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Vara de família e juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Análise acerca de eventual competência concorrente e sua repercussão sobre outras questões processuais atinentes

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Agenda 31/10/2008 às 00:00

A LMP deixou dúvidas quanto à competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para causas que, até então, pertenciam às Varas de Família.

Sumário: Introdução. 1 Jurisdição e competência: noções preliminares. 2 Competência das Varas de Família. 3 Competência cível dos JVCM. 3.1 Constitucionalidade da instituição dos JVCM, bem como da previsão de competências para tais órgãos, pelo legislador federal. 3.2 Natureza jurídica das medidas protetivas de urgência. 3.3 Competência do JVCM para as medidas protetivas: exclusividade ou concorrência com a competência das Varas de Família? 3.4 Procedimento das medidas protetivas de urgência no JVCM. 4 Competência para as ações principais do Direito de Família, que tenham por causa de pedir fato que configure violência doméstica e familiar contra a mulher. 5 Breves notas sobre outras questões processuais atinentes. 5.1 Litispendência e coisa julgada. 5.2 Validade e natureza da sentença que homologa transação das partes no JVCM. Conclusão. Referências Bibliográficas


Introdução

Em 2006 foi editada a Lei nº 11.340, que passou a vigorar no dia 22 de setembro do mesmo ano. Conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), fruto de uma ação afirmativa em favor da mulher, veio a lume como regulamentação do art. 226, § 8º, da Constituição Federal e como concretização, no plano interno, de compromissos assumidos pelo Brasil em tratados e convenções internacionais dos quais é signatário, bem como após sua condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos, pelo descaso e ineficiência do aparelho estatal em reagir adequadamente à violência doméstica e em assegurar a punição efetiva dos responsáveis pela violação de direitos humanos da mulher.

A LMP procurou criar mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Apesar de seu forte conteúdo social e da boa-vontade do legislador, algumas disposições do referido diploma normativo não estão imunes a questionamentos e críticas, tanto no que diz com sua constitucionalidade como pela presença de atecnias, que podem comprometer sua correta aplicação e, conseqüentemente, sua efetividade no resguardo e proteção dos direitos que busca tutelar.

Mais especificamente no campo do direito processual civil, que interessa ao objeto de estudo deste trabalho, nota-se que a LMP vem trazendo sérias dúvidas entre os operadores do Direito acerca da correta equalização de vários problemas decorrentes de sua aplicação, notadamente quanto à competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVCM) para causas que, até então, pertenciam ao âmbito de atribuições das Varas de Família. A discussão é assaz relevante, uma vez que há o risco de que interpretações equivocadas sejam fontes de nulidades processuais, que, reflexamente, atinjam direitos substanciais da mulher vitimada.

Outrossim, deve-se enfatizar que a interpretação e aplicação da LMP, embora deva considerar seus fins sociais e as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar (como vem enunciado em seu art. 4º), não pode se dissociar do respeito a postulados fundamentais de ordem constitucional, tais os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, bem como da razoabilidade.

Nosso objetivo é examinar a competência cível dos JVCM, com vistas a apurar se o legislador federal poderia ter estabelecido causas de competência de juízo estadual; se estamos diante de competência absoluta em razão da matéria; se a competência é exclusiva ou concorrente com a das Varas de Família, para as medidas protetivas de urgência e para as ações de divórcio, separação judicial, reconhecimento e dissolução de união estável etc., em que fato configurador de violência doméstica e familiar contra a mulher conste como causa de pedir. O itinerário a ser percorrido passará por breve digressão a respeito de jurisdição e competência, após o que ingressaremos no cerne de nosso estudo.


1. Jurisdição e competência: noções preliminares

Na definição de CHIOVENDA, jurisdição é "a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva" [01].

Destacam CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO que essa função estatal pode ser encarada sob três aspectos: poder, função e atividade [02]:

Como poder, é manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal).

No Brasil, a tarefa jurisdicional é desempenhada precipuamente pelo Poder Judiciário. Como uma das funções inerentes à soberania do Estado, a jurisdição é logicamente una, não comportando divisões. Porém, tendo em vista a enorme quantidade e variedade de causas que podem ser submetidas ao Judiciário, para efeito de racionalização de trabalho e melhor distribuição da justiça, o exercício dessa função é compartimentado entre os vários organismos que integram a estrutura judiciária nacional, conforme determinados critérios.

