhidos", decidir se estes são suficientes à decretação da prisão preventiva (MIRABETE, 1999, p. 413). O mesmo se aplica em relação ao pressuposto da existência do crime, pois as causas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade, da mesma forma, são "objeto de análise e valoração" pelo Juiz quando da aplicação da medida (LOPES JR., 2004, p. 193).
Configurados os pressupostos abordados, também se faz necessária a análise dos fundamentos da prisão preventiva contidos nas expressões garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal, indicados na primeira parte do artigo 312 do Código de Processo Penal, os quais devem existir paralelamente aos pressupostos a fim de que seja possível a decretação da medida (MOREIRA, 1996, p. 89).
Quanto ao primeiro fundamento da prisão preventiva (garantia da ordem pública), segundo David Alves Moreira (1996, p. 68-69) "a interpretação dada à expressão ‘ordem pública’ nem sempre tem sido pacífica, constituindo ponto de grande controvérsia na análise do caso concreto". Aury Lopes Jr. (2004, p. 205) chega a classificar tal expressão como vaga, imprecisa e indeterminada. A partir disso, o "enquadramento das situações pertinentes", na hipótese da garantia da ordem pública, fica confiado à doutrina e à jurisprudência (FREITAS, 2004, p. 46).
A doutrina traz o conceito de ordem pública como "a paz, a tranqüilidade no meio social" (TOURINHO FILHO, 1998, p. 475), sendo que o fundamento em exame se destina a dois aspectos: "evitar que o acusado volte a cometer delitos e evitar a perturbação da ordem pública nos casos em que surge o grave abalo social" (BECK, 2001, p. 79).
No primeiro caso, considera-se que a ofensa a um bem juridicamente tutelado ofende a ordem pública (FREITAS, 2004, p. 46), destinando-se, assim, a medida, a impedir que o agente, estando solto, continue a delinqüir. Trata-se de caso de "prevenção especial" (GOMES FILHO, 1991, p. 67), sendo a "provável prática de novos delitos" aferida a partir de elementos tais como antecedentes do réu e reincidência (CAPEZ, 1997, p. 213).
Essa constatação da possibilidade de reiteração de delitos é criticada. Aury Lopes Jr. (2004, p. 204) salienta, inclusive, a expressão "futurologia perigosista" utilizada em decisão proferida no HC 70006140693, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que foi relacionada à questão. Também Gomes Filho (1991, p. 69) tece críticas a essa hipótese de decretação da prisão preventiva, afirmando que a aferição periculosidade do réu ocorre com base em um "juízo de probabilidade", bem como que antecedentes criminais e gravidade do delito "mais revelam uma impressão pessoal do magistrado do que uma realidade assentada em fatos concretos".
A questão da gravidade do delito está relacionada ao aspecto do abalo social antes mencionado. Este, por sua vez, está ligado à gravidade e à repercussão do crime, aplicando-se a medida com o intuito de "acautelar o meio social" e resguardar a "credibilidade da justiça" (MIRABETE, 1999, p. 414). Cuida-se de "exemplariedade’, no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade" (FOSCHINI apud GOMES FILHO, p. 67).
Há o entendimento de que apenas a gravidade do delito não é suficiente para ensejar a prisão preventiva, devendo ser analisadas outras circunstâncias que possam causar clamor público e, assim, o abalo da ordem pública. De igual forma, a simples repercussão do fato sem outras conseqüências como a periculosidade do réu e a reiteração da prática do delito não são hábeis a ensejar a prisão preventiva (MIRABETE, 1999, p. 414). Também se deve salientar o posicionamento de Paulo Rangel (2005, p. 628), para o qual o indivíduo não pode ser segregado cautelarmente a pretexto de assegurar sua integridade física em face do clamor social causado pelo crime.
Embora a interpretação realizada pela doutrina quanto à garantia da ordem pública, dada abrangência do termo "ordem pública" já referida, há dificuldades de delimitar um conceito para este (GOMES FILHO, 1991, p. 66). A partir disso, poderá ocorrer que o termo justifique qualquer prisão, por menos necessária que seja, tendo em vista que a prática de ato contrário à lei pode ofender a ordem pública.
Uma crítica relevante quanto a esse fundamento para a custódia preventiva está relacionada à constitucionalidade da prisão decretada com base nesta hipótese. Quanto a esse ponto, transcreve-se a lição de Aury Lopes Jr.:
As medidas cautelares não se destinam a "fazer justiça", mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo [...] só é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim [...]. E somente o que for verdadeiramente cautelar é constitucional (LOPES JR., 2004, p. 202-203) [grifo do autor].
O autor justifica esse posicionamento afirmando que a prisão preventiva decretada com base no fundamento da garantia da ordem pública ou da ordem econômica "nada tem a ver" com os fins da tutela cautelar, pois nesses casos a prisão é utilizada como medida de segurança pública. Também refere o autor que "a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros". Ainda nesse pensamento, a prisão decretada com base nesses fundamentos consistiria em pena antecipada (LOPES JR., 2004, p. 203-205). No mesmo sentido, é a posição de Gomes Filho (1991, p. 68), para o qual a prisão para a garantia da ordem pública é uma antecipação da punição e ofende à Constituição.
