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O aborto de fetos anencéfalos.

O direito e a realidade atual

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28/05/2008 às 00:00
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6. Considerações finais

Não restam dúvidas de que um dos maiores dilemas do mundo jurídico é sua incapacidade de acompanhar o movimento da sociedade em sua totalidade. Esse dilema encontra acentuado relevo quando se trata de examinar a legislação penal. Concebido em período de costumes e cultura extremamente diversa da atual, o Estatuto Repressivo Penal se afigura, em muitos de seus capítulos e títulos, como diploma legal vetusto, ineficaz e em flagrante dissonância com a realidade social. Não constitui exagero, portanto, a afirmação daqueles que professam sua reformulação, adaptando-o às vicissitudes da moderna sociedade brasileira. A discussão sobre o aborto de fetos anencéfalos é um imperativo dos tempos hodiernos e não se pode deixar de realizá-la, sob pena de perpetuação do caráter antiquado e ultrapassado do Código Penal. É nesse prisma que devemos ler as palavras de Cezar Roberto Bitencourt: "...o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação. O Direito Penal – não se ignora essa realidade – é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza. Vive-se esse turbilhão de mutações que caracteriza a sociedade moderna, e que reclama permanente atualização do direito positivo que, via de regra, foi ditado e editado em outros tempos, e somente pela interpretação do cientista ganha vida e atualidade, evoluindo de acordo com as necessidades e aspirações sociais, respondendo às necessidades da civilização humana" [43]. As ponderações do autor podem ser interpretadas como um convite a se pensar na necessidade de atualização do Direito Penal em face dos acontecimentos modernos. Não seria equivocado observar, também, sua preocupação com a efetiva compatibilização da legislação penal com as "necessidades e aspirações sociais". Tal argumento é amiúde utilizado nas discussões sociológicas sobre a eficácia normativa e se coloca como ponto nevrálgico da relação entre o direito e as transformações pelas quais passa a sociedade.

A perspectiva jusfilosófica e sociológica sobre o aborto eugênico, mormente a respeito da decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, seria capaz de sugerir a seguinte reflexão: ao negar a prática abortiva de fetos anencéfalos por falta de condições legais, não estaria o magistrado impedindo uma conduta legítima por parte da gestante? Expondo a questão em outros termos, não se estaria dando primazia à legalidade em detrimento da legitimidade? As respostas a tais questões, embora pareçam simples, não podem ser dadas de modo maniqueísta. No que consiste, aqui, a legitimidade da interrupção da gravidez por parte da gestante? Salvo melhor entendimento, ela está ancorada do direito de dispor do próprio corpo com o fito de não provocar, em si mesma, qualquer tipo de lesão física ou psíquica. Pauta-se, também, na defesa dos "direitos fundamentais da mulher, igualmente protegidos: liberdade e dignidade humanas" [44]. Até mesmo os incautos apreciadores da questão são capazes de admitir, tirante qualquer discussão de ordem jurídica, as nefastas conseqüências para uma mãe que gerou e pariu um feto sem cérebro.

É preciso entender, no entanto, que conceder autorização para o aborto de fetos anencéfalos não é o mesmo que exigir tal conduta de todas as mães acometidas por esse tipo de problema em sua gestação. Não se poderia, à exceção da hipótese de risco de morte, ordenar que agissem dessa maneira. O que se coloca em questão é tão-somente a possibilidade de abortamento diante de uma circunstância que certamente gerará inúmeros transtornos psíquicos à mãe do feto em questão. De modo a evitar transtornos como esses, parece admissível também o art. 5º, III, da Constituição Federal, que diz: "Ninguém será submetido a tortura e nem a tratamento desumano ou degradante" [45]. Com efeito, exigir o nascimento de uma criança sem cérebro, sem perspectivas sólidas de vida futura, não seria o mesmo que impingir um tratamento desumano à sua mãe? A resposta negativa não seria digna de crédito no reino das ponderações humanitárias.

Repensar as possibilidades de garantir a realização do aborto às mães de fetos comprovadamente anencéfalos é mais do que um exercício especulativo. Constitui uma premente necessidade, apta a evidenciar que, a despeito das lamentáveis oportunidades perdidas com legalismos de toda sorte, é possível dar guarida a um direito assegurado constitucionalmente, mas que, entretanto, carece de respaldo da esfera penal.