A competência é exatamente o resultado dessa divisão racional de tarefas: a definição do conjunto de causas em que um dado juiz ou tribunal exercerá a jurisdição. Observe-se que é equivocado afirmar, como LIEBMAN, que a competência seria a "medida da jurisdição", ou "a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão" [03]. De fato, como emanação do poder estatal, que é uno, a jurisdição não pode ser segmentada, exercendo cada órgão judicial, dentro de sua esfera de competência, jurisdição plena, como personificação do Estado em sua função pacificadora de conflitos através do processo.

De larga aceitação é o tríplice critério, concebido por CHIOVENDA, de definição da competência: o objetivo, o territorial e o funcional [04]. O primeiro atende a peculiaridades ligadas à natureza ou ao valor da causa; o segundo considera dados territoriais como o domicílio da parte, o local da situação do bem, ou do cumprimento da obrigação ou da ocorrência de um fato; o terceiro põe em evidência as diferentes e especiais funções exercidas por distintos órgãos jurisdicionais, de igual ou diversa hierarquia, dentro de um mesmo processo. Porém, há outros critérios, como o relacionado aos sujeitos da demanda.

Atendendo ora a um, ora a outro, ora a uma conjugação dos critérios citados, as normas de determinação da competência encontram-se inseridas em variados diplomas legais.

Na Carta Maior prevê-se o delineamento fundamental da estrutura judiciária nacional. De fato, no Capítulo III de seu Título IV, estão previstos os órgãos de superposição (STF e STJ) e os diversos aparelhos componentes do Judiciário Nacional: Justiça Trabalhista, Eleitoral, Militar, Federal e Estadual, com suas respectivas competências (à exceção das Justiças Estaduais, cuja competência, residual, ficou reservada à disciplina das respectivas Constituições e leis de organização judiciária). Entre essas Justiças, as três primeiras são consideradas especiais, em contraposição à Justiça Federal e à Estadual, tidas por comuns. Quanto a estas, a Federal pode ser encarada como especial no âmbito da jurisdição comum, ao passo que a Estadual constitui verdadeira jurisdição ordinária, à qual incumbem todas as matérias não atribuídas pela Constituição Federal aos demais aparelhos autônomos.

Atendida essa configuração básica, normas outras de diversa hierarquia, provenientes da União ou dos Estados, surgem para complementar o trabalho de determinação da competência: leis complementares ou ordinárias federais (especialmente CPC e CPP), Constituições estaduais, leis de organização judiciária e regimentos internos dos tribunais. Com esta vasta normatização, apura-se o foro e o tribunal ou juízo competentes para a causa.

A competência de Justiça [05], a ratione materiae, a ratione personae e a funcional revestem-se de caráter absoluto, pois fixadas em atenção ao interesse público. A competência absoluta não admite modificação por vontade das partes ou por conexão; pode ser argüida por qualquer interessado, ou reconhecida de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição.

Como regra geral, são relativas a competência ratione loci [06]e a pertinente ao valor da causa [07], uma vez que estabelecidas preponderantemente no interesse das partes. Características da competência relativa são: a possibilidade de modificação ou prorrogação por vontade das partes (eleição de foro e ausência de oposição tempestiva de exceção de incompetência) ou por algum motivo legal (conexão e continência); somente é alegável pelo réu, não podendo normalmente ser reconhecida de ofício [08].

A par das causas que alteram a competência relativa, mencionadas acima, as quais ampliam a esfera de atribuições de um órgão jurisdicional para demandas que, em princípio, não lhe competiriam, há também causas de fixação da competência, quais sejam, a distribuição e a prevenção, que determinam, dentre os vários órgãos jurisdicionais em tese competentes para a causa, aquele ao qual ela será incumbida e aqueles que serão excluídos.


2. Competência das Varas de Família

Na organização judiciária da Justiça ordinária de primeira instância (Estados e Distrito Federal), costuma-se prever a existência de juízos especializados em razão da matéria, nos foros que contam com mais de um órgão jurisdicional e elevado movimento forense. A competência assim determinada é de ordem absoluta. Exemplo desses juízos com competência privativa são as Varas de Família, incumbidas das causas alusivas ao direito de família, como as ações de estado (separação judicial, divórcio, investigação de paternidade), de guarda de menores, de alimentos etc.

