Capa da publicação Lei nº 14.532/2023: racismo x humoristas
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Análise crítica da Lei nº 14.532/2023.

Racismo x liberdade de manifestação humorística

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A Lei nº 14.532/2023 tipificou a injúria racial como crime de racismo. Será que essa norma poderia restringir direitos constitucionais, como a livre criação humorística?

Resumo: Em janeiro de 2023, foi sancionada a Lei nº 14.532/2023, a qual alterou a Lei de Racismo (Lei nº 7.716/1989) e o Código Penal (Decreto-lei nº 2848/1940) para, dentre outras coisas, tipificar como crime de racismo a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público. Ao longo do trabalho, as mudanças trazidas pela lei supracitada são contextualizadas com as normas e princípios do ordenamento jurídico pátrio, assim como a jurisprudência e doutrina, notadamente com intuito de identificar eventuais deslizes por parte do legislador na criação da referida norma. Ao final do trabalho, dá-se significativo enfoque em casos concretos julgados pelo STF, (4 casos), sendo três deles relevantemente relacionados ao tema da liberdade de expressão e manifestação artística e, o outro, uma recente decisão monocrática de um Ministro do Supremo Tribunal Federal em processo diretamente relacionado à Lei 14.532/203. Em relação à metodologia empregada, esta pesquisa é de abordagem qualitativa e tipo exploratória, baseada em fontes secundárias e utilizando do método dedutivo, com técnica teórica conceitual e normativa.

Palavras-chave: Lei de Racismo, injúria racial, princípios constitucionais e penais, liberdade artística, censura.

Sumário: 1. Introdução. 2. Referencial teórico. 2.1. A Lei nº 14.532 e as mudanças trazidas. 2.1.1. O art. 20-C: os problemas do tipo penal aberto e responsabilidade objetiva penal. 2.2. Omissões e outras escolhas questionáveis do legislador na criação da 14.532/2023. 2.3. A Lei 14.532/2023 abre brechas para a criminalização de shows de humor. 2.3.1. A relativização de direitos tendo em vista que não existe direito absoluto poderia justificar a censura aos shows humorísticos com base na Lei nº 14.532/2023. 2.4. O que é o racismo e quais os grupos que estão protegidos pela Lei nº 7.716/1989. 3. Metodologia. 4. Análise e discussão dos resultados. 4.1. Como a Suprema Corte tem resolvido conflitos de direitos fundamentais. 4.2. Como o Supremo julgou a Reclamação Constitucional 60.382/SP. 4.2.1. Decisão genérica e abstrata que acaba por constituir censura prévia. 4.2.2. Desproporcionalidade e irrazoabilidade das medidas cautelares. 4.2.3. O contexto e ambiente da prática dos atos importa. 4.2.4. A plenitude da liberdade artística e a importância do ânimo interno do agente para que se configure crime. 4.3. Afinal como a Lei de Racismo e sua nova alteração dialogam com os entendimentos analisados nesta seção. 5. Considerações finais.


1. INTRODUÇÃO

Em janeiro de 2023, foi sancionada a Lei 14.532/2023, em cuja ementa se lê:

Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público.

Percebe-se que pelo menos uma das mudanças trazidas serviu meramente para positivar o que já havia sido firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 154.248/DF, qual seja, o de que a injúria racial é espécie do crime de racismo, o que no caso em tela serviu para justificar a não prescrição do crime de injúria preconceituosa, não acolhendo assim a tese da defesa, como se pode extrair da respectiva ementa:

[...]

2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo.

4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível.

[...]

Ainda que essa equiparação já tivesse sido firmada pelo Supremo, é louvável a atitude do legislador em providenciar a sua positivação, de forma a encerrar de vez qualquer debate ou argumento no sentido de tentar descaracterizar a injúria racial como racismo.

Esse entendimento do Supremo é, inclusive, um divisor de opiniões na seara jurídica, especialmente porque há aqueles que entendem que tal decisão estaria violando a proibição de analogia in malam partem. No contexto penal, devido ao princípio da legalidade, torna-se delicada a utilização de analogia, tendo em vista que a regência criminal é conduzida pela lei em sentido estrito. Admite-se, na realidade, apenas a analogia em favor do réu, in bonam partem (NUCCI, 2015).

Entretanto, esse ponto de vista que entende essa equiparação como analogia em desfavor do réu não há de prosperar. Isso porque, tal equiparação entre injúria racial e crime de racismo foi meramente declaratória, pois a injúria racial sempre foi um crime de racismo. Em outras palavras, o entendimento do STF não vem como uma analogia em prejuízo do réu, mas sim, uma interpretação finalmente adequada à luz da Constituição Federal, que em seu art. 5º, inciso XLII, estabelece que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível (BRASIL, 1988).

Mas a alteração topológica da injúria racial não é o ponto central do presente artigo. Na realidade, aqui, os holofotes se voltaram para os artigos 20-A e 20-C, ambos também introduzidos à Lei de Crimes Raciais pela Lei nº 14.532/2023.