A garantia da ordem econômica acima referida também é um dos fundamentos que viabilizam a decretação da prisão preventiva, consoante a redação do artigo 312 do Código de Processo Penal. Essa hipótese foi incluída no citado artigo através do artigo 86 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994 (Lei Antitruste), consistindo em uma "repetição" do fundamento da garantia da ordem pública (CAPEZ, 1997, p. 214).
A prisão preventiva decretada com base no fundamento em exame visa a resguardar a ordem econômica de modo a "permitir a prisão do autor do fato-crime" que perturbe "o livre exercício de qualquer atividade econômica" (RANGEL, 2005, p. 629).
As condutas que atentam contra a ordem econômica são aquelas cujo objeto ou efeito consista naqueles mencionados no artigo 20 da lei acima mencionada, os quais referem em "limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência e a livre iniciativa; dominar o mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros; e exercer de forma abusiva posição dominante" (MIRABETE, 1999, p. 415).
Também é possível a aplicação da prisão preventiva a partir de hipóteses previstas em leis extravagantes, das quais podem ser citadas as Leis nº 8.137, de 27-12-90, a qual define crimes contra a ordem tributária e econômica e contra as relações de consumo, nº 7.492, de 16-6-1986, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional e dá outras providências, e a Lei nº 1.521, de 26-12-1952, que dispõe sobre crimes contra a economia popular (FREITAS, 2004, p. 49), e outras normas que se refiram à ordem econômica, em conformidade com a disposição do artigo 170 da Constituição Federal e seguintes [os quais dispõe sobre os princípios gerais da atividade econômica], combinado com o art. 20 da Lei nº 8.884/94 (RANGEL, 2005, p. 629).
Com base no que foi dito inicialmente a respeito da prisão para a garantia da ordem econômica, a esta são dirigidas as mesmas críticas realizadas quanto à prisão preventiva para a garantia da ordem pública, pois também considera-se que a hipótese em exame desvirtua "as finalidades instrumental e cautelar" da custódia preventiva (BECK, 2001, p. 83).
Prosseguindo-se no estudo do artigo 312 do Código de Processo Penal, outro fundamento que possibilita a decretação da prisão preventiva é a conveniência da instrução criminal.
A palavra "conveniência", utilizada no texto legal, poderia remeter a uma idéia de "oportunidade, de utilidade ou de mera vantagem processual". Embora a adoção desse termo pelo citado artigo 312, a mera conveniência não é hábil a determinar a privação da liberdade, devendo haver, para tanto, a comprovada necessidade para a instrução criminal (FREITAS, 2004, p. 50). Assim, nas palavras de Hélio Tornaghi (1990, p. 93), "deve entender-se conveniente a prisão para a instrução criminal somente quando estritamente necessária, isto é, quando sem ela a instrução não se faria ou se deturparia". Nesse sentido, estariam obstaculizando a instrução criminal determinadas práticas por parte do indiciado ou réu, tais como afugentar ou ameaçar testemunhas, subornar pessoas que possam levar ao Juiz elementos relevantes para o esclarecimento do fato, ameaçar peritos, a vítima (TOURINHO FILHO, 1998, p. 476), o Juiz ou promotor de justiça que atua no processo, subtrair documentos úteis, (RANGEL, 2005, p. 629) dentre outras.
Diante da ocorrência de tais práticas, infere-se a necessidade da tutela da prova para resguardar a instrução criminal. Nesse aspecto, Jaime Walmer de Freitas (2004, p. 51) afirma que a posição da jurisprudência é no sentido de que "a conveniência da instrução criminal evidencia a necessidade de a coleta de provas não ser perturbada, impedindo a busca da verdade real". Esse posicionamento foi extraído do Habeas Corpus 3.169, que tramitou no Superior Tribunal de Justiça, cuja decisão será colacionada no decorrer deste trabalho.
A partir do entendimento citado, a custódia preventiva expressa sua necessidade para que o Juiz possa colher de maneira segura os elementos de convicção necessários ao julgamento do processo (TOURINHO FILHO, 1998, p. 476), ou, conforme Paulo Rangel (2005, p. 629), é justificada tal prisão com o objetivo de se "garantir um processo justo, livre de contaminação probatória e seguro para que o Juiz forme, honesta e legalmente, sua convicção", na forma em que preconiza o item VII da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal [grifo do autor].
Quanto à adoção da medida, é importante salientar o posicionamento de David Alves Moreira (1996, p. 93), segundo o qual, para que a prisão preventiva seja "de toda aplicável", deve haver "indícios veementes", ou seja, quase que uma certeza de que o acusado tenha agido ou possa vir a agir de forma a obstruir a instrução criminal, devendo haver a constatação da intenção deste com base em tais indícios. Dessa forma, não bastam suposições, sob pena de se ter uma medida ilegal.