A novel Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal e dos Territórios [09], v.g., estipula o rol de demandas sujeitas à competência das Varas de Família em seu art. 27:

Art. 27. Compete ao Juiz da Vara de Família:

I – processar e julgar:

a) as ações de estado;

b) as ações de alimentos;

c) as ações referentes ao regime de bens e à guarda de filhos;

d) as ações de petição de herança, quando cumuladas com as de investigação de paternidade;

e) as ações decorrentes do art. 226 da Constituição Federal;

II – conhecer das questões relativas à capacidade e curatela, bem como de tutela, em casos de ausência ou interdição dos pais, ressalvada a competência das Varas da Infância e Juventude e de Órfãos e Sucessões;

III – praticar os atos de jurisdição voluntária necessários à proteção de incapazes e à guarda e administração de seus bens, ressalvada a competência das Varas da Infância e da Juventude, de Órfãos e Sucessões e de Entorpecentes e Contravenções Penais;

IV – processar justificação judicial relativa a menores que não se encontrem em situação descrita no art. 98 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;

V – declarar a ausência;

VI – autorizar a adoção de maiores de 18 (dezoito) anos.

Por força dos arts. 108 e 800 do CPC, as Varas de Família são funcionalmente competentes para as ações cautelares, antecedentes ou incidentais, relacionadas às causas principais submetidas à sua esfera de competência pelas normas de organização judiciária.


3. Competência cível dos JVCM

A Lei nº 11.340/06 dispõe, em seu art. 14, que os JVCM são "órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal (...) para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher". À primeira vista, depara-se com um juízo especializado cuja competência é determinada em função da matéria e da pessoa – competência absoluta, portanto.

A LMP não especifica quais as causas que se enquadram na competência cível do JVCM, salvo quanto aos provimentos jurisdicionais urgentes listados nos arts. 22 a 24. Todavia, pela literalidade do supracitado art. 14, aparentemente se compreenderiam na competência do juízo especializado toda e qualquer causa que tivesse, como causa de pedir, fato que configure violência doméstica ou familiar contra a mulher. Esta, contudo, não é a melhor exegese, conforme será demonstrado mais adiante.

3.1. Constitucionalidade da instituição dos JVCM, bem como da previsão de competências para tais órgãos, pelo legislador federal

Questão primordial e antecedente que se coloca é acerca da constitucionalidade de o legislador federal assentar a competência de um juízo da Justiça ordinária dos Estados ou do Distrito Federal (especificamente no caso deste último ente federativo, sem que tenha havido projeto de lei, nesse sentido, de iniciativa privativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios).

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Quando da tramitação na Câmara dos Deputados do PL nº 4559/2004, que deu origem à LMP, a Deputada Jandira Feghali, da Comissão de Seguridade Social e Família, ofereceu substitutivo no qual se obrigava à criação dos JVCM nos Estados e no Distrito Federal. Já na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, mediante voto em separado do Deputado Antônio Carlos Biscaia, essa imposição foi retirada do texto, por representar indevida ingerência na competência privativa do Poder Judiciário para projetos de lei sobre organização judiciária. Assim, na redação final do projeto, restou apenas facultada a criação dos juizados, tanto aos Estados como à União (no Distrito Federal e nos Territórios).

Essa justa preocupação, de evitar a invasão de competências constitucionais de outros entes federativos e do Poder Judiciário, levou o legislador federal, em outros documentos legislativos imbuídos de nítido caráter social e protetivo, a ter o cuidado de apenas facultar a criação de juízos especializados. É o que se verifica, v.g., no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 145, e no Estatuto do Idoso, em seu art. 70.

Mas o problema não residia somente na indevida exigência da criação dos JVCM. Também padece da mesma ilegitimidade, no confronto com a Carta Constitucional, a determinação pelo legislador federal das causas que competem àquele juizado, que, lembre-se, é juízo pertencente à organização judiciária da Justiça ordinária estadual ou do DF.

Dentro da complexa repartição de competências própria do pacto federativo brasileiro, que é efetuada pela Constituição Federal, outorga-se a cada um dos entes políticos autonomia, a qual se assenta sobre dois elementos basilares: a existência de órgãos governamentais próprios e a posse de competências exclusivas [10]. Outrossim, consagra-se no Brasil a independência orgânica e harmonia dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Ora, a Carta de 1988 estatui, em seu art. 25, que "Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observando-se os princípios desta Constituição". Na mesma esteira, dispõe no art. 125 que "Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição" (caput) e que "A competência dos Tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça" (§ 1º). Por fim, no art. 96, firma que compete privativamente aos Tribunais propor ao Poder Legislativo respectivo a criação de novas varas judiciárias (inciso I, alínea d) e a alteração da organização e da divisão judiciárias (inciso II, alínea d).

