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Análise crítica da Lei nº 14.532/2023.

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Agenda 18/12/2024 às 17:04

3. METODOLOGIA

Este estudo tem a intenção de analisar criticamente a Lei de Racismo, especialmente frente às alterações promovidas pela Lei nº 14.532/2023, notadamente contextualizando sua aplicação a um caso concreto como forma de análise empírica. Dessa forma, torna-se necessária a definição de uma metodologia a ser utilizada ao longo do projeto.

Metodologia se trata dos métodos que serão utilizadas para alcançar um entendimento de determinada matéria. Então, pode-se dizer que a metodologia nasce a serviço da pesquisa científica, consistindo no estudo das práticas do saber, buscando o aperfeiçoamento dos conhecimentos humanos (BITTAR, 2016). Indo além, Bittar (2016) também explica:

A metodologia passa a representar, dessa forma, um saber sobre o saber-fazer das práticas científicas. Em outras palavras, trata-se, através da metodologia, de conhecer o que se faz quando se estuda cientificamente algo, quando se adota determinado objeto acerca do qual se entende necessária a especulação. Trata-se do exercício da razão sobre os meios e recursos disponíveis da prática da razão. A metodologia pensa o homem pensando e praticando ciência.

Este projeto visa responder a seguinte problemática: Como a Lei nº 14.532/2023 dialoga com a sistemática jurídica brasileira e quais são as suas consequências no que tange à liberdade de expressão e à manifestação artística, notadamente nos shows de humor?

Dessa forma, baseando-se nas informações obtidas através da análise normativa, da doutrinária e do estudo do entendimento jurisprudencial sobre o tema, com o objetivo de que ao final do trabalho a dúvida posta acima seja respondida.

O estudo será realizado valendo-se da abordagem qualitativa do tipo exploratória. Para Richardson (2017), a pesquisa qualitativa não é uma variável exata; o pesquisador utiliza conceitos cuja essência não pode ser aferida por medições.

O tipo exploratório tem o objetivo de esclarecer, desenvolver e modificar ideias, geralmente envolvendo pesquisas documentais, bibliográficas, entrevistas e análises de casos (GIL, 2019). Esse tipo de pesquisa se encaixa muito bem com o objetivo do presente trabalho.

Esses tipos de pesquisa se pautam na não importância da quantidade de dados, e sim na qualidade destes.

Existem fontes primárias e secundárias. As primárias são aquelas a que o pesquisador tem acesso em “primeira mão”, isto é, não estavam disponíveis anteriormente à pesquisa e só passaram a existir com os esforços do pesquisador. Já as fontes secundárias se caracterizam pela análise de obras e dados que já existem e estão disponíveis para outras pessoas, juntando o máximo de informação relevante possível sobre o tema pretendido (MARCONI; LAKATOS, 2021).

Esta pesquisa buscará se valer de fontes secundárias (análise normativa, de doutrinas, jurisprudência e demais documentos).

O método a ser utilizado no projeto será o dedutivo, o qual se caracteriza por partir de conceitos gerais, chegando até a uma premissa particular mais específica, isto é, “parte de princípios reconhecidos como verdadeiros e indiscutíveis e possibilita chegar a conclusões de maneira puramente formal, isto é, em virtude unicamente de sua lógica” (GIL, 2019).

A investigação teórica proporciona a uma pesquisa a coleta de dados teóricos sobre um tema, sendo classificada em técnica histórica, conceitual e normativa (BITTAR, 2016). Com base nisso, as técnicas a serem utilizadas na presente pesquisa serão a técnica conceitual e a normativa.

A investigação empírica permite que o pesquisador alcance resultados científicos ao realizar análises de forma direta e objetiva. O presente trabalho é predominantemente teórico, entretanto, há o objetivo de análise jurisprudencial que possa indicar como está sendo interpretada e aplicada a Lei do Racismo com as mais recentes alterações.