Outro ponto que merece destaque quanto à prisão destinada a garantir a instrução criminal é colocado por Fernando de Almeida Pedroso:
encontrar-se-á o réu alijado de seus direitos se, preso preventivamente por conveniência da instrução criminal [...], esta findar e ele permanecer encarcerado, aguardando o pronunciamento da Justiça. Cessada a causa que determinou a prisão, esta há de ser – incontinenti – revogada (1994, p. 94).
Esse posicionamento está ligado à possibilidade de revogação da prisão preventiva disposta no artigo 316 do Código de Processo Penal. Nesse caso é viabilizada diante do "desaparecimento" do fundamento caracterizador do periculum in mora, qual seja, a conveniência para a instrução criminal.
Também no mesmo sentido do pensamento do autor acima citado é o entendimento de Aury Lopes Jr. (2004, p. 209-211), o qual, após sugerir a substituição da prisão preventiva com base no fundamento em análise pela detenção do sujeito passivo a fim de que este seja ouvido e realizada a produção antecipada de provas, afirma que depois da realização desses atos não há mais motivo para a segregação, pois o suspeito não poderá "alterar mais nada", posicionamento que pode ser aplicado quanto à prisão preventiva para a conveniência da instrução criminal.
Acrescenta-se que a questão referida, de substituição da prisão cautelar pela detenção, está inserida na crítica que o autor faz quanto à prisão com base no fundamento em questão, ao afirmar que a tutela da prova poderia ser realizada de outras formas que demandariam um custo "social e para o imputado" menor do que o de uma prisão cautelar.
O artigo 312 do Código de Processo Penal, por fim, estabelece a possibilidade de decretação da prisão preventiva para "assegurar a aplicação da lei penal". Com base nesse fundamento, o que se busca é assegurar a execução da pena, decretando-se a prisão do autor da infração penal que objetive subtrair-se dos efeitos de eventual condenação (MIRABETE, 1999, p. 416).
A possibilidade de subtração referida é constatada através de determinadas circunstâncias como, por exemplo, não ser o indiciado ou acusado radicado no distrito da culpa, se desfazer de seus "bens de raiz" de forma injustificada (TOURINHO FILHO, 1998, p. 476), não ter residência fixa, ocupação lícita, dentre outras situações que como estas indicam a "provável evasão" (CAPEZ, 1997, p. 214).
Nesse ponto, Paulo Rangel (2005, p. 629) afirma que para decretar-se a prisão preventiva com o fim de assegurar a aplicação da lei penal, deve haver provas seguras dessas circunstâncias, como em relação ao fato de que o acusado está "tentando livrar-se de seu patrimônio" e o de que este se encontra em "lugar incerto e não sabido com a intenção de se subtrair à aplicação da lei", hipótese essa que caracteriza a fuga. Quanto a esta, Fernando de Almeida Pedroso, baseado em uma série de julgados que cita em sua obra, assevera que,
a fuga do réu do distrito da culpa (ou não possuir ele emprego ou domicílio fixos) exsurge, por si só, como motivo suficiente, respaldado em necessidade de assegurar-se a aplicação da lei penal, para o enclausuramento provisório do indigitado autor do delito (1994, p. 93).
Entretanto, é necessário voltar-se à lição de Paulo Rangel (2005, p. 629), para o qual a fuga não pode ser presumida, mas aferida com base em elementos constantes nos autos que demonstrem de forma cabal o desejo de subtração. Nesse contexto, o poder econômico do réu, por si só, sem estar apoiado em tais elementos que demonstrem a pretensão de fuga, ou o simples fato de aquele estar desempregado não podem autorizar a prisão preventiva. Assim, "deve-se apresentar um fato claro, determinado, que justifique o receio de evasão do réu" (LOPES JR., 2004, p. 211).
Da mesma forma em que ocorre com os outros dois fundamentos da prisão preventiva abordados anteriormente, a decretação da medida para garantir a aplicação da lei penal recebe críticas, as quais são no sentido de ser "absolutamente inconcebível qualquer presunção de fuga" diante do princípio constitucional da presunção de inocência, que impõe a presunção do comparecimento do acusado, bem como de que existem outras formas de se assegurar a presença do réu, como obrigá-lo ao comparecimento periódico para informar suas atividades e comprovar sua presença, reter seu passaporte e outras, de maneira que a privação da liberdade seria aplicável a situações realmente excepcionais. Pode-se acrescentar também a hipótese de condução forçada do acusado, colocada por Tornaghi (1990, p. 94), a qual está disposta no artigo 260 do Código de Processo Penal.
Abordados os fundamentos da prisão preventiva segundo a doutrina, é oportuno colacionar-se a título de complementação a ementa da decisão proferida nos autos do Habeas Corpus 3.169, citado por Jaime Walmer de Freitas (2004, p. 51), no que é pertinente:
EMENTA: HC - PROCESSUAL PENAL - PRISÃO PREVENTIVA - FUNDAMENTAÇÃO – [...] a ordem publica resta ofendida quando a conduta provoca acentuado impacto na sociedade, dado ofender significativamente os valores reclamados, traduzindo vilania do comportamento. A conveniência da instrução criminal evidencia necessidade de a coleta de provas não ser perturbada, impedindo a busca da verdade real. Assegurar a aplicação da lei penal, por fim, traduz idéia de o indiciado, ou réu demonstrar propósito de furtar-se ao cumprimento de eventual sentença condenatória. Aqui, e suficiente o juízo de probabilidade (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 1995).