O primeiro foi o que desencadeou o apelido sensacionalista e um tanto ignorante à 14.532, a “Lei Antipiada”. Isso porque, na redação do Art. 20-A, está previsto que os crimes previstos na Lei nº 7.716/1989 terão suas penas aumentadas quando ocorrerem em contexto ou intenção jocosa (BRASIL, 2023).

O segundo artigo mencionado, 20-C, é de fundamental importância para o presente estudo, tendo em vista que vem de forma a indicar ao julgador o que deve ser considerado como atitude discriminatória e aquilo que não é alcançado pela proteção da 7.716/1989.

O presente Trabalho de Curso, visa, portanto, identificar e analisar as alterações julgadas mais relevantes que foram instauradas com o advento da Lei 14.532 em janeiro de 2023. Mais especificamente, este estudo se preocupa principalmente em aferir as consequências da nova lei frente a certos direitos e garantias fundamentais, quais sejam, a honra, a dignidade, a liberdade de expressão e a manifestação artística, a não censura etc.

Em síntese, o foco da análise de dados se deu em relação a como shows de humor são tratados frente à nova lei e à (in)constitucionalidade dos arts. 20-A e 20-C.

Com isso, surge a problemática do trabalho: Como a Lei nº 14.532/2023 dialoga com a sistemática jurídica brasileira e quais são as suas consequências no que tange à liberdade de expressão e à manifestação artística, notadamente nos shows de humor?

Na construção do referencial teórico, os objetivos específicos são: identificar as mudanças trazidas pela nova lei; entender os elementos que constituem os crimes de racismo e injúria racial, e como a nova lei afeta esses elementos, se for o caso; discutir acerca das ações e omissões do legislador em relação ao que foi resguardado pela 7.716/89 e aquilo que não foi, realizando eventuais críticas; analisar se a nova lei abre brechas para interpretações que criminalizam shows de humor; e, finalmente buscar entender os tipos de discriminação resguardados pela Lei de Crimes Raciais.

Em seguida, na elaboração da análise e discussão de resultados da pesquisa empírica, tem-se como objetivos específicos: analisar como o Supremo Tribunal Federal se posicionou em casos relacionados a questões voltadas para discriminação, liberdade de expressão e manifestação artística e censura prévia, notadamente de forma a compreender como o STF julga conflitos de direitos fundamentais; analisar como o STF julgou o caso concreto relacionado ao humorista Léo Lins; além de contextualizar esses entendimentos do Supremo com a redação da nova lei, de forma a buscar compreender se está alinhada com o entendimento da Corte.

Este estudo possui grande relevância social e jurídica. Isso porque são tratados temas relacionados à discriminação, ao racismo, à injúria preconceituosa, à liberdade de expressão, à manifestação artística e à censura. A Lei 14.532/2023 pode gerar consequências sentidas por toda a sociedade brasileira, pois os dispositivos trazidos por ela podem impactar a liberdade do povo em relação ao que fazer ou ao tipo de conteúdo que podem consumir.

Juridicamente, o tema trata de conflitos de direitos fundamentais, limites do humor e expressão artística em geral, além de variados princípios do direito que são afetados pela alteração na Lei 7.716/89 e no Código Penal. Ademais, por se tratar de uma alteração legislativa recente, há uma real necessidade de se discutir acerca do tema, que está longe de ser exaurido pela doutrina.

Sobre o desenvolvimento do presente estudo, a metodologia definida teve pesquisa de tipo exploratória e abordagem qualitativa, baseada em fontes secundárias, encaixando-se no método dedutivo, com técnicas conceituais e normativas.

O método de pesquisa empírica é através da análise jurisprudencial. Os casos selecionados são decisões do Supremo Tribunal Federal.


2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. A LEI Nº 14.532 E AS MUDANÇAS TRAZIDAS

No tocante à transferência da Injúria Racial do Código Penal para a Lei de Racismo, tal modificação não foi feita de forma integral. Isso porque o legislador deixou no CP alguns elementos do antigo tipo penal, quais sejam, a “utilização de elementos referentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência” (Art. 140, § 3º, CP). A priori, tais situações, que ainda são abarcadas pelo Código Penal, realmente não aparentam estar relacionadas ao racismo, pelo menos não na sua concepção popular. Entretanto, a Lei do Racismo abarca tipos de discriminação diversos daqueles somente baseados na raça ou na cor, e mais, a própria injúria racial, que agora está prevista na Lei 7.716/89 está descrita da seguinte forma: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.”, isto é, mesmo características como etnia e procedência nacional, que não estão diretamente relacionadas à raça, se encontram protegidas pela 7.716, portanto, deixa a impressão de que toda a injúria qualificada poderia ter sido movida do Código Penal para a Lei de Crimes Raciais, sem maiores problemas.