A pesquisa jurisprudencial não se limitará a determinado município, estado ou região, tendo em vista que o local do julgamento pouco importa para os objetivos do tema proposto. Na realidade, a pesquisa jurisprudencial vai se ater a julgados do Supremo Tribunal Federal.

A pesquisa será realizada através da análise de conteúdo. Para Bardin (2016), a análise de conteúdo é uma técnica na qual o pesquisador busca compreender as características, as estruturas ou os modelos que estão por trás dos fragmentos tomados como parâmetros.

Aponta ainda, Bardin (2016), que são três as fases fundamentais na análise de conteúdo: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados (inferência e interpretação).

A primeira se trata de um período de organização e planejamento, definindo procedimentos, os quais são flexíveis, quando se escolhem os documentos que serão utilizados na pesquisa. Na segunda fase, codificam-se as operações obtidas, os descontos ou as enumerações em função de regras anteriormente já delimitadas. Finalmente, na terceira fase, há o tratamento dos resultados, os quais podem ser submetidos a testes de validação, tendo, portanto, resultados fiéis e significativos, podendo o analista propor suas interpretações (BARDIN, 2016)


4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

De forma a realizar uma pesquisa empírica acerca do tema deste artigo, o qual é relativamente amplo tendo em vista que aborda diversos pontos da Lei de Racismo, notadamente em relação com a alteração promovida pela Lei nº 14.532/2023, foi escolhido um tópico central, o qual, inclusive, foi a inspiração inicial para o presente trabalho, qual seja, o processo criminal que corre contra o humorista Léo Lins em razão do show de humor de alcunha “Perturbador”. Esse caso é muito relevante para este artigo, tendo em vista que está diretamente relacionado com a Lei 14.532/2023 e é adequado para ilustrar como as alterações trazidas pela lei impactam a liberdade de expressão e artística na prática.

Imperioso destacar que o processo corre em segredo de justiça, portanto, para analisar o caso serão utilizados acórdãos e uma decisão monocrática oriundos do Supremo Tribunal Federal (os quais serão especificados em breve). A decisão mais relevante, sem dúvida, se trata da Reclamação Constitucional 60.382/SP, formalizada por Leonardo de Lima Borges Lins (Léo Lins), contra a decisão proferida pelo Juízo do Setor de Atendimento de Crimes da Violência Contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno de Pessoas (SANCTVS), da Comarca de São Paulo/SP, nos autos do processo nº 1011931-27.2023.8.26.0050.

As demais decisões do STF que serão analisadas, embora não conectadas diretamente ao caso do humorista, servem como um amparo argumentativo e jurisprudencial para aquilo a que se propôs o julgamento da reclamação constitucional, e à análise realizada neste trabalho.

Quadro 01 – Acórdãos selecionados na pesquisa

Tribunal

Decisões selecionadas

Número do caso

Supremo Tribunal Federal

RCL 60.382/SP

01

ADPF 130/DF

02

ADI 4451/DF

03

RCL 38.782/RJ

04

Fonte: autor do trabalho, 2023.

O caso 01 trata da Reclamação Constitucional apresentada pela defesa de Léo Lins em relação ao processo nº 1011931-27.2023.8.26.0050. Em síntese, o processo se deu após uma denúncia do Ministério Público de São Paulo em razão de um show de stand-up comedy do comediante postado no YouTube. O show se chamava “Perturbador” e fazia parte de uma turnê ao redor do Brasil na qual o humorista o apresentou em diversas cidades, para mais de 150.000 pessoas no total. O vídeo já possuía mais de 3 milhões de visualizações quando teve que ser retirado da plataforma para cumprir medida cautelar requisitada pelo Parquet. A reclamação teve o condão de cassar a decisão judicial que aplicou essa e outras medidas cautelares propostas pela acusação, como ficará evidenciado posteriormente.

Os outros casos constituem importantes precedentes no que diz respeito à fundamentação jurídica utilizada no julgamento da RCL 60.382/SP. O caso 02 é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, que teve como matéria de discussão a Lei de Imprensa, sendo objeto da ação a declaração de que determinados dispositivos da referida lei não haviam sido recepcionados pela Constituição de 1988.