Observa-se que a decisão acima é condizente com a posição doutrinária que se refere à conceituação dos fundamentos estudados. Contudo, é certo que, como bem refere David Alves Moreira (1996, p. 94), estes dão margem a diversas interpretações, o que possibilita a aplicação da prisão preventiva com base em meras referências a tais fundamentos. Assim, é necessária a atenção à motivação da decisão que determina a prisão preventiva, ponto que será abordado no subcapítulo seguinte.
2.2 A Motivação do Decreto Prisional conforme os Artigos 93, IX, da Constituição Federal, e 315 do Código de Processo Penal
Partindo-se da abordada dificuldade de conceituar os fundamentos da prisão preventiva elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal, bem como da característica excepcionalidade de que se reveste tal prisão, uma vez que implica na privação da liberdade do indivíduo antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, mostra-se essencial o estudo da motivação do decreto prisional com base em tais fundamentos.
A importância desse estudo é evidenciada inclusive pela doutrina, que refere a proliferação de "decisões formulárias e sem a menor fundamentação" em que se ampara a decretação da prisão preventiva (LOPES JR., 2004, p. 193). Também nesse contexto, afirma-se que "a matéria vem sendo tratada ao longo dos anos de maneira pouco razoável", de modo que "os abusos e arbitrariedades, calcados principalmente na falta de justificação e necessidade da medida, têm se tornado uma constante" (BECK, 2001, p. 79).
Considerando-se a realidade retratada, passa-se ao estudo da motivação da decisão que decreta, denega ou mantém a prisão preventiva.
A necessidade de motivação das decisões judiciais é prevista no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, o qual apresenta a seguinte redação:
Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
[...]
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes; [...]
Do texto legal decorre, além do "dever de motivar", o dever de publicidade dos julgamentos, que constitui "direito fundamental do cidadão", estando expresso no artigo 5º, LX, da Constituição Federal, o qual dispõe que "a lei só poderá restringir a liberdade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem". Essa questão da publicidade, entretanto, não comporta aprofundamento, tendo em vista o objeto do estudo que ora se desenvolve. Salienta-se, apenas, a ligação entre os deveres de publicidade e de motivar, consistente no fato de que "não se conceberia julgamento público sem motivação, que é o momento em que as razões da decisão se exteriorizam", isso no sentido de viabilizar o controle social quanto às decisões do Poder Judiciário. A exceção quanto à necessidade de motivação ocorre em casos excepcionais como na decisão do Júri, a qual "não é motivada e segue o sistema do livre convencimento para a apreciação da prova" (CARVALHO, 1998, p. 125-126).
Adentrando-se no estudo da motivação, esta constitui princípio constitucional, devendo todas as decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário ser fundamentadas, sob pena de nulidade (RANGEL, 2005, p. 482).
Em termos de conceituação, Paulo Rangel (2005, p. 482) estabelece que "a fundamentação é a exteriorização do raciocínio desenvolvido pelo Juiz para chegar à conclusão". É a fundamentação, a exposição das "razões de fato e de direito" (TORNAGHI, 1990, p. 91). Aury Lopes Jr. (2004, p. 254) aduz, ainda, que "não se trata de gastar folhas e folhas para demonstrar a erudição jurídica (e jurisprudencial) ou discutir obviedades. O mais importante é explicar o porquê da decisão, o que levou a tal conclusão".
A partir disso, a motivação deve conter de forma clara as escolhas feitas pelo Magistrado, devendo este justificar a escolha de determinada regra jurídica e dizer, de forma adequada, por que fez determinada opção (GRINOVER, 1995, p. 169-170).
No mesmo sentido é a posição expressa pelo Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Habeas Corpus 18681, abaixo transcrita:
EMENTA: HABEAS CORPUS. ROUBO COM CAUSA DE AUMENTO DE PENA. APELO EM LIBERDADE. RÉU QUE RESPONDEU CUSTODIADO AO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A toda evidência, a fundamentação das decisões do Poder Judiciário, tal como resulta da letra do inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, é condição absoluta de sua validade e, portanto, pressuposto da sua eficácia, substanciando-se na definição suficiente dos fatos e do direito que a sustentam, de modo a certificar a realização da hipótese de incidência da norma e os efeitos dela resultantes.
2. Tal fundamentação, para mais, deve ser deduzida em relação necessária com as questões de direito e de fato postas na pretensão e na sua resistência, dentro dos limites do pedido, não se confundindo, de modo algum, com a simples reprodução de expressões ou termos legais, postos em relação não raramente com fatos e juízos abstratos, inidôneos à incidência da norma invocada [...] (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2002).