7. Bibliografia

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Notas

  1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. Vol. 02. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 143.
  2. Idem, Ibidem, p. 142-143. Ainda a respeito dessa postura de avaliação do problema, valeria consultar FRANCO, Alberto Silva. Aborto por indicação eugênica. In: BARRA, Rubens Prestes & ANDREUCCI, Ricardo Antunes (coord.). Estudos jurídicos em homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo: RT, 1992, p. 96 e seguintes.
  3. É comum até mesmo no âmbito da ficção as referências à respiração como único meio para se certificar de que o indivíduo morrera. A emblemática ação de colocar um espelho sob as narinas do suposto falecido ainda encontra lugar em regiões subdesenvolvidas e destituídas de profissionais aptos a realizarem a verificação da morte.
  4. Determinar o momento em que um indivíduo deixa de existir é conduta que serve a inúmeros propósitos, tanto na área médica, quanto na jurídica. Ressalte-se, por exemplo, sua importância para a utilização de órgãos em transplantes.
  5. LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello; FREITAS, Ana Clélia; FAYET, Fábio Agne. Existe aborto de anencéfalos? Disponível em jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=6467"> http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=6467
  6. Idem, Ibidem. Grifos nossos.
  7. Idem, Ibidem.
  8. LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello; FREITAS, Ana Clélia; FAYET, Fábio Agne. Existe aborto de anencéfalos? Op. cit. Grifos nossos.
  9. MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 91.
  10. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 387.
  11. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 803.
  12. LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello; FREITAS, Ana Clélia; FAYET, Fábio Agne. Existe aborto de anencéfalos? Op. cit. Em conformidade com essa idéia sobre a vida é que deve ser lida a tese sustentada por Luiz Flávio Gomes a respeito da atipicidade do abortamento de fetos anencéfalos. Consultar sobre esse assunto GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material.Revista dos Tribunais, n. 854, dez. 2006, p. 405-410.Cezar Roberto Bitencourt também se apóia na "lei de transplante de órgãos (Lei n. 9.434/97)" para utilizar o argumento da atipicidade. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Op. cit., p. 145.
  13. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 01. 8 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 416.
  14. Rogério Greco entende que a possibilidade de aborto sentimental também é uma causa legal da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. Idem, Ibidem, p. 416.
  15. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Parte Geral, Parte Especial. 3 ed. São Paulo: RT, 2007, p. 303.
  16. Idem, Ibidem.
  17. Revista dos Tribunais, vol. 756, outubro/1998, p. 653.
  18. Idem, Ibidem, p. 653. Note-se a ementa do acórdão relativo ao presente caso: "ABORTO – pedido de autorização judicial instruído com laudos médico e psicológico – Feto portador de anencefalia – Admissibilidade da interrupção da gravidez eis que evidenciado risco à saúde da gestante, especialmente psicológica. (RT 756/652).
  19. TORRES, José Henrique Rodrigues. Gravidez de alto risco. Abortamento necessário ou terapêutico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.º 08, out/dez, 2003, p. 239-246. A explicação de Fernando Capez também segue em mesma perspectiva: "Tecnicamente considerado, o aborto eugenésico dirá com a excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, tanto por parte da gestante, considerando o dano psicológico a ela causado, em razão de uma gravidez cujo feto sabidamente não sobreviverá, como por parte do médico, que não pode ser compelido a prolongar o sofrimento da mulher". CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte especial. Vol. 02. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 123.
  20. NANCI, Luciana. Gestantes de feto sem cérebro não podem mais abortar. Revista Consultor Jurídico. 20.10.2004. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/30713,1 . Acesso em 20.07.2006.
  21. Carlos Nelson Coutinho bem explica esse fenômeno de laicização do Estado: "Com as revoluções democrático-burguesas, com o nascimento do liberalismo, acontece um fato novo: o que poderíamos chamar de laicização do Estado. As instâncias ideológicas de legitimação passam a ser algo ´´privado´´ em relação ao ´´público´´: o Estado já não impõe uma religião, ou uma visão de mundo em geral; a religião deve conquistar consciências, deve confrontar-se, entrar em luta contras outras ideologias, contra outras visões de mundo". COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990, p. 15.
  22. A respeito das relações entre religião e Estado, no que concerne a temas polêmicos julgados pelo STF, consultar VIANNA, Túlio Lima. Debate sobre aborto demonstra influência religiosa no STF. Revista Consultor Jurídico. 24.10.204. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/30783,1 Acesso em 20.07.2006.
  23. MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. A dor a mais. Folha de S. Paulo. 29.10.2004. Grifos nossos.
  24. Idem, Ibidem.
  25. Idem, Ibidem.
  26. Idem, Ibidem.
  27. Idem, Ibidem. Grifos nossos.
  28. Valeria aqui a menção ao caso de Gabriela Oliveira Cordeiro que teve HC prejudicado por falta de objeto, já que a criança nasceu antes da sentença. Consultar "HC Prejudicado". Revista Consultor Jurídico. 05.03.2004. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/24423,1. Acesso em 20.07.2006.
  29. TORRES, José Henrique Rodrigues. Gravidez de alto risco. Abortamento necessário ou terapêutico. Op. cit., p. 240. Grifos nossos.