As normas de organização judiciária disciplinam essencialmente a criação e a estrutura dos órgãos judiciários e seus auxiliares. No que respeita à Justiça ordinária dos Estados e do DF, são estas normas, por conseguinte, que criam os diversos juízos e estabelecem suas respectivas competências, por vezes especializando-os em razão da natureza da causa. [11]

Corolário do que até aqui expusemos é que somente o legislador estadual [12] estaria legitimado a criar JVCM e dispor sobre sua competência, mediante projeto de lei de iniciativa privativa do Tribunal de Justiça correspondente, sob pena de ofensa à autonomia dos entes políticos federados e à separação de Poderes. Disso resulta que a Lei nº 11.340/06, ao indicar determinadas causas como de competência de tais juizados, o faz como mera "carta de recomendação" aos Tribunais de Justiça e correspondentes Legislativos. Pelos mesmos fundamentos, é inconstitucional o art. 33 da LMP que, até a estruturação dos JVCM, determinou que as Varas Criminais acumulariam as competências cível e criminal para processar e julgar as causas decorrentes dessa lei.

Já se alegou, na defesa do art. 33 da LMP, em raciocínio que também serviria para sustentar a suposta constitucionalidade da fixação de competências de juízo estadual pelo legislador federal, que situação semelhante teria ocorrido quando a Lei federal nº 9.839/99 afastou os crimes militares da incidência da Lei dos Juizados Especiais, assim como quando a Lei federal nº 9.278/96 atribuiu ao juízo de família, em seu art. 9º, a competência para causas relacionadas à união estável. [13]

O argumento, todavia, não procede. Referidas normas, ao contrário do que ocorre no art. 33 da Lei nº 11.340/06, não estão inquinadas de qualquer inconstitucionalidade, não porque o legislador federal possa dispor sobre competência restrita à organização judiciária dos Estados, mas porque sua fonte de legitimação está na própria Lei Maior.

De fato, à União compete legislar privativamente sobre direito penal, em consonância com o art. 22, inciso I, da Magna Carta. Por sua vez, o art. 24 do Texto Constitucional elenca, no rol de competências legislativas concorrentes da União, Estados e Distrito Federal, a "criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas" (inciso X) e "procedimentos em matéria processual" (inciso XI). Como se sabe, no âmbito da legislação concorrente, a União edita normas gerais, restando aos Estados e DF a possibilidade de suplementá-las, ou mesmo de exercer a competência legislativa plena na falta de normas gerais. No mesmo compasso, o art. 98, § 1º, da CF impõe à União, no DF e nos Territórios, e aos Estados a criação de juizados especiais, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei (rectius: lei federal), a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau de jurisdição.

Assim, compete à lei federal definir o que são infrações de menor potencial ofensivo, como o fez a Lei nº 9.099/95 em seu art. 61, e quais infrações se excluem do âmbito de aplicação da lei dos Juizados Especiais, como o fez a Lei nº 9.839/99.

Cabe destacar que são exatamente as normas dantes invocadas do art. 24, incisos X e XI, que autorizam o legislador federal, no art. 3º da Lei nº 9.099/95, a elencar as causas cíveis de competência dos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal.

No que respeita ao art. 9º da Lei federal nº 9.278/96, tal dispositivo nada mais fez do que exprimir o óbvio. Ainda que tal disposição jamais tivesse existido em nosso ordenamento jurídico, a competência para as causas relacionadas à união estável necessariamente pertenceria às Varas de Família, a partir do momento em que a Carta Republicana, em seu art. 226, § 6º, reconheceu a união estável como entidade familiar.

Encerrada tal discussão, passaremos à análise de problema que exige uma solução adequada. Vários Tribunais de Justiça, logo que editada a LMP e imbuídos do louvável propósito de garantir efetividade à nova lei, criaram JVCM ou atribuíram sua competência a juízos já existentes, por meio de atos administrativos, sem o esperado encaminhamento de projetos de lei ao respectivo Poder Legislativo para modificação da organização judiciária. No Distrito Federal, por exemplo, foi editada a Resolução nº 07/2006, que criou uma Vara de JVCM na circunscrição especial judiciária de Brasília e, nas demais circunscrições, imputou aos Juizados Especiais Criminais instalados a competência do novo juízo da LMP. Seria constitucional a criação de juízo, ou a modificação de sua competência, mediante resolução administrativa, e não por lei?