O caso 03 trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451, a qual visava impugnar os incisos II e III do art. 45. da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), devido ao caráter de censura emanado dos referidos dispositivos, ao impedirem as emissoras de rádio e televisão de veicularem informações relacionadas a temas políticos polêmicos, além de proibirem a sátira e o humor relacionados a candidatos e a partidos políticos.

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O caso 04, por sua vez, diz respeito à Reclamação 38.782/RJ, referente ao notório caso da obra Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo, notadamente no que diz respeito à censura e à ofensa à liberdade de expressão. Diversos paralelos podem ser traçados entre este e o caso 01, o qual é o núcleo da discussão, como se vê logo à frente.

4.1. COMO A SUPREMA CORTE TEM RESOLVIDO CONFLITOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS?

Não existe hierarquia entre direitos fundamentais constitucionais, e, exatamente por isso, pode ser complexo julgar um determinado caso concreto, no qual exista conflito entre dois ou mais desses direitos.

Entretanto, no que tange à liberdade de manifestação de pensamento e de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, incluindo a criação e apresentação de conteúdos de natureza humorística, existe uma posição apriorística preferencial (preferred position), não se confundindo com superioridade (a qual inexiste), em relação a demais direitos fundamentais (RCL 60.382/SP, Relator Min. André Mendonça).

O que isso significa, essencialmente, é que muito embora tal liberdade de manifestação não seja absoluta, ela jamais deve tomar segundo plano frente a algum outro direito, tendo em vista que isso configuraria uma censura prévia, ou seja, novamente nas palavras do Relator da RCL 60.382/SP, Ministro André Mendonça:

Tendo em vista o caráter relativo dos direitos fundamentais, eventuais abusos no exercício dessas liberdades devem, preferencialmente, ser objeto de exame posterior, nos termos da legislação civil ou até mesmo penal, dispondo o ordenamento jurídico brasileiro de mecanismos normativos e processuais aptos a equacionar os bens jurídicos conflitantes; [...] (RCL 60.382/SP, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 28/09/2023; grifo do autor).

Dessa forma, pode-se aferir que a censura prévia, mediante decisão cautelar, do amplo exercício da liberdade de manifestação de pensamento e expressão artística, é medida essencialmente excepcional, surgindo a necessidade de se desincumbir de expressivo ônus argumentativo para justificar tal decisão (RCL 60.382/SP, Relator Min. André Mendonça).

Aliás, deve-se compreender que a liberdade de expressão não se direciona somente à proteção de opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis e usuais, mas também àquelas consideradas duvidosas, hiperbólicas, reprováveis, satíricas, humorísticas etc. Mesmo as declarações errôneas são resguardadas pela Constituição (ADI 4.451/DF, Relator Min. Alexandre de Moraes).

Percebe-se que no caso 01 e 03, dá-se grande importância à liberdade, mas sem a torná-la absoluta, tendo em vista que, embora em uma posição preferencial, essas manifestações de pensamento, científicas e artísticas ainda estão sujeitas a responsabilizações nas searas cível e criminal, por exemplo. Dá-se, então, uma preferência à repressão em vez da prevenção, visto que o uso é livre, mas o abuso é punível.

Ademais, ainda no caso 03, foi firmado o seguinte:

[...] 5. Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de ‘imprensa’, sinônimo perfeito de ‘informação jornalística’ (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V.

(ADI 4.451-MC-REF, Relator o Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 1º.7.2011; grifo meu).

Ou seja, ficou determinada a equiparação entre a liberdade de imprensa e a liberdade de criação do humorista, seja qual for o meio. Seguindo adiante com esse entendimento, o que ficou entendido no caso 02 (ADPF nº 130) torna-se imediatamente mais relevante:

[...] A uma atividade que já era ‘livre’ (incisos IV e IX do art. 5º), a Constituição Federal acrescentou o qualificativo de ‘plena’ (§ lº do art. 220). Liberdade plena que, repelente de qualquer censura prévia, diz respeito à essência mesma do jornalismo (o chamado ‘núcleo duro’ da atividade). (...). Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o ‘estado de sítio’ (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. (...). Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”. [...]

