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O aborto de fetos anencéfalos.

O direito e a realidade atual

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Agenda 28/05/2008 às 00:00

4. A recente polêmica

A temática do aborto de fetos anencéfalos sempre foi bastante delicada e discutida por juristas de posições as mais distintas. No entanto, foi apenas recentemente que ganhou notoriedade e ensejou debates entre a opinião pública de modo geral.

Em 1º de julho de 2004, o ministro Marco Aurélio de Mello concedeu liminar que autorizava o abortamento de feto anencéfalo com base em pedido realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS). Pouco tempo se passou para que, em 20 de outubro do mesmo ano, o julgamento da decisão monocrática fosse levado a termo. Apenas quatro dos magistrados do Supremo Tribunal Federal votaram pela manutenção da liminar: o próprio Marco Aurélio de Mello, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Eros Grau justificou seu voto contrário alegando que "o Código Penal não pode ser reescrito pelo Judiciário e permitir uma ´´terceira modalidade de aborto´´" [20]. Seus argumentos, assentes na observância do dispositivo sobre o aborto, foram amplamente aceitos pelos demais ministros, o que resultou na imediata cassação da liminar.

Desde então, a polêmica acerca do aborto de feto anencéfalo tem dividido opiniões, envolvendo um leque diversificado de questões que vão desde valorações éticas a religiosas. Como é costume em casos jurídicos que abarcam a defesa da vida, a Igreja Católica não se furtou a manifestar sua posição. Embora laico, o Estado brasileiro ainda se vê às voltas com a influência de opiniões religiosas, chegando mesmo, em algumas circunstâncias, a ter de colocar em pauta as posturas assumidas por seus líderes.

O processo de laicização do Estado, ocorrido sobretudo após a Revolução Francesa, propiciou a dissociação entre a religião e o Estado e motivou uma nova forma de concepção a respeito de certos temas [21]. Além disso, se na época do Ancien Régime a religião católica praticamente determinava a visão de mundo do indivíduo, com o surgimento de uma nova realidade social – fundada na crescente racionalização do mundo – ela terá papel secundário. Ainda assim, é curioso notar que não obstante tenha abolido a religião como dado estrutural de sua existência, o próprio Estado permite a ingerência da Igreja Católica em questões que não são de sua alçada, chegando a influenciar tribunais jurídicos [22].

Seria, contudo, restringir o foco da contenda à esfera religiosa se não admitíssemos a presença de outros setores sociais que, de uma maneira ou de outra, mostraram-se sequiosos de participar da discussão.

A despeito da cassação acima consignada, a liminar de Marco Aurélio de Mello ensejou intensa polêmica. Não bastassem as justificativas apresentadas pelo ministro quando de seu parecer, ainda se propôs a discutir o tema abertamente, publicando artigo em jornal de ampla circulação. Não lhe seria necessária uma tal postura, posto que sua função de magistrado não exige esforços de esclarecimentos diante da opinião pública. Ainda assim, parece-nos que sua motivação ao escrever o texto se pautava na intenção de trazer a lume idéias caras ao debate. Vejamos algumas de suas considerações que, acreditamos, possam ser de bastante valia para os argumentos que aqui tentamos desenvolver.

O foco no qual estão centradas suas justificativas não poderia ser outro senão a preocupação com a integridade física, moral e psicológica da gestante. Com efeito, não haveria de analisar o fato desprezando as conseqüências de uma gravidez dessa natureza. Suas palavras são claras: "Assenti sobretudo aos argumentos de que a permanência do feto mostra-se potencialmente perigosa, podendo ocasionar danos à saúde e à vida da gestante. [...] Para qualquer pessoa nessa situação, ficar à mercê da permissão do Estado para livrar-se de semelhante sofrimento resulta, para dizer o mínimo, em clara violência às vertentes da dignidade humana -física, moral e psicológica" [23]. Note-se o contraponto entre o bem-estar da gestante e a esfera jurídica que, salvo engano, encerra o dilema maior do assunto, objeto da liminar em tela. De modo explícito, há a idéia de que a formalidade jurídica, expressa na "permissão do Estado", poderia comprometer a defesa de um valor que, em princípio, cabe a ele tutelar: a dignidade humana. Por mais estranho que possa parecer, estaria aqui a rigidez da normatividade jurídica a serviço de uma tarefa antagônica à sua própria essência, porque incapaz de salvaguardar o leque de direitos inalienáveis ao indivíduo. É nesse sentido que o jurista aponta para posições contrárias às suas, observando que "É até possível para alguns passar incólume pela decisão de, mediante simples omissão, escudados pelas lacunas ou obsolescências da legislação, impingir dor e aflição a outrem" [24].