A Lei 14.532 também reiterou o aumento de pena dos crimes da Lei de Racismo quando cometidos mediante meios de comunicação social, além de estabelecer sanções inéditas, como a proibição de frequência a locais destinados a práticas esportivas, religiosas, artísticas ou culturais, por 3 (três) anos, quando, nesses contextos, o acusado tiver cometido algum crime de racismo (Art. 20, § 2º-A, Lei nº 7.716/89). Poderia até se argumentar que tal punição é um tanto quanto branda e que estipular um tempo maior de suspensão seria não só razoável, como também recomendado.

Finalmente, chega-se ao núcleo da discussão (artigos 20-A e 20-C). O art. 20-A vem com a seguinte redação: “Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”

Esse artigo é objeto de grande discussão, e, aqui, faz-se necessária uma análise cuidadosa do assunto. Primeiro, cumpre definir o que seria racismo recreativo. Conforme explica Adilson José Moreira (2019):

Ele (racismo recreativo) deve ser visto como um projeto de dominação que procura promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento de hostilidade racial. O racismo recreativo decorre da competição entre grupos raciais por estima social, sendo que ele revela uma estratégia empregada por membros do grupo racial dominante para garantir que o bem público da respeitabilidade permaneça um privilégio exclusivo de pessoas brancas.

Percebe-se que o suposto humor não passa de uma fachada para a real intenção hostil. Aqui é fundamental destacar que o racismo recreativo não se confunde com o animus jocandi, ou melhor, que ele não se encontra acompanhado desse ânimo. Cumpre assentar que animus jocandi se trata da intenção jocosa do agente de realizar uma brincadeira que não possui caráter humilhante ou intenção de incitar a discriminação e o ódio. (ESTEFAM, 2023).

Esse dispositivo da nova Lei, parece ser uma tentativa de evitar que atitudes claramente racistas sejam descaracterizadas como crime devido a uma suposta intenção de contar uma piada. O que não se pode fazer é interpretar isso da forma contrária, isto é, entender que o art. 20-C criminaliza a atitude de contar uma piada. A interpretação mais adequada desse dispositivo é, portanto, que se trata de uma reprimenda às atitudes racistas travestidas de um intuito recreativo.

Em relação ao art. 20-C, este estabelece as atitudes ou os tratamentos que o juiz deve considerar como discriminatórios, quais sejam quaisquer ações que causem sentimento negativo em pessoas ou grupos minoritários e que não seria direcionada a um grupo social dominante (SBARDELLOTO, TERRA 2023).

Imperioso (tentar) definir o que seria um grupo minoritário. Não existe uma definição única e universal, entretanto, para este trabalho, foi escolhida aquela trazida por Dimoulis (2023), qual seja: são aqueles indivíduos que, devido a determinadas características, desde raça, religião, orientação sexual, identidade de gênero, sexo etc., constituem uma espécie de “classe torturável”, passíveis de sofrer violência social e institucional, além de sofrerem exclusões. São pessoas que se tornam vulneráveis sistematicamente em certos contextos. Importante destacar que o termo minoria não se limita a um grupo em pequena quantidade, isso é facilmente demonstrado ao pensar nas mulheres, que, muito embora sejam maioria numérica no Brasil, são consideradas um grupo minoritário, pois, historicamente, tiveram variados direitos cerceados ou mitigados e, ainda hoje, sofrem consequências de uma sociedade predominantemente patriarcal e machista.

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Pois bem, o art. 20-C será analisado de forma mais aprofundada em subseção própria imediatamente em seguida.

2.1.1. O art. 20-C: os problemas do tipo penal aberto e responsabilidade objetiva penal

Quando o supracitado artigo traz em sua redação:

Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

O que está acontecendo é a criação de um tipo penal excessivamente aberto. Isso porque, por óbvio, “qualquer atitude ou tratamento” engloba literalmente qualquer coisa que atinja um determinado resultado, resultado esse que, frise-se, não pode ser objetivamente aferido, pois diz respeito ao íntimo de um indivíduo ou à consciência coletiva de um grupo. Tudo isso, sem fazer qualquer referência ao ânimo interno do agente, ou seja, dá-se a entender que se está falando de uma possível responsabilidade objetiva, a qual é completamente vedada na nossa sistemática constitucional e penal, entendimento pacificado doutrinariamente e jurisprudencialmente. No HC 192.204, o Relator, Min. Gilmar Mendes, em seu voto, afirmou categoricamente “A responsabilidade objetiva é inconstitucional, e não existe espaço para tal modalidade de intervenção criminal no Estado Democrático de Direito” (grifo do autor). Em seguida, o relator embasa seu entendimento com doutrina e precedentes da Suprema Corte. Não cabe, na seara criminal, a responsabilidade objetiva derivada somente de um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (BATISTA, apud Min. Gilmar Mendes, 2022).