(ADPF nº 130/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. 30/04/2009, p. 06/11/2009; grifos meus).

Ademais, o caso 04 não se distancia desses entendimentos. O especial de Natal produzido pelo grupo Porta dos Fundos, ainda que debochasse, satirizasse e criticasse a religião cristã, não foi considerado ilícito pelo Supremo, com o Relator do caso, Ministro Gilmar mendes, concluindo que:

Ao analisar os presentes autos, concluo que a obra “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”, não incita violência contra grupos religiosos, mas constitui mera crítica, realizada por meio de sátira, a elementos caros ao Cristianismo. Por mais questionável que possa vir a ser a qualidade desta produção artística, não identifico em seu conteúdo fundamento que justifique qualquer tipo de ingerência estatal.

(RCL 38.782/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 03/11/2020; grifos meus).

Em outras palavras, não cabe ao Estado a censura prévia de conteúdo artístico, especialmente no caso em análise que se tratava de um filme disponível oficialmente apenas na plataforma de streaming Netflix, não sendo publicamente propagado de forma a expor pessoas ao seu conteúdo de maneira involuntária. Os próprios usuários do serviço podem escolher ou não consumir o conteúdo, com este meramente tendo que cumprir as normas de classificação indicativa.

Portanto, percebe-se que frente a um conflito de direitos fundamentais, no qual figura em um dos lados a liberdade de manifestação, em suas mais variadas formas, este direito toma posição preferencial (mas não superior) em relação aos demais. Isso porque não se pode admitir que se banalize a censura e se incentive o controle excessivo do Estado na vida privada dos cidadãos e nos conteúdos que são produzidos em nosso país.

Recontextualizando todas essas informações com o processo criminal que corre contra o humorista Léo Lins, o que se percebe é que houve um claríssimo excesso por parte do judiciário na aplicação das medidas cautelares. Estas não só representaram uma censura prévia, como também foram deficientes na fundamentação e desproporcionais, como será visto no próximo tópico.

4.2. COMO O SUPREMO JULGOU A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL 60.382/SP?

As medidas cautelares foram várias, mas cumpre destacar as que exigiram que o humorista removesse do ar o seu especial de stand-up, bem como não pudesse realizar em suas apresentações quaisquer comentários ou divulgar qualquer conteúdo depreciativo em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável. Além disso, o comediante foi proibido de se ausentar da Comarca em que reside por mais de 10 (dez) dias sem autorização judicial.

Em vista disso, no julgamento da reclamação, a qual foi feita de forma monocrática pelo Relator Ministro André Mendonça, em razão da matéria ser objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal, a decisão de primeira instância acabou por ser cassada, sem prejuízo da continuidade da ação penal em curso, pelos motivos que seguem.

4.2.1. Decisão genérica e abstrata que acaba por constituir censura prévia

Ao acatar as medidas cautelares requerida pelo Ministério Público, o juízo de primeiro grau exarou comandos genéricos e de vasta proibição: “(a) Proibição de manter, transmitir [...] ou realizar download de quaisquer arquivos de vídeo, imagem ou texto, com conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião [...] ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável”.

Nota-se que “depreciativo ou humilhante” são termos demasiados abstratos e subjetivos, além do termo “quaisquer” e da expressão “qualquer categoria” representarem uma amplitude imensurável, efetivamente impedindo o acusado de desempenhar a sua profissão. Neste sentido foi o entendimento do Relator:

[...] visto que uma proibição ampla e genérica dessa magnitude, imposta a um profissional reconhecidamente atuante na criação e apresentação artístico- -humorísticas, impedindo-o de manifestar qualquer conteúdo que possa ser interpretado como ofensivo, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00, ao fim e ao cabo, constitui a famigerada censura prévia [...]

(RCL 60.382/SP, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 28/09/2023; grifo nosso).