A partir dessas definições, evidencia-se que a exigência da motivação influencia sobremaneira a atividade do Magistrado, o qual fica obrigado a "justificar seu pronunciamento" (GRINOVER, 1995, p. 169). Nesse contexto, destaca-se o princípio do "livre convencimento motivado" ou "persuasão racional", que sustenta a garantia da fundamentação das decisões judiciais. Esse princípio é previsto no artigo 157 do Código de Processo Penal (LOPES JR., 2004, p. 271), o qual dispõe que "o Juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova".
Trata-se, dessa forma, de garantia para impedir julgamentos parciais, significando que o Juiz está impedido de julgar com base no eventual conhecimento que tenha extra-autos, sendo o processo, "o mundo" para este (TOURINHO FILHO, 1997, p. 46). Cuida-se, assim, de uma "limitação do Juiz ao que está nos autos e que lá tenha regularmente ingressado", de modo que seu convencimento deverá ser pautado por esses elementos (LOPES JR., 2004, p. 272-273).
O posicionamento expresso na obra de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho corrobora o exposto ao mencionar a questão da imparcialidade e vinculação do Juiz aos autos:
É através da fundamentação, com efeito, que se expressam os aspectos mais importantes considerados pelo julgador ao longo do caminho percorrido até a conclusão última, representando, por isso, o ponto de referência para a verificação da justiça, imparcialidade, atendimento quanto às prescrições legais e efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no pronunciamento judicial (1995, p. 242-243).
Diante dessas considerações, expressa-se a importância da obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais ao servir a fundamentação de "instrumento de legitimação do Poder Judiciário", demonstrando que a atuação deste não é arbitrária, mas unicamente pautada pela lei (CARVALHO, 1998, p. 126). Outros reflexos decorrentes do dever constitucionalmente imposto são os de que possibilita à sociedade conhecer da atividade jurisdicional, podendo esta formar uma opinião a respeito da qualidade dos serviços prestados pela justiça (GRINOVER, 1995, p. 169), bem como que "cumpre a função de viabilizar minimamente a irresignação daqueles que, não se dando por satisfeitos com as razões do decidido [...] venham a optar por sua impugnação" (FLACH, 2000, p. 79-80).
É importante ressaltar que os aspectos até então tratados quanto à obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais estão relacionados tanto à sentença quanto às decisões interlocutórias (GRINOVER, 1995, p. 170), sendo fundamental que ambas sejam "suficientemente motivadas" (LOPES JR., 2004, p. 253).
Partindo-se dessa concepção, impõe-se a necessidade de fundamentação prevista no artigo 93, IX, da Constituição Federal aos provimentos relativos à restrição antecipada da liberdade, como no caso das prisões cautelares, de maneira que,
somente através da declaração expressa dos motivos da decisão será possível reconstituir o caminho seguido pelo magistrado para a decretação da medida extrema, aferindo-se, assim, o atendimento das prescrições legais e o efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no provimento (GRINOVER, 1995, p. 232-233).
Assim, quanto às prisões cautelares é imperativa a "declaração expressa dos motivos que ensejaram a restrição da liberdade individual no caso concreto" (GOMES FILHO, 1991, p. 79-81), ficando o Juiz obrigado a explicitar as circunstâncias concretas que o levaram a entender que há o perigo da liberdade do acusado para o desenvolvimento dos atos instrutórios, para a aplicação da pena ou para a garantia da ordem pública (CÂMARA, 1997, p. 59).
Ainda deve-se acrescentar que, no tocante à prisão, de maneira geral, o dever de fundamentar também é disposto no artigo 5º, LXI, do mesmo diploma legal, que estabelece que "ninguém será preso senão em flagrante de delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente" (GRINOVER, 1995, p. 232).
A partir de tais disposições, bem como de outras pertinentes previstas na Constituição Federal a respeito da prisão, vislumbra-se o objetivo de submeter as prisões de natureza cautelar ao Poder Judiciário, não podendo a ordem judicial respectiva ser resultante de apreciação discricionária do Juiz (GRINOVER, 1995, p. 232), o que, na verdade, já se depreende do disposto no artigo 93, IX, conforme se referiu anteriormente.
Com base no que se expôs, verifica-se a aplicação às prisões cautelares do entendimento empregado à prisão preventiva quanto à caracterização do fumus boni iuris e do periculum in mora no que se refere à fundamentação destas.
Dessa forma, quanto ao primeiro é indispensável que o Juiz demonstre a tipicidade do fato e sua efetiva existência, indicando, para tanto, as provas em que baseia sua convicção (GRINOVER, 1995, p. 243), de modo a caracterizar-se uma probabilidade e não o reconhecimento antecipado da culpabilidade, em respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência (GOMES FILHO, 1991, p. 81).
Quanto ao periculum in mora, a fundamentação deve conter, de forma explícita, os fatos que caracterizam a necessidade da medida (GRINOVER, 1995, p. 243), havendo, ao contrário do fumus boni iuris, que admite um juízo de probabilidade, necessidade de se analisar de maneira mais aprofundada as circunstâncias que configuram a necessidade da prisão (GOMES FILHO, 1991, p. 79).