Neste passo, cumpre ressaltar que o STF, guardião supremo e intérprete máximo da Constituição Federal, vem adotando entendimento no sentido da admissibilidade da criação de juízos especializados ratione materiae por via de resolução dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, uma vez que tal assunto não estaria sujeito à cláusula da reserva de lei. A propósito, confira-se o seguinte julgado [14]:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. POSTULADO DO JUIZ NATURAL. ESPECIALIZAÇÃO DE COMPETÊNCIA (RATIONE MATERIAE). RESOLUÇÃO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

1. Alegação de possível violação do princípio do juiz natural em razão da resolução baixada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.

(...)

4. O mérito envolve a interpretação da norma constitucional que atribui aos tribunais de justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, em consonância com os limites orçamentários, a alteração da organização e divisão judiciárias (CF, arts. 96, II, d, e 169).

5. O Poder Judiciário tem competência para dispor sobre especialização de varas, porque é matéria que se insere no âmbito da organização judiciária dos Tribunais. O tema referente à organização judiciária não se encontra restrito ao campo de incidência exclusiva da lei, eis que depende da integração dos critérios preestabelecidos na Constituição, nas leis e nos regimentos internos dos tribunais.

6. A leitura interpretativa do disposto nos arts. 96, I, a e d, II, d, da Constituição Federal, admite que haja alteração da competência dos órgãos do Poder Judiciário por deliberação do tribunal de justiça, desde que não haja impacto orçamentário, eis que houve simples alteração promovida administrativamente, constitucionalmente admitida, visando a uma melhor prestação da tutela jurisdicional, de natureza especializada.

7. Habeas corpus denegado.

Conquanto seja juridicamente questionável esse posicionamento, o fato é que, de conformidade com a postura assumida pelo STF, estão os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais legitimados a, por meio de resolução, criar juízos especializados ou modificar a competência de juízos já existentes, desde que isto não represente impacto orçamentário. Isto significa que os JVCM podem ser criados administrativamente pelos Tribunais de Justiça, que, entretanto, devem especificar nos atos de criação quais as causas de competência desses juízos especializados da mulher, sob pena de sua incompetência absoluta para tratar de causas que, pelas leis de organização judiciária, estiverem afetas em razão da matéria a outros juízos especializados, como o de família.

3.2 Natureza jurídica das medidas protetivas de urgência

A Lei nº 11.340/06, como já asseverado, trouxe um elenco de providências emergenciais que podem ser deferidas pelo juiz em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, conquanto se deva advertir que o rol não é exaustivo. São de duas ordens: as que obrigam o agressor (art. 22) e as que se dirigem à ofendida (arts. 23 e 24):

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV – determinar a separação de corpos.

Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Vários autores têm salientado a feição cautelar das medidas protetivas de urgência [15], havendo apenas certa discussão acerca de seu aspecto cível ou penal. Adiantando nosso posicionamento, consideramos que tais medidas constituem tutelas de urgência, assumindo todas a conformação de provimentos cautelares. Justificamos nos parágrafos seguintes nosso posicionamento.

A doutrina distingue as atividades que se realizam nos processos (ou fases) de conhecimento e execução, de um lado, e aquela que se exerce no processo cautelar, de outro, em face da aptidão satisfativa das primeiras. Na lição de BARBOSA MOREIRA [16]:

A atividade cognitiva, tendente à formulação da norma jurídica concreta que deve reger determinada situação, e a execução, por meio da qual se atua, praticamente, essa norma jurídica concreta, têm um denominador comum: visam uma e outra à tomada de providências capazes de, conforme o caso, preservar ou reintegrar em termos definitivos a ordem jurídica e o direito subjetivo ameaçado ou lesado. Por isso se diz que constituem modalidades de tutela jurisdicional imediata ou satisfativa.

A ambas se contrapõe, em tal perspectiva, o processo cautelar, cuja finalidade consiste apenas, segundo a concepção clássica, em assegurar, na medida do possível, a eficácia prática de providências quer cognitivas, quer executivas. Tem ele, assim, função meramente instrumental em relação às duas outras espécies de atividade, e por seu intermédio exerce o Estado uma tutela jurisdicional mediata.