Não bastasse a configuração de censura prévia, as demais cautelares impostas se mostraram desproporcionais, como será abordado logo em seguida.

4.2.2. Desproporcionalidade e irrazoabilidade das medidas cautelares

Ademais, a aplicação de medidas cautelares deve ter natureza excepcional, analisando o binômio necessidade e adequação, tais critérios não foram respeitados, tratando-se de imposições desproporcionais e que ainda impedem o livre exercício de profissão do acusado.

Relembrando que estamos diante de um processo no qual o acusado é um humorista, que estava trabalhando, contando piadas em um palco. Com isso em mente, é completamente descabido impor proibição de se ausentar da Comarca sem autorização judicial e ainda o dever de comparecimento mensal em juízo, tudo isso sem uma devida fundamentação.

Não se trata aqui de um criminoso de alta periculosidade, a não ser que o Ministério Público, ao pedir pelas cautelares, e o juízo ao acatar o pedido, estivessem preocupados com que o réu fosse matar alguém de rir. Trata-se de um comediante! Não há urgência que justifique essas punições expressivas antes da análise de mérito (relembrando que a liberdade de expressão artística deveria ter preferência frente a outros direitos, o que não foi respeitado aqui).

Ademais, havendo “indicativos” de materialidade e autoria de crimes, no contexto do exercício das liberdades artística e de expressão, o procedimento constitucionalmente consentâneo com a preferred position firmada pela Suprema Corte, ao menos a priori, deve ser o oferecimento de denúncia pelo Parquet, com a regular instrução do devido processo legal, sob os auspícios do contraditório e da ampla defesa, para, ao final, havendo condenação com trânsito em julgado, promover-se a respectiva execução penal, inclusive de eventuais penas acessórias

(RCL 60.382/SP, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 28/09/2023; grifos meus).

Pois bem, percebe-se que a decisão de 1º grau foi precipitada, ao desrespeitar a preferência que a liberdade artística detém frente a outros direitos fundamentais, e foi inconstitucional, pois, por óbvio, viola os princípios do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência.

4.2.3. O contexto e ambiente da prática dos atos importa

Isso não deveria ser nenhuma surpresa ou algo controverso de se dizer, mas infelizmente é necessário reforçar esse fato, visto que o Ministério Público de São Paulo e o juízo de primeira instância nesse caso parecem tê-lo olvidado.

Nas palavras do próprio Léo Lins, “Humor não tem limite, o ambiente sim”. Tal afirmação tem o seu sentido, e tal entendimento fica ainda mais elucidado nas palavras do Ministro André Mendonça:

O caso dos autos comporta, ainda, dois importantes registros complementares. O primeiro diz respeito ao ambiente em que as falas, supostamente “indicativas” da prática de ilícito penal, foram proferidas. Trata-se, a toda evidência, de um show de humor, conhecido como stand up comedy (sic), modalidade atualmente bastante difundida no Brasil, no qual imperam – e é exatamente isso que esperam os consumidores desses eventos – o riso, a galhofa, a deformação hiperbólica da realidade, a crítica abusada, debochada, mordaz, polêmica, por vezes ofensiva e, frequentemente, sem qualquer compromisso com o ideário politicamente correto.

(RCL 60.382/SP, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 28/09/2023; grifos meus).

O grande erro do povo, e, infelizmente, às vezes, inclusive do judiciário, é levar muito a sério o que um comediante diz em um palco, com o declarado intuito de arrancar risadas de uma plateia. Para atingir esse objetivo, que é o mais importante para qualquer comediante que se preze, o artista se vale de diversos artifícios para causar o riso, por exemplo, figuras de linguagem como a ironia, o sarcasmo, a hipérbole etc.

Não é nem um pouco sensato achar que aquilo que um humorista diz num palco se trata de uma representação adequada, não só da realidade, mas de si próprio. Decerto que, em geral, o stand-up não acontece através de personagens, uma vez que o seu praticante se apresenta mediante seu próprio nome, o que não significa, por outro lado, de que não se trata de uma ficção, pelo menos em partes. E é necessário que seja em partes, pois o resultado cômico só insurge quando existe o choque entre o ridículo e o absurdo com a vida real, com problemas e situações reais.