Os crimes contra a honra, por exemplo, são notórios por necessitarem da presença não só da intenção de praticar a conduta (dolo), como uma intenção de alcançar um resultado específico (dolo específico), conforme se extrai da ementa do seguinte julgado do STJ:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DO ART. 20, § 2º, DA LEI 7.716/89. TIPO PENAL QUE EXIGE A PRESENÇA DE DOLO ESPECÍFICO. CONCLUSÃO DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS PELA AUSÊNCIA DE ELEMENTO SUBJETIVO ESPECÍFICO. NECESSIDADE DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA N. 7. DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Para configuração do delito previsto no art. 20. da Lei Federal n. 7.716/89 exige-se, além do dolo, o elemento subjetivo específico consistente na vontade de discriminar a vítima. [...]

(Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.817.240 – RS (2019/0160866-3, 5ª turma, Relator: Min. Joel Ilan Paciornik, 24 de setembro de 2019)

Conforme explica Capez (2023), nos tipos anormais, os quais contêm a finalidade especial do agente, o dolo por si só não é o suficiente, pois também se exige a especificidade. Esses elementos são fundamentais para que haja correspondência entre conduta e tipo penal de forma a legitimar uma punição criminal. Isso é verdade na injúria, como também é verdade no crime de furto por exemplo, para o qual não basta apenas a vontade de subtrair, sendo necessário o ânimo de assenhoreamento definitivo.

Ou seja, retornando ao art. 20-C, mesmo que haja uma atitude ou tratamento que comprovadamente cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, isso ainda não é o suficiente para a configuração de crime enquanto não se levar em conta as intenções do agente. Por isso que o legislador falhou significativamente ao instaurar uma insegurança jurídica em potencial, pois ordena que o juiz entenda, necessariamente, como discriminatório, certo ato, baseando-se somente na relação entre causa e efeito.

Em relação ao tipo penal aberto, diversos autores já se debruçaram sobre o tema. A lei penal deve ser determinada em seu conteúdo, não se permitindo a construção de tipos penais demasiadamente genéricos, que podem ser denominados de tipos vagos. Uma lei penal incriminadora que pune uma conduta vaga e indeterminada provoca insegurança jurídica, pois o indivíduo não tem como saber o que é certo ou errado devido à falta de clareza no texto legal. O juiz é quem decidiria o que é ou não crime (ESTEFAM, 2023).

A lei penal deve ser criada com precisão e coerência, haja vista que inconsistências legislativas prejudicam a aplicação jurisdicional. Ocasionalmente, o legislador torna dificultosa a interpretação penal ao editar leis com redações ambíguas e vagas. Por consequência, interpretações variadas acerca do mesmo tipo penal se tornam recorrentes (GARÇON, ITALORRAN, 2023).

Uma norma de orientação hermenêutica que traz ao mundo jurídico, no microssistema dos crimes de racismo, um elemento normativo geral ou constante totalmente indeterminado não pode prosperar diante do “Princípio de Estrita Legalidade”, o qual exige redações que tenham um sentido semanticamente muito bem determinado e estabelecido. (CABETTE, 2023).

Ressalta-se que não são todos os tipos abertos que provocam a mencionada insegurança jurídica, mas sim, aqueles que possuem elementos normativos em seu núcleo, isto é, quando a conduta aludida no dispositivo não é autodescritiva, havendo necessidade de um juízo de valor sobre a ação do indivíduo a fim de averiguar se o ato se amolda ao tipo penal ou não (SANTOS, 2021).

2.2. OMISSÕES E OUTRAS ESCOLHAS QUESTIONÁVEIS DO LEGISLADOR NA CRIAÇÃO DA 14.532/2023

Agora que os dispositivos mais relevantes introduzidos pela nova Lei foram comentados, chegou o momento de discutir acerca daqueles que não foram introduzidos, mas que poderiam muito bem ter sido acoplados ao escopo da Lei 7.716/1989.

Que a 14.532 veio de forma a equiparar a injúria racial ao crime de racismo, positivando entendimento do STF, isso já ficou claro. A questão é que a injúria qualificada não foi inteiramente realocada do Código Penal para a Lei de Racismo. Observando o art. 140, parágrafo 3º do CP, ainda é possível ver que alguns tipos de discriminação continuam elencados no código, quais sejam, aqueles baseados em elementos referentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Não parece existir razão para que as injúrias baseadas em raça, cor, etnia e origem recebam tratamento diferenciado do que aquelas remanescentes do Código Penal. É como se o legislador estivesse discriminando os tipos de discriminação, um tanto quanto irônico.

É importante lembrar que, muito embora a Lei 7.716/89 começou com um escopo bem limitado, tratando o racismo apenas no sentido literal da palavra, hoje em dia, dá-se um entendimento muito mais amplo ao que pode ser abarcado por ela, especialmente com decisões notórias do STF, como o HC 82.424, ADO 26 e MI 4733. Foi no caso Elwanger, por exemplo, que ficou firmado o conceito de racismo social, o qual seria espécie do gênero racismo, entendendo que qualquer tipo de discriminação que cause uma desumanização de determinado grupo, deve ser considerada como racismo.