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A leitura de alguns trechos do artigo poderia nos fazer crer que a análise feita se restringe a um tom eminentemente pessoal, preterindo os aspectos técnicos da esfera jurídica. É certo que o autor procura sopesar situações de anencefalia relativamente à possibilidade de ocorrência em familiares. O argumento tecido, contudo, é muito mais sutil do que à primeira vista parece. Ao lançar mão de hipóteses sobre tal possibilidade não visa dotar a polêmica de laivos pessoais, mas proceder justamente ao contrário, na medida em que trabalha com circunstâncias abstratas: "Ora, principalmente em caso penoso como o que se põe em discussão, há que se calçar o sapato não com o próprio pé, mas com o pé do outro, de modo a sentir exatamente onde lhe machuca o calo. Para aguçar o termômetro da sensibilidade, é de bom alvitre perguntar a si mesmo, antes de qualquer decisão: e se fosse com a minha filha, minha mulher, minha irmã? Suportaria esses nove meses de tormento, de espera sem esperança?" [25]

Ao leitor atento restará patente que se trata de indagações afeitas à imparcialidade do tema, justamente por se considerar que possa ocorrer, abstratamente, a todas e a cada gestante simultaneamente. Nessa perspectiva, casos concretos podem ser avaliados a partir da situação hipotética acima consignada.

Em seu entendimento, a dignidade humana, como valor a ser integralmente resguardado, não poderia ser avaliado parcialmente, sob pena de torná-la um mero "objeto". Assim, dando vazão à noção de que o direito deve corresponder a uma forma de organização apta a englobar valores de toda sorte, observa o jurista: "No cerne da questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. São muitos e de crucial importância os valores em jogo. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana" [26].

Reiteremos, por fim, a contraposição entre a formalidade jurídica e a necessidade de se suprir as "lacunas ou obsolescências da legislação", resultando num procedimento capaz de não abandonar a ordem legal ao mesmo tempo que respeitador de valores éticos e humanitários. O final do texto é paradigmático no que concerne a esse ponto. Vejamos: "De minha parte, serei todo ouvidos. Que, ao final, com respaldo na necessária lógica da razão, com esteio no arcabouço normativo-constitucional, mas sobretudo consideradas as vertentes éticas e humanitárias que se encontram no âmago da questão, chegue a Corte à decisão mais sábia, mais prudente, mais justa, como sempre sói acontecer. Oxalá assim seja mais uma vez" [27].

Longe de se esgotar, esse debate suscitaria novas questões e abriria caminho para que outros casos fossem julgados [28].