Ademais, muito embora o objetivo principal seja obter risadas da plateia, o humor geralmente possui uma crítica social que o acompanha. Aliás, o humor é uma ferramenta excelente para chamar a atenção para as mazelas sociais de uma forma casual e descompromissada, “As mesmas coisas que nos fazem rir, nos fazem chorar” – Big Smoke. O ambiente do stand-up propicia a abordagem de assuntos sensíveis com uma leveza que não seria possível em outros contextos. É necessário entender que fazer piada com determinada situação não necessariamente significa que aquele problema social específico está sendo minimizado, considerado insignificante, ou, pior ainda, justificado. Pelo contrário, o humor é uma maneira excelente de crítica social, que não deixa esquecer o fato infeliz que deu origem à piada, “A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe” – Charles Chaplin.

Essa necessária contextualização, embora, como já mencionado, não signifique imunidade penal, é altamente indicativa da configuração do animus jocandi, inerente e presumido em qualquer apresentação artística dessa natureza, cuja audiência, aliás, demanda postura ativa por parte de quem, livre e conscientemente, escolhe consumir esse tipo de diversão

(RCL 60.382/SP, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 28/09/2023; grifos meus).

4.2.4. A plenitude da liberdade artística e a importância do ânimo interno do agente para que se configure crime

A liberdade artística é tão plena que mesmo aquilo que possa ser considerado ofensivo, não será necessariamente ilícito, como pode ser observado no caso 04, no qual o conteúdo produzido pelo grupo Porta dos Fundos atacava símbolos e crenças religiosas relacionadas ao cristianismo. Ainda assim, a Segunda Turma do STF entendeu pela prevalência da liberdade de expressão, ainda que ofensiva a determinados segmentos da sociedade, sejam eles majoritários ou não (RCL nº 60.382/SP, Rel. André Mendonça).

Esse mesmo raciocínio foi aplicado pelo Relator no caso principal em análise neste trabalho, notadamente devido ao poder de escolha que cada cidadão possui de consumir ou não o referido conteúdo. A apresentação de stand-up comedy foi direcionada a um público pagante, o qual foi devidamente informado acerca da natureza do humor a que estaria exposto ao longo da apresentação. Aquele que não concorda com o discurso humorístico tem ao seu alcance mecanismos de evitação ou enfrentamento, podendo boicotar ou criticar o show. A intervenção estatal, especialmente na seara criminal, deve se dar como ultima ratio, há de ser uma exceção e não a regra.

Na peça acusatória do Ministério Público, foram transcritas diversas das piadas contadas por Léo durante a apresentação do show, como forma de demonstrar os diversos absurdos proferidos pelo comediante e justificar a sua persecução penal. O problema disso é que as falas não só estão sendo retiradas do contexto original, como estão sendo inseridas em um novo contexto o qual funciona de maneira completamente diferente. O palco é o local adequado para a abordagem humorística ácida que adentra em tópicos sensíveis e polêmicos; um processo judicial, por outro lado, não é. Transferir as piadas ditas em um stand-up para um ambiente processual, vai, por óbvio, distorcer seu significado original.

[...] 32. No julgamento do Referendo na Medida Cautelar na ADI nº 4.451/DF, o eminente Ministro Cesar Peluzo, referindo-se aos programas humorísticos, salientou que “é próprio da caricatura, da sátira e da farsa, aquilo que se chama de deformação hiperbólica da realidade. Ninguém faz farsa, caricatura ou sátira, sem deformar a realidade” (ADI nº 4.451-MC-Ref/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. 02/09/2010, p. 24/08/2012). Essa constatação reforça a necessidade de interpretar as falas do reclamante no contexto do ambiente em que são proferidas

(RCL 60.382/SP, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 28/09/2023).