Ademais, o legislador também relegou ao ostracismo todos aqueles pertencentes ao movimento LGBTQIA+, tendo em vista que mais uma vez não houve uma tipificação específica que puna crimes discriminatórios baseados na orientação sexual e na identidade de gênero.

Como muito bem explicado por Carvalho e Duarte (2017), a tipificação da homofobia (e transfobia) se justifica, tendo em vista que não se pode tecer diferenças entre essa espécie de preconceito e a discriminação que atinge outros grupos vulneráveis que receberam tutela diferenciada, como a população negra, as mulheres, as crianças etc.

Do ponto de vista histórico, a população LGBTQIA+ possui tanta legitimidade quanto qualquer outro grupo e, até hoje, são vítimas de discriminação e crimes de ódio. A defesa de uma especificação legal parte da necessidade de um reconhecimento formal dessa realidade social pelo Poder Público. Nem que seja um mero efeito simbólico, pelo menos retiraria a luta desse grupo da invisibilidade e marginalização (Ibidem).

Além do mais, tudo que o legislador estaria fazendo ao inserir o tipo penal incriminador da homotransfobia na Lei 7.716/1989 é meramente positivar o entendimento da Suprema Corte na ADO 26, conforme trecho da ementa:

[...]Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social , ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica , por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”) [...]. (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF. Relator: Min. Celso de Mello. 13. de junho de 2019).

Pois bem, com essa omissão do legislador, as ofensas baseadas em orientação sexual e identidade de gênero seguem dependendo do entendimento da Suprema Corte na ADO 26 e MI 4.733, de forma a poderem ser enquadradas como crime de racismo e injúria racial.

2.3. A LEI 14.532/2023 ABRE BRECHAS PARA A CRIMINALIZAÇÃO DE SHOWS DE HUMOR?

Até o momento, ficou demonstrado que a Lei do Racismo, mesmo com as alterações advindas da Lei nº 14.532/23, não proibiu expressamente piadas ou shows de humor. O que ela fez foi estipular um aumento de pena quando o crime ocorre em contexto ou com intuito recreativo, tornando a interpretação delicada, pois não está sendo dito que contar uma piada constituiria crime, mas sim, que o crime realizado em contexto de piada deveria ser mais severamente punido.

Mesmo assim, essa ainda foi chamada de “Lei Antipiada”, e, infelizmente, existe um bom motivo para tal. Como já discutido anteriormente neste Artigo Científico, o Art. 20-C permite, ou melhor, exige uma interpretação muito ampla do que será considerado como discriminatório. Dessa forma, existem aqueles que interpretam a nova lei como uma ferramenta apta a penalizar e até mesmo censurar comediantes que supostamente teriam cometido crime.

Para exemplificar essa questão, cumpre lembrar-se do processo criminal que corre atualmente contra o humorista de humor negro, Léo Lins, em razão de um show de stand-up de alcunha “Perturbador”. Léo foi indiciado com base na Lei de Racismo em razão de diversas piadas com conteúdo sensível que foram compreendidas como discriminatórias pelo Ministério Público, tendo o juízo, inclusive, acatado os pedidos liminares da peça inicial acusatória, aplicando certas penalidades e restrições ao humorista, como a obrigação de tirar o show do ar, comparecer em juízo mensalmente e precisar de autorização judicial para sair do estado de São Paulo por mais de 10 dias.

Percebe-se que o humorista não só está sendo punido, como também teve seu show censurado, isso tudo antes mesmo de haver uma sentença no processo. O tema é um divisor de opiniões: de um lado, existem aqueles que entendem correta a decisão e a nova lei, pois consideram criminosa a conduta de humoristas como Léo Lins; do outro lado, existem aqueles que consideram a situação um excesso por parte do judiciário, e a lei, uma afronta aos direitos de liberdade de expressão e artística.

Notório que diversos tipos de obras retratam diversos tipos de temas sensíveis, inclusive aqueles relacionados a minorias. Entretanto, não parece haver o mesmo nível de empenho em censurar filmes, séries, músicas, peças teatrais etc., por serem supostamente discriminatórias. Parte do motivo, provavelmente, é que a população tem uma dificuldade em separar o personagem do artista e vice-versa no contexto de stand-ups. É muito comum, por exemplo, que quando um artista se envolve em uma polêmica, o público passe a olhar para os trabalhos dele com olhos diferentes, assim como o artista pode encontrar problemas em conseguir novos trabalhos, o que, para exemplificar, podemos lembrar de Johnny Depp, que devido às acusações de sua ex-companheira (posteriormente demonstradas infundadas), perdeu oportunidades de emprego.

Com humoristas, o problema parece ser o contrário. As pessoas veem o personagem no palco dizendo coisas absurdas e automaticamente entendem que o humorista interpretando tal personagem é exatamente daquela forma, pensando daquela maneira e compactuando com ideais reprováveis. O que parece difícil de perceber, é que um stand-up é uma obra artística como qualquer outra. Que o humorista deveria ter tanto direito quanto um ator de um filme em interpretar um personagem, só que, em vez de fazer isso em um estúdio, o humorista o faz num palco.