5. Descompasso: legislação insuficiente e a realidade social

Um dos pontos a merecer atenção em nossa discussão é a incompatibilidade do teor da legislação penal com os tempos atuais. Dotando tal discussão de traços essencialmente sociológicos, diríamos que a legislação penal deveria estar adequada à realidade social na qual se insere, sob pena de não ser eficaz. Isso, no entanto, não basta: é preciso também que ela atenda às necessidades sociais impostas pela dinâmica social. Por esse motivo, é evidente que o debate em questão não pode ser realizado sem que se tenha em mente ser o dispositivo legal sobre o aborto "desatualizado". Como uma tal afirmação deve ser entendida? Ao incauto leitor poderia soar um tanto despropositada essa assertiva, uma vez que a vida, sendo um direito universal e inalienável, independe do contexto social para que seja tutelada. Dito em outros termos, tratando-se da vida, não há norma que seja ultrapassada, visto que sua defesa jamais poderá ser comprometida em virtude de tais ou quais princípios qualificados modernos. Não é esse, entretanto, o nosso foco. O que merece ser enfatizado no presente caso é a incapacidade de o Direito Penal não prever regramento normativo para um tipo específico de situação na qual, embora esteja a vida envolvida, ela se apresenta como inviável. Não estamos, portanto, diante de ordinária interrupção da gravidez e tampouco de ato lesivo à vida. Avaliamos uma circunstância sui generis: aquela em que a vida não passa de uma existência efêmera e episódica, pois que o feto anencéfalo não terá condições de sobreviver fora do útero materno por muito tempo, ou seja, não haverá possibilidade de vida extra-uterina.

Volvendo a atenção para a incompatibilidade acima consignada, notemos as palavras de José Henrique Rodrigues Torres: "...o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento da ciência nem às conseqüentes evoluções históricas do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante transformação. [...] Assim, em situações como a que neste caso é trazida a juízo, as quais reclamam aplicação das normas penais, não se pode olvidar do atual avanço científico e tecnológico da medicina, o qual, inexoravelmente, acarreta profundas transformações éticas e culturais na sociedade" [29]. As transformações aludidas pelo autor deveriam receber atenção da esfera jurídica, de sorte a minimizar as dissonâncias entre os anseios sociais e o ordenamento jurídico [30]. Enfim, deveriam ser incorporadas pelo direito.

Na mesma linha de argumentação, notemos que, na década de 1940, não dispunha o conhecimento médico dominante de condições eficazes e precisas para se verificar a anencefalia. Diante dessa incapacidade científica torna-se compreensível que nem sequer fosse cogitado, pelos nossos legisladores, o abortamento de fetos anencéfalos. Nem mesmo os autores que vivenciaram aquele período seriam capazes de afirmar a pertinência do aborto eugênico. O exemplo de Nelson Hungria é paradigmático: "Andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa pretensiosa charlatanice que dá pelo nome de eugenia. Consiste esta num amontoado de hipóteses e conjecturas, sem nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão de que um feto será, fatalmente, um produto degenerado" [31]. Atente-se para as palavras do eminente jurista para se notar que sua posição sobre o assunto está sobremaneira pautada na incapacidade de se diagnosticar os problemas havidos com o feto. Tanto assim que se mostra enfático ao mencionar a inexistência de "provas irrefutáveis" a respeito de tais problemas. Não é possível presumir se o autor tinha em mente o caso específico do aborto de fetos anencéfalos. Tal suposição certamente resvalaria em ordinários exercícios de especulação. Todavia, valeria arriscar algumas indagações: havendo naquela época a possibilidade de detecção da anencefalia, Hungria poderia concordar com a tese do aborto eugênico, ao menos para casos comprovados de ausência de cérebro? A mesma indagação pode ser feita, salvo equívoco, em relação às ponderações de Magalhães Noronha. Vejamos o que nos diz o autor: "Cumpre notar igualmente a falibilidade do prognóstico: no caso concreto, não haverá fatalidade do efeito pernicioso no ente em formação: é mais uma razão para não se admitir sua morte antecipada. Caso contrário, aberta estaria também a porta para a eutanásia ou homicídio compassivo, que é repelido pelas leis" [32]. Também Noronha parece fundamentar sua recusa ao aborto eugênico na impossibilidade de constatação inquestionável da inexistência cerebral do feto. Com efeito, correndo todos os riscos que tal indagação comporta, questionamos se a postura jurídica desses autores não está condicionada pela parca eficiência dos recursos científicos à época em que vieram a lume suas obras. Concordamos integralmente com Cezar Roberto Bitencourt ao responder tal indagação nos seguintes termos: "... se, na época [1940], houvesse o arsenal de conhecimento e tecnologia de hoje, provavelmente também teria admitido o denominado aborto anencefálico, diante da absoluta certeza da inexistência de vida, como ocorre na atualidade" [33].