No que se refere à prisão preventiva, a imposição da fundamentação é mais explícita, tendo em vista disposição legal específica existente antes mesmo da Constituição Federal vigente, que recepcionou tal disposição (FREITAS, 2004, p. 54). Esta consiste no artigo 315 do Código de Processo Penal, o qual apresenta a seguinte redação: "o despacho que decretar ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentado".
Nesse ponto, inicialmente é importante frisar, em face do conteúdo do texto legal, que a nova redação proposta ao referido artigo, constante no Projeto de Lei nº 4.208/01, que modifica o Título IX do Código de Processo Penal que trata "Da Prisão e da Liberdade Provisória", exige que "a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva seja sempre fundamentada". Trata-se de observância ao exigido no artigo 93, IX, da Constituição Federal, referindo-se a "decisão interlocutória simples e não mero despacho", como consta na atual redação do artigo 315 do Código de Processo Penal (MOREIRA, 2002).
Prosseguindo-se na análise do citado artigo 315, este impõe que o Juiz justifique o porquê da restrição da liberdade, o qual deverá, para tanto, demonstrar as razões de seu entendimento de forma clara e objetiva e estruturar sua linha de raciocínio de modo a demonstrar as etapas que o levaram à decretação da medida (CÂMARA, 1997, p. 60).
Destaca-se, ainda, que a fundamentação é exigida por se tratar a prisão preventiva de "medida extrema e excepcional", visto que é prisão sem imposição de pena. Também reclama motivação porque se interliga ao direito de defesa do réu, o qual, conhecendo daquela, poderá impugnar os motivos que considere ilegais para a decretação de sua prisão (PEDROSO, 1994, p. 100-102).
Embora as expressas determinações legais quanto à necessidade de motivação da decisão que determina a prisão preventiva, pode-se verificar a existência de decisões em que há carência ou ausência de fundamentação, tanto que há diversos julgados proferidos em terceiro grau que tratam do tema e, muitas vezes, concedem a ordem de habeas corpus. Também, a doutrina, conforme já referido, reconhece a existência de decisões marcadas por essa característica e relata sua proliferação.
Nesse sentido, Aury Lopes Jr. (2004, p. 193) aduz que "se repetem com uma freqüência espantosa (ou apavorante)" as decisões do tipo: "Homologo o flagrante, eis que formalmente perfeito. Decreto a prisão preventiva para a garantia da ordem pública (ou conveniência da instrução criminal)" [grifo do autor].
Segue o referido autor afirmando que em casos como esse, "sequer deve-se falar em ‘falta de fundamentação’, senão em inexistência de decisão".
Na mesma esteira, Hélio Tornaghi tece críticas em sua obra quanto a decisões do estilo, asseverando que,
não basta de maneira alguma, não é fundamentação, frauda a finalidade da lei e ilude as garantias da liberdade o fato de o Juiz dizer apenas: ‘considerando que a prisão é necessária para a garantia da ordem pública...’. Ou então: ‘a prova dos autos revela que a prisão é conveniente para a instrução criminal...’. Fórmulas como essa são a mais rematada expressão da prepotência, do arbítrio e da opressão. Revelam tirania ou ignorância [...] (1990, p. 91-92).
Assim, não obstante todas as considerações realizadas acerca da motivação das decisões judiciais, faz-se necessária, quanto à prisão preventiva especificamente, que é objeto do estudo que se desenvolve, a análise dos elementos que se considera que devem estar presentes na decisão.
Primeiramente, no que se refere à caracterização dos pressupostos da medida em estudo constantes no artigo 312 do Código de Processo Penal, há a necessidade de que o Juiz indique "sempre" quais as provas da existência do crime e quais as da autoria (TORNAGHI, 1990, p. 91) [grifo nosso]. Para elucidar essa questão, tendo em vista que quanto à autoria a lei admite indícios, é necessário que o Juiz indique "os elementos informativos ou instrutórios" que caracterizam ambos os pressupostos, embasando, assim, sua decisão em dados fáticos (PEDROSO, 1994, p. 101).
A jurisprudência expressa-se em consonância com o entendimento doutrinário exposto, como se depreende da decisão proferida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal abaixo colacionada:
EMENTA: PRISÃO PREVENTIVA. DESPACHO DO JUIZ DE PRIMEIRO GRAU QUE DEVERIA SER MAIS EXPLICITO, MORMENTE A RESPEITO DOS INDÍCIOS DE AUTORIA. Entretanto, indicando ele as fontes de seu convencimento e se encontrando nelas, como bem demonstrou o acórdão recorrido, os fatos dos quais emergem tais indícios, é de negar-se provimento ao recurso ordinário endereçado ao Supremo Tribunal Federal (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 1983).
Da mesma forma em que ocorre com relação ao pressupostos, deverá o Juiz "mencionar de maneira clara e precisa os fatos que o levam a considerar necessária a prisão para garantir a ordem pública ou para assegurar a instrução criminal ou a aplicação da lei penal" (TORNAGHI, 1990, p. 91) [grifo do autor], o que impõe ao Magistrado o dever de apoiar-se em elementos do processo ou do inquérito (TOURINHO FILHO, 1998, p. 479), ou seja, em dados objetivos, com base sólida (FREITAS, 2004, p. 54), esclarecendo o porquê da necessidade da prisão (CÂMARA, 1997, p. 60).