Além disso, situações como essa expõem uma espécie de “Polícia do Humor”, que consiste em indivíduos dizendo o que pode ou não pode ser humorizado, o que é que tem graça e o que não tem. É notório que existem diversos tipos de humor, assim como existem diversos tipos de obras artísticas, e, por óbvio, se um determinado show de humor não agrada a alguém, este deveria evitar consumi-lo, mas não tentar impedir que outras pessoas possam usufruir dele.

Portanto, quando a Lei 14.532/2023 vem de forma a possibilitar a criminalização de um tipo de arte e sua consequente censura, ela está afrontando diretamente a Constituição Federal de 1988, primeiramente em relação ao Art. 5º, inciso IX, o qual estabelece que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e também em relação ao Art. 220, § 2º: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”.

2.3.1. A relativização de direitos, tendo em vista que não existe direito absoluto, poderia justificar a censura aos shows humorísticos com base na Lei nº14.532/2023?

Um argumento que, definitivamente, merece atenção seria o da não existência de direito absoluto, pois, como qualquer jurista poderá saber, no Direito, quase tudo depende. Resta, então, buscar entender se no caso de shows de comédia, o direito à liberdade artística e à não censura, poderia ser relativizado em prol dos direitos tutelados pela Lei do Racismo, notadamente após as alterações trazidas pela 14.532/2023.

Imperioso é, portanto, demonstrar quais são os direitos tutelados pela referida lei. Seriam eles, a honra, a dignidade, a igualdade etc. A Lei de Racismo vem como uma ferramenta para evitar discriminações e ofensas fundadas em características como a raça, a cor, a procedência nacional, dentre outras. Exatamente por isso, que atitudes ofensivas com alvos determinados (injúrias) e práticas que semeiam e incitam a discriminação e segregação racial devem ser firmemente penalizadas por força da lei.

Por óbvio, um humorista que faz piadas de humor negro, entrará em tópicos como racismo, homofobia etc. Na realidade, muitas vezes, o objetivo do humor é justamente criticar uma mazela social, pois, afinal de contas, a piada não cria o fato; é uma decorrência desse. "Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir. Isto pode ser chamado de comicidade ou qualquer outro termo equivalente. “O humor é uma visão crítica do mundo e o riso, efeito colateral pela descoberta inesperada da verdade que ele revela", citando o escritor Ziraldo, asseverou o então ministro do STF, Carlos Ayres Brito no julgamento do Referendo na Medida Cautelar na ADI 4.451.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da referida ADI, assim se manifestou a respeito do humor:

O humor presta serviço à Democracia. Com seu modo elegante ou um tanto agressivo, fino ou mais explícito, direto ou por ironia, ele consegue escancarar os conflitos sociais, políticos e culturais de uma forma não violenta, mas reflexiva. E reflexiva da melhor maneira, através do sorriso.

(ADI 4.451-MC-REF, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, data do julgamento: 02/09/2010).

Assim, devemos ser capazes de distinguir uma piada, que coloca um holofote em determinado problema social, de um discurso que faz apologia a uma conduta reprovável. Ou seja, há de ser respeitada a liberdade artística e a proibição da censura previstas na Constituição Federal, não podendo ocorrer a banalização da censura e muito menos a criminalização de algo porque algum indivíduo ou grupo se sentiu incomodado por algo revestido de claro animus jocandi.

Além disso, muito embora seja bem verdade que não exista direito absoluto ou hierarquia entre direitos fundamentais, há o que se chama de preferred position, como bem explica Luís Roberto Barroso (2004):

Na verdade, tanto em sua manifestação individual, como especialmente na coletiva, entende-se que as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício de outras liberdades, o que justifica uma posição de preferência - preferred position - em relação aos direitos fundamentais individualmente considerados. Tal posição, consagrada originariamente pela Suprema Corte americana, tem sido reconhecida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol e pela do Tribunal Constitucional Federal alemão. Dela deve resultar a absoluta excepcionalidade da proibição prévia de publicações, reservando-se essa medida aos raros casos em que não seja possível a composição posterior do dano que eventualmente seja causado aos direitos da personalidade. A opção pela composição posterior tem a inegável vantagem de não sacrificar totalmente nenhum dos valores envolvidos, realizando a ideia de ponderação

Ou seja, nessa perspectiva seria mais adequado dar uma liberdade maior de uso e punir eventuais abusos, do que reprimir certos direitos de forma prévia, realizando essencialmente uma censura prévia.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal, em variadas ocasiões, seguiu o entendimento da posição preferencial supracitada, inclusive da equiparação da liberdade de imprensa com a atividade do humorista, como será discutido mais detalhadamente na Análise e Discussão dos Resultados.