Alguns juristas que também publicaram suas obras em período não muito distante da década de 1940 silenciaram quanto ao tema. Heleno Cláudio Fragoso [34], Bento de Faria [35], Euclides Custódio da Silveira [36] são alguns exemplos. Entre os autores da atualidade, poucos são aqueles que, em revisão doutrinária feita nos últimos cinco anos, se furtaram ao debate. Isso, por si apenas, nos oferece a importância de sua atualidade e a irrefragável necessidade de enfrentá-lo [37].

Modificando-se substancialmente a realidade que nos separa da dos autores acima citados, ou seja, tendo agora condições inequivocamente precisas para averiguar a anencefalia, como poderíamos equacionar o problema da legislação penal relativamente à possibilidade de abortamento de fetos anencéfalos? Essa indagação não pode ser respondida de pronto. Como notado anteriormente, o argumento da inexigibilidade de conduta diversa tem sido amiúde utilizado para autorizar a prática abortiva. Além disso, assinalemos haver previsão de alteração do dispositivo legal na reforma da legislação penal [38]. Veja-se, a título de ilustração, quais são as alterações previstas para o Código Penal brasileiro: "A Comissão [de reforma] sugere ampliar a extensão do aborto legal. Mantém o chamado aborto necessário; dá nova redação ao aborto ético; menciona, além do estupro, ´´violação da liberdade sexual, ou emprego não consentido de técnica de reprodução assistida´´. Além disso, quando houver ´´fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais´´. Ad cautelam, ´´deve ser precedido de consentimento da gestante, ou quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro´´, além da não oposição justificada do cônjuge ou companheiro" [39]. Conforme fica patente no texto acima, a legislação penal proposta estaria muito mais afinada com as vicissitudes da vida moderna e rechaçaria a vetustez do diploma legal de 1940.

Sob essa perspectiva, valeria também notar que a controvérsia originada pela liminar do ministro Marco Aurélio de Mello, anteriormente mencionada, perdurou por algum tempo, movimentando debates na sociedade civil e na esfera jurídica. Um dos sequazes de sua postura, Osíres Lopes Silva, assim se pronunciou sobre o assunto: "Agiu sábia e humanitariamente o ministro Marco Aurélio, realizando a construção judicial que supera insuficiência do Código Penal, libertando gestantes do adicional fardo torturante de processo penal agravador de sua situação infeliz" [40]. Examinando as palavras do autor, somos levados a entender que o Código Penal brasileiro concorre para a infelicidade de uma situação dramática ao impedir que se suprima o "fardo torturante" referido. O aspecto interessante do depoimento acima não é esse, entretanto. Parece-nos conveniente indagar se a liminar em questão, ao tentar "superar a insuficiência do Código Penal", não arrostou os pressupostos da Teoria da Separação dos Poderes, cuja expressão constitucional encontra-se no art. 2º da CF/88 [41]. Lembremos, a esse propósito, a crítica do ministro Eros Grau que ponderou: "... o Código Penal não pode ser reescrito pelo Judiciário e permitir uma ´´terceira modalidade de aborto´´" [42].

O dilema intrínseco às opiniões acima dadas pode ser cifrado na contraposição entre a necessidade de cumprir rigidamente os preceitos insculpidos no ordenamento jurídico, ainda que tal procedimento implique formas de constrangimento pessoal, e a possibilidade de "superar" as insuficiências nele contidas.

Sobre o autor
Roberto Barbato Jr

Mestre em Sociologia e Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professor nos cursos de Direito da METROCAMP (Campinas) e UNIP (Limeira).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBATO JR, Roberto. O aborto de fetos anencéfalos.: O direito e a realidade atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1792, 28 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11319. Acesso em: 25 nov. 2024.

Mais informações

Artigo originalmente publicado na Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 865, Novembro de 2007, pp. 434-449.

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