Diante disso, evidencia-se que a prisão preventiva "exige uma exposição fundada em dados concretos que motivem sua decisão", o que, do contrário, violaria o disposto no artigo 5º, LXI, da Constituição Federal (MIRABETE, 1999, p. 420), e também o artigo 93, IX, como se pode concluir da abordagem feita quanto a este.
Dessa forma, não se admite que a medida esteja apoiada em suposições ou "hipóteses ou conjecturas sem apoio nos autos", não sendo suficiente a mera alusão genérica ao texto legal ou transcrição deste. Nesse sentido, tem destaque, também, a inadmissibilidade da simples gravidade do crime como fundamento da prisão preventiva (MIRABETE, 1999, p. 417-420), abordada no capítulo anterior.
A posição doutrinária exposta é condizente com o entendimento expresso pelas decisões do Supremo Tribunal Federal, como se pode verificar das ementas abaixo:
EMENTA: [...] PRISÃO PREVENTIVA - FUNDAMENTAÇÃO. O pronunciamento judicial em que implementada a prisão preventiva ou negada a liberdade provisória há de estar individualizado ante o caso concreto e fundamentado, mostrando-se imprópria a alusão genérica aos artigos que a disciplinam [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2003).
EMENTA: [...]Também tranqüila a orientação de que não constitui fundamentação idônea a simples referência aos pressupostos legais do art. 312 do CPP, sem menção a fatos concretos capazes de atestar sua ocorrência. As adjetivações de hediondo ou, como preferiu o magistrado, "crime mercenário", também não são suficientes, por si sós, para justificar a custódia [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2003).
Partindo-se das considerações expostas quanto à motivação da decisão relativa à prisão preventiva, resta verificar de que maneira devem estar previstos no decreto prisional os fundamentos dispostos no artigo 312 do Código de Processo Penal, já explicitados no subcapítulo anterior, para que aquele esteja motivado.
Nesse ponto, não é demais ressaltar, com base no entendimento abordado, que, para constituírem fundamento da prisão preventiva, as hipóteses de garantia da ordem pública, da ordem econômica, da conveniência da instrução criminal e da garantia da aplicação da lei penal, quando invocadas, não devem estar baseadas em meras suposições, mas em fatos concretos, os quais que devem ser indicados na respectiva decisão, não podendo, ainda, simplesmente ser transcritas as palavras da lei.
Assim, embora o problema conceitual que envolve a questão da garantia da ordem pública, esta constituirá fundamento para a referida prisão se estiver apoiada em fatos que evidenciem sua real necessidade e não em fatos generalizadores (MOREIRA, 1996, p. 93). Devem, portanto, ser apontados fatos idôneos nesse sentido que "bem caracterizem essa situação" (FREITAS, 2004, p. 54).
Quanto à conveniência da instrução criminal, deve ser demonstrada a tentativa de obstrução desta (MOREIRA, 1996, p. 94) por meio da indicação de fatos que caracterizem essa intenção, como o aliciamento de testemunhas (FREITAS, 2004, p. 54), por exemplo, e outras já abordadas.
Relativamente ao fundamento de assegurar a aplicação da lei penal, da mesma forma é "indispensável a comprovação de fatos idôneos" que demonstrem esse objetivo, consistentes em certas condutas já abordadas (FREITAS, 2004, p. 54).
Esse entendimento quanto à motivação do decreto prisional com base nos citados fundamentos previstos no artigo 312 CPP é bem explicitado no julgamento proferido pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus 82446, abaixo colacionado:
EMENTA: HABEAS-CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS: AUSÊNCIA. 1. Conveniência da instrução criminal. A mera afirmação de que o paciente influiria nas investigações, sem elementos concretos que a comprove, não constitui fundamento idôneo à decretação da prisão cautelar. 2. Necessidade de preservação da ordem pública. É insuficiente o argumento de que esse requisito satisfaz-se com a simples assertiva de clamor público em razão da hediondez do fato delituoso e da sua repercussão na comunidade, impondo-se a medida constritiva de liberdade sob pena de restar abalada a credibilidade do Poder Judiciário. 3. Garantia da aplicação da lei penal. A circunstância de o paciente ter fugido após a consumação do crime não significa que pretenda furtar-se à sanção penal que eventualmente lhe for aplicada, já que, decorridos cinco dias do fato delituoso, compareceu perante a autoridade policial e confessou a autoria, permanecendo no distrito da culpa durante cinqüenta dias, quando foi decretada a sua prisão preventiva. 4. O caráter hediondo do crime não consubstancia motivo suficiente à adoção da prisão preventiva automática, de muito abolida do sistema processual penal brasileiro. Habeas-corpus deferido (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2002).