2.4. O QUE É O RACISMO E QUAIS OS GRUPOS QUE ESTÃO PROTEGIDOS PELA LEI Nº 7.716/1989?

A Lei de Racismo surgiu, originariamente, em razão da discriminação sofrida pela população negra na história do Brasil. Entretanto, hoje em dia, ela abarca diversos tipos de discriminação, não só em relação à vítima, mas também à atitude intolerante.

Na 7.716/1989 existem, desde os crimes mais sérios que envolvem real segregação e cerceamento de direitos básicos, até eventuais comentários que incitem a discriminação, o ódio ou causem uma espécie de constrangimento, vergonha etc.

A Lei 14.532/2023 foi categórica em sua redação ao estabelecer que apenas grupos minoritários se encontram sob as suas “asas”. O que deixa a entender, de certa forma, que apenas certos grupos podem sofrer racismo ou formas análogas de intolerância e desrespeito.

Cumpre, então, tentar definir “racismo”. Isso não é uma tarefa simples, na realidade, definitivamente não existe uma única resposta, já que o que é “racismo” para um autor pode não ser para outro. Além disso, diversos pensadores possuem perspectivas diferentes a respeito dos desdobramentos do racismo e como ele realmente é aplicado.

O próprio sufixo “ismo” denota as origens ideológicas do termo (BONILLA-SILVA, apud CAMPOS, 2017). Ruth Benedict, conforme citada por Campos, definiu “racismo” como o dogma segundo o qual um grupo étnico está condenado pela natureza à inferioridade em relação a outro.

O racismo deve ser entendido como um conjunto de ideias que presume a existência de raças distintas, atribuindo avaliações negativas a uma ou mais “raças”, não necessariamente uma doutrina, mas uma dimensão com um conjunto vulgar de significados do senso comum, repletos de incoerência e sem uma estrutura lógica (MILES, BROWN, apud CAMPOS, 2017).

Percebe-se uma diferença de ponto de vista entre os autores citados acima, Miles e Brown, que parecem atribuir menos estrutura ao racismo, muito embora os autores nunca negaram o racismo institucional e estrutural, por exemplo. Pode se extrair de seus posicionamentos que para eles há mais importância na análise das condutas relacionados às ideias racistas que às ideias em si, até porque não há por que perder tempo discutindo acerca de qualquer ideologia racista, não passando de um constructo social obviamente falacioso. Luiz Augusto Campos, (2017), assevera que “(...) não são propriamente as ideologias que se busca punir, mas as condutas delas derivadas ou por elas motivadas. Novamente, as práticas individuais e institucionais parecem ter maior relevância na realidade concreta do que ideias propriamente ditas.”

Muito se fala acerca do racismo estrutural, por isso entender seu conceito será fundamental para uma análise adequada. Para isso, pegarei emprestado o conceito dado pelo ministro do STJ, Benedito Gonçalves, no VIII Seminário de Planejamento Estratégico Sustentável do Poder Judiciário. Para ele, o racismo existe em duas dimensões, a institucional e a estrutural. Um exemplo de racismo institucional seria aquele praticado por policiais contra uma parcela marginalizada da população, no caso do Brasil, os negros, em sua maioria. É de mais fácil constatação porque geralmente é explícito.

O racismo estrutural, por outro lado, está enraizado nos costumes e na cultura de um povo. No caso do Brasil, o racismo contra negros, por óbvio, decorre dos séculos de escravidão, e, ainda depois de sua abolição, as décadas de discriminação que ainda eram moralmente aceitáveis na sociedade brasileira da época: "O racismo estrutural está cristalizado na cultura do povo de um modo que, muitas vezes, nem parece racismo. A presença do racismo estrutural pode ser constatada pelas poucas pessoas negras que ocupam lugar de destaque nas instituições", afirmou o ministro Benedito Gonçalves.

Ou seja, em decorrência de séculos de exploração, discriminação e segregação, os negros tiveram um contratempo imenso em relação a outros povos mais afortunados em nosso território brasileiro, de forma que, mesmo após se tornarem livres, não possuíam meios ou oportunidades para se desenvolverem academicamente, profissionalmente e socialmente. Com isso, a maioria dos negros era pobre, como ainda é o caso no Brasil, com pouca ou nenhuma escolaridade e eram ativamente repudiados pela sociedade em geral, relegando-os, literalmente, às margens das cidades, onde se formariam as periferias.

Destarte, uma dívida histórica existe, e isso provavelmente é um fato incontroverso, enquanto o que fazer em relação a essa dívida é o que causa problemas, mas esse é um tópico para outra discussão. O que interessa para esta discussão é como o Estado deve agir frente à realidade do racismo na sociedade brasileira.

Essa breve explicação é importante, pois é a base para um entendimento que é coadunado por muitos juristas, inclusive jurisprudências em nosso país, qual seja, a de que os crimes de racismo só são configurados quando existir relação de opressão e poder sobre a vítima, contextualizado com um histórico de abusos e discriminações daquele povo específico. Em outras palavras, é plausível que um branco seja ‘racista com um negro, entretanto, juridicamente falando, o contrário não configuraria racismo, pois aos caucasianos (no Brasil) falta o elemento histórico de opressão sofrido, falta a disparidade de poder social etc.