  30. Já discutimos a eficácia normativa e a consonância de certas normas com a realidade social na qual vigem. Consultar BARBATO JR, Roberto. Considerações sobre o crime de sedução: uma abordagem sociológica. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 814, Agosto/2003, pp. 467-484.
  31. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume V. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 313.
  32. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. Vol. 02. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 80. Grifos nossos.
  33. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Op. cit., p. 141.
  34. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Vol. 01. 2 ed. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1962.
  35. FARIA, Bento de. Código Penal Brasileiro comentado. Parte Especial. Vol. 04. Rio de Janeiro: Distribuidora Record Editora, 1959.
  36. SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Max Limonad, 1959.
  37. É Pierangeli quem coloca o problema da anencefalia como algo ínsito aos tempos modernos e somente existente em razão da capacidade científica para se detectar a ausência do cérebro. Também é o autor partidário da tese da ausência de culpabilidade. Diz ele: "A Justiça Penal, nos últimos tempos, tem se visto à volta com um problema trazido pelos novos recursos postos ao alcance da medicina: o da anencefalia (ausência de cérebro). Normalmente, os juízes, diante de uma prova irrefutável de um feto com ausência de cérebro, têm autorizado o aborto, sob fundamento de ausência de culpabilidade (conduta da gestante não passível de censura). [...] Realmente, com a falta do cérebro, o feto não pode nascer com vida e, se isso ocorrer, a vida será apenas efêmera, pelo que seria desumano obrigar uma mulher arrastar por nove meses uma gestação da qual não poderá resultar uma vida. Cf. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Especial. São Paulo: RT, 2005, p. 122.
  38. Sobre a reforma da legislação penal, consulte-se PIOVESAN, Flavia e PIMENTEL, Silvia. A necessidade de reformar o Código Penal. Folha de S. Paulo, 06.02.2003.
  39. "Reforma do Código Penal (relatório e anteprojeto de lei)". Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/infancia/projetos_de_lei/id2953.htm
  40. LOPES FILHO, Osíres de Azevedo. Decisão de ministro supera insuficiência do Código Penal. 10.07.2004. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/26301,1. Acesso em 20.07.2006. Grifos nossos.
  41. Conforme o dispositivo mencionado "São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Note-se que a separação dos poderes é considerada Cláusula Pétrea (Art. 60, § 4º, III).
  42. NANCI, Luciana. Gestantes de feto sem cérebro não podem mais abortar. Op. cit. Façamos, a título de curiosidade, uma reflexão: se o judiciário legisla é porque o princípio da autonomia de cada poder não foi devidamente respeitado, posto que haveria uma interpenetração de funções dos poderes. É inadmissível, para a preservação da autonomia constitucional e da própria existência do Estado de Direito, que o Judiciário legisle. O caso acima descrito enquadra-se nas reflexões percucientes de Dalmo Dallari sobre a separação dos poderes. Notemos: "A primeira crítica feita ao sistema de separação de poderes é no sentido de que ele é meramente formalista, jamais tendo sido praticado. A análise do comportamento dos órgãos do Estado, mesmo onde a Constituição consagra enfaticamente a separação dos poderes, demonstra que sempre houve uma intensa interpenetração. Ou o órgão de um dos poderes pratica atos que, a rigor, seriam de outro, ou se verifica a influência de fatores extralegais, fazendo com que algum dos poderes predomine sobre os demais, guardando-se apenas a aparência de separação". Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 220. Aqui, note-se bem, não se trata apenas de uma discussão dogmática. Se pretendemos enfatizar a tutela de direitos inalienáveis e de direitos humanos não podemos fugir da necessidade de assinalar a preservação das funções dos órgãos de "poder". Nesse sentido, tanto o Judiciário, quanto o Legislativo, devem ter sua independência garantida. A esse respeito, aliás, Celso Bastos observa com acuidade que "A garantia da independência do Judiciário é requisito mínimo para se poder falar na existência de direitos do indivíduo contra o Estado. Sem essa instância neutra, não envolvida diretamente na questão posta em litígio, torna-se impensável a implantação da justiça". Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 5 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 186.
  43. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Op. cit., p. 140-141.
  44. MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria Geral. Op. cit., p. 91.
  45. Esse também foi um dos fundamentos para autorização do aborto de feto anencéfalo dada por José Henrique Rodrigues Torres, em Campinas, em 1994. Cf. TORRES, José Henrique Rodrigues. Gravidez de alto risco. Abortamento necessário ou terapêutico. Op. cit.
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Sobre o autor
Roberto Barbato Jr

Mestre em Sociologia e Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professor nos cursos de Direito da METROCAMP (Campinas) e UNIP (Limeira).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBATO JR, Roberto. O aborto de fetos anencéfalos.: O direito e a realidade atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1792, 28 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11319. Acesso em: 28 dez. 2024.

Mais informações

Artigo originalmente publicado na Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 865, Novembro de 2007, pp. 434-449.

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