Além da questão dos fundamentos examinados na motivação do decreto da prisão preventiva, é necessário acrescentar que a sumariedade da cognição é característica da tutela preventiva, que possui natureza urgente (GOMES FILHO, 1991, p. 78-79). A partir disso, considera-se que a decisão concernente à prisão preventiva não precisa ser longa tal como uma sentença condenatória. Admite-se, assim, que seja sintética (PEDROSO, 1991, p. 103), mas desde que sejam apontados os fatos em que é embasada a decisão e exposta a "conveniência da custódia" (MIRABETE, 1999, p. 420).
No que tange à ausência de fundamentação, para caracterizá-la, volta-se às considerações feitas por Hélio Tornaghi (1990, p. 91-92) e Aury Lopes Jr. (p. 193), os quais asseveraram, respectivamente, que "não é fundamentação" e há "falta de fundamentação" quando a decisão relativa à prisão preventiva apresenta a simples menção da garantia da ordem pública, da ordem econômica, da conveniência da instrução criminal e da garantia da aplicação da lei penal.
Relativamente a essa questão é de se salientar, também, em consonância com os já tratados artigos 5º, LXI, e 93, IX, da Constituição Federal, que a motivação das decisões judiciais constitui pressuposto de validade destas.
Em conseqüência disso, "a ausência de fundamentação conduzirá à nulidade absoluta do decreto de prisão preventiva" (GRINOVER, 1995, p. 243), nulidade que é, portanto, insanável, ou seja, não convalesce. (RANGEL, 2005, p. 722).
Da falta de fundamentação da medida decorre sua inadmissibilidade, caracterizando-se constrangimento ilegal, restando ao imputado a impetração de habeas corpus para saná-lo (MIRABETE, 1999, p. 411).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com efeito, a prisão preventiva não deve ser entendida como uma medida excepcional tão-somente por implicar na restrição antecipada da liberdade do indivíduo, mas também por ser um ato extremamente gravoso.
Como se não bastassem os efeitos da restrição da liberdade no âmbito pessoal e social, essa onerosidade é acentuada diante da imprecisão dos termos utilizados no artigo 312 do Código de Processo Penal, essencialmente quanto aos fundamentos da prisão preventiva.
Essa situação se expressa, na prática, por meio de um grande poder dado ao Magistrado no sentido de que lhe possibilita a análise da conveniência da medida de acordo com seu entendimento quanto à interpretação dos referidos fundamentos e quanto à questão de os fatos existentes configurarem estes, podendo ocorrer de a medida ser aplicada em relação a uma pessoa e não em relação à outra, sendo o fato o mesmo, mas os Juízes diferentes. Disso resulta que não há um parâmetro para sua aplicação.
Sem embargo quanto ao fato de que o Magistrado deve ter liberdade para julgar, a questão essencial está na limitação desta. Como se pôde verificar do estudo realizado, muito embora a exigência da motivação esteja expressa em disposições constitucionais e no artigo 315 do Código de Processo Penal, isso além da existência do princípio da persuasão racional, inúmeras decisões afrontam tais disposições ao simplesmente repetir as palavras da lei, sem justificar a adoção da prisão.
Essa falta de motivação é ainda mais grave quando envolve a restrição da liberdade.
Também a constitucionalidade da prisão decretada através de decisões em que a fundamentação é ausente é questionável, uma vez que, sem que seja expressa a necessidade de cautela, vai-se de encontro ao Princípio da Presunção de Inocência, isso além de contrariar a natureza cautelar e instrumental da prisão preventiva.
Outro ponto que deve ser destacado é o de que, sem se poder determinar expressamente o significado de garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal, nem se delimitar com certeza a abrangência de tais expressões, embora a doutrina e a jurisprudência indiquem como deveria ser a motivação do decreto prisional, ou em que esta deve estar embasada, certamente a dificuldade de se determinar o que é a adequada fundamentação, no sentido de conciliar a liberdade do indivíduo e o direito de punir do Estado, é latente.
Diante de toda essa problemática, resulta que a prisão preventiva assume característica de verdadeira pena antecipada, desvirtuando-se sua finalidade instrumental. Isso tanto que a detração do tempo em que se fica submetido a essa prisão é possibilitada quando de eventual sentença condenatória. Mais evidente é essa característica nos casos de posterior absolvição, em que o indivíduo se sujeita à prisão, cumpre antecipadamente uma pena, e após não é condenado.
Em síntese, a conclusão a que se chegou a partir do estudo realizado é a de que emerge a insegurança jurídica e social, devendo várias questões ser repensadas, tais como, especialmente, a liberdade, as prisões cautelares e a fundamentação das decisões, para que a segurança, tomada nos dois âmbitos mencionados, seja promovida.
Essa situação deixa presente a necessidade de reflexão no sentido de procurar a melhor forma de se aplicar a prisão, ou de até mesmo, adotar-se outras medidas, deixando esta aos casos extremos.
Em função disso, o que se pretendeu foi chamar à atenção sobre a importância do tema escolhido, despertar o pensamento quanto a este, bem como de propiciar a construção de um posicionamento sobre a questão, passível de ser utilizado na vida profissional, para que daí possa ser modificada a realidade então vigente.