Evidentemente, não está sendo defendida aqui uma imunidade jurídica, seja a quem for. O ponto é que, analisando-se o contexto da apresentação e a sua natureza, deve ser presumido o animus jocandi, e caso o Parquet entenda que houve crime, não é razoável que ocorra uma censura, dentre outras punições, antes de uma análise aprofundada do mérito.

4.3. AFINAL, COMO A LEI DE RACISMO E SUA NOVA ALTERAÇÃO DIALOGAM COM OS ENTENDIMENTOS ANALISADOS NESTA SEÇÃO?

Começando pelo art. 20, no seu caput: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, pois bem, seguindo a linha jurisprudencial do Supremo, com a qual este que vos fala coaduna, em relação a esse artigo, desde que o ânimo interno do comediante fosse de fato o animus jocandi, e o contexto da prática do ato fosse adequado, além, claro, com o cumprimento de regras de classificação indicativa, não há de se falar em crime baseado no referido artigo. Nesta análise e discussão de resultados ficou claro que o STF não considerou que fazer piada com determinado assunto, signifique, necessariamente, que esteja ocorrendo real discriminação ou induzimento e incitação a essa.

Adiante, então, ao art. 20-A, relembrando a sua redação: “Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. Este dispositivo realmente é um problema exponencial, porque permite uma interpretação no sentido de que o animus injuriandi não mais seria necessário para que se configurasse um crime de discriminação, seja racismo ou injúria, mas, pelo contrário, tal dispositivo parece aludir ao entendimento necessário de que, se houver animus jocandi, a pena deve, na realidade, ser ainda mais gravosa do que se não houvesse.

Uma possível interpretação para esse dispositivo seria que ele está se referindo a situações nas quais um indivíduo é ridicularizado, provavelmente em público, para o divertimento e descontração de outros. É fácil visualizarmos tal situação, bastando, para tanto, pensarmos no clássico bullying. Sob essa ótica, o aumento de pena faz muito mais sentido. Nesse caso, mesmo que possa se argumentar que exista um animus jocandi perverso, pode-se também perceber um claro animus injuriandi. Ou seja, na minha visão, o art. 20-A só é adequado se interpretado como uma exigência da junção do animus jocandi e do animus injuriandi, formando uma espécie de animus jocandi injuriandi.

Por fim, o último dispositivo relevante para o que se propõe o presente artigo científico é o 20-C: “[...] o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação [...] e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Assim como a decisão de primeira instância no processo nº 1011931-27.2023.8.26.0050 foi cassada mediante Reclamação Constitucional (caso 01) devido a, entre outros fatores, ser genérica e subjetiva em demasia, tal dispositivo introduzido pela Lei nº 14.532/2023 sofre do mesmo problema, só que, nesse caso é bem pior, pois não só se trata de texto legal, como ainda tenta ser uma norma hermenêutica, dizendo para o juiz como este deve julgar a lide.

Ora, “qualquer atitude ou tratamento” já demonstra o alcance incerto da norma, seguido de “que cause constrangimento [...]”, isto é, sentimentos e sensações subjetivas internas de cada um. Não há como aferir objetivamente se algo constrangeu ou envergonhou determinada pessoa ou grupo. Exatamente por isso esse tipo de critério não pode ser analisado solitariamente na análise de mérito de suposta conduta ilícita. Assim sendo, entra a necessidade de demonstrar a intenção do agente, o seu animus, como já ficou extensamente demonstrado no presente trabalho e é tema pacificado na doutrina e jurisprudência geral.

O art. 20-C não só busca mitigar o direito do julgador de se valer do Princípio do Livre Convencimento do Juiz, como também tenta aplicar uma responsabilidade efetivamente objetiva a crimes discriminatórios e injuriosos, o que vai totalmente contra a nossa sistemática constitucional e penal, e, por óbvio, contra as decisões do Supremo Tribunal Federal analisadas nesse trabalho.

Sobre o autor
Milton Marques Ferreira Júnior

Acadêmico do curso de Direito da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí – FACTU.︎

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