Obviamente, esse ponto de vista faz sentido, entretanto não se vislumbra motivo idôneo para restringir a proteção oferecida pela Lei de Crimes Raciais. Isso porque não é necessário desistir de proteger um certo grupo em favor de outro, já que todos os grupos podem igualmente ter os mesmos direitos resguardados. Evidentemente, no que se refere a discriminações positivas partidas do poder público, como por exemplo cotas raciais, esse tipo de ação, deve, por óbvio, estar voltada para as parcelas vulneráveis que realmente necessitam de tais auxílios. Entretanto, quando o assunto é punir uma atitude ofensiva baseada em elementos raciais, por exemplo, punir aquele que ofendeu um caucasiano não fará com que a ofensa a um negro passe impune. Proteger a todos não enfraquece a luta dos negros, dos indígenas, das mulheres, dos transexuais, dos idosos ou de qualquer outro grupo vulnerável, pelo contrário, uma sociedade onde todos possuem um sentimento de pertencimento e respeito mútuo é um elemento fundamental para uma harmonia geral.

Tentar monopolizar quem pode ou não pode figurar ativa ou passivamente nos crimes da 7.716/89 só serve para acirrar tensões raciais e promover a divisão social. Como colocado por William Douglas: “Se não houver mudança de rumos, e combate à cultura de segregação e do ‘nós contra eles’, terminaremos por importar o grau de tensão racial que há nos EUA.”.

Ao se falar sobre este tema, geralmente surge o tópico do “racismo reverso”, o qual não existiria na visão daqueles que entendem que só existe racismo quando os atos discriminatórios são voltados contra grupos minoritários e historicamente vulneráveis, nesse sentido Djamila Ribeiro, (2018), explica:

Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravidão por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a essa população. Brancos são mortos por serem brancos?

Percebe-se novamente uma conceituação diferente de racismo das apresentadas anteriormente neste trabalho, de forma que fica clara que não é uma tarefa simples dar essa conceituação. Com a devida vênia à autora, não parece completamente adequado entender o racismo como um “sistema de opressão”, mas sim como uma ferramenta ideológica que foi utilizada para instaurar e justificar sistemas opressores. Por óbvio, não existe racismo reverso, pois isso significaria dizer que existe uma forma original de se praticar o racismo, ou pior, uma forma “certa”; o termo “racismo” teria que carregar consigo mais significados do que realmente carrega, pois, na realidade, é uma expressão muito abstrata e que só ganha um sentido mais palpável ao ser aplicada em um contexto concreto.

O presente artigo não busca, de forma alguma, passar a impressão de que brancos sofreram algum tipo de opressão histórica (no Brasil) que fosse minimamente comparável à dos negros. Esse não é o ponto; o ponto é que nem todo tratamento ofensivo baseado nas características “raciais”, de cor, ou étnicas, virá necessariamente embasado em uma opressão histórica. Portanto, pelo menos na visão deste autor, qualquer tratamento que incite o desrespeito, o ódio, a intolerância, ainda que em grau pequeno, contra qualquer grupo, deveria ser abarcado pela Lei de Crimes Raciais, de forma a não monopolizar quem pode ou não pode praticar ou sofrer racismo ou formas análogas de intolerância.

Entretanto, claramente o legislador entendeu de forma contrária, isso pois a alteração trazida pela Lei nº 14.532 positiva o entendimento de que existem aqueles que podem ou não praticar racismo, assim como os que podem ou não ser vítimas dele. Isso por causa da redação do Art. 20-C, a qual “orienta” o juiz acerca do que este deve ou não considerar como atitude discriminatória, deixando claro que só ocorre discriminação quando o sujeito passivo for pessoa ou grupo minoritário.

Isso não é só um problema ético, mas também entra em conflito com o nosso ordenamento jurídico, tendo em vista o Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022, o qual promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado na Guatemala em 05 de junho de 2013. Esse conflito fica muito claro ao direcionarmos nossa atenção para o Artigo 2º do referido decreto: “Todo ser humano é igual perante a lei e tem direito à igual proteção contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, em qualquer esfera da vida pública ou privada.”. Logo adiante, o Artigo 4º estabelece que os Estados signatários da Convenção se comprometem a combater todos os atos e manifestações de racismo.

Ou seja, analisando esse Decreto, o qual trata de Direitos Humanos e, portanto, é recebido com força de Emenda Constitucional, fica bem evidente que não existem grupos específicos a serem protegidos do racismo e formas correlatas de discriminação, pelo contrário, fica expresso que todo ser humano é igual perante a lei e deve gozar de igual proteção.

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Sobre o autor
Milton Marques Ferreira Júnior

Acadêmico do curso de Direito da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí – FACTU.︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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