Assim, enquanto os processos (ou fases) de conhecimento e de execução se desenvolvem visando à própria realização do direito material, o processo cautelar se voltaria para uma providência capaz de garantir um daqueles processos, ditos principais, contra os riscos produzidos pelo tempo que possam comprometer seu resultado futuro. [17] Além do mais, os processos ditos satisfativos tendem a uma decisão de mérito marcada pela definitividade, ao contrário do processo cautelar, cuja decisão é provisória e não transita materialmente em julgado.

Costuma-se relacionar como características das medidas cautelares, de modo geral [18]: a) instrumentalidade hipotética, consistente na sua disposição para garantir a efetividade do processo principal que é instrumento, por seu turno, apto a permitir a satisfação do possível direito material da parte [19]; b) referibilidade, ou seja, a cautelar se refere a uma situação de direito substancial que se pretende proteger; c) provisoriedade [20], entendida como sua eficácia limitada no tempo; d) revogabilidade; e) modificabilidade; f) fungibilidade, isto é, a possibilidade de ser substituída por outra medida assecuratória.

A medida cautelar pode ser preparatória ou incidental, conforme seja anterior ou concomitante à demanda principal. Por requisitos da cautelar tem-se o fumus boni iuris e o periculum in mora, expressões designativas da probabilidade do direito material alegado e do risco de dano decorrente da natural morosidade do processo principal.

Consoante anotam NERY e NERY, o processo cautelar é autônomo, procedimentalmente, em relação ao principal, embora seja dele dependente em seu caráter ontológico, em razão do teor do art. 796 do CPC. [21]

A tutela cautelar se insere, ao lado da tutela antecipatória, na categoria mais ampla das tutelas de urgência, que consagram o direito constitucional à efetividade da tutela jurisdicional. São tutelas emergenciais e provisórias, baseadas em cognição sumária, que têm por escopo essencialmente afastar o perigo que o tempo pode ocasionar à efetividade do processo no qual haverá uma decisão definitiva e fundada em cognição exauriente. A doutrina diferencia ambas as modalidades, como se constata em THEODORO JÚNIOR [22]:

As medidas cautelares são puramente processuais. Preservam a utilidade e eficiência do provimento final do processo, sem, entretanto, antecipar resultados de ordem do direito material para a parte promovente (são apenas conservativas). Já a tutela antecipatória proporciona à parte medida provisoriamente satisfativa do próprio direito material cuja realização constitui objeto da tutela definitiva a ser provavelmente alcançada no provimento jurisdicional de mérito.

BEDAQUE, em posição minoritária, considera que não há motivo plausível para tratamento diverso à tutela cautelar e à tutela antecipatória, sendo que esta inclusive poderia ter-se por compreendida no conceito daquela, visto que ambas se destinam a assegurar o resultado útil do processo [23]:

Nessa linha, as tutelas provisórias devem ser reunidas e receber o mesmo tratamento. Inexiste razão para a distinção entre a tutela cautelar conservativa e a antecipação dos efeitos da tutela de mérito. Ambas são provisórias e instrumentais, pois voltadas para assegurar o resultado final. São técnicas processuais com idêntica finalidade e estrutura. Não há por que distingui-las. (...)

Aliás, mesmo quem nega à antecipação natureza cautelar acaba afirmando haver semelhança entre as medidas autorizadas pelos arts. 273 e 798, pois ambas são espécies do gênero tutelas de urgência e se submetem aos mesmos princípios. Têm idêntica finalidade, visto que se destinam a evitar o dano. São estruturadas de maneira igual, pois provisórias, passíveis de revogação e modificação, tudo em razão da instrumentalidade. Por fim, a sumariedade da cognição se verifica em ambas, embora se possa exigir maior intensidade em uma do que em outra.

Somos levados a concordar em parte com o processualista citado. É indiscutível que há uma diferença intrínseca entre tutela antecipada e cautelar, que reside especialmente no caráter satisfativo ostentado pela primeira. Contudo, inexiste razão plausível para tratamento diferenciado das tutelas de urgência. Em abono dessa tese, observe-se que o § 7º do art. 273 do CPC, acrescido pela Lei nº 10.444/02, estabeleceu verdadeira fungibilidade entre referidas tutelas sumárias, no bojo do processo de conhecimento, dispensando ação própria para concessão do provimento cautelar, ainda que excepcionalmente. Por outro lado, nosso sistema processual contempla hipóteses de tutela antecipatória postulada não interinamente em um processo de conhecimento, mas como objeto principal de um processo cautelar, como se dá com a medida provisional do art. 888, inciso III, do CPC. [24]

Voltando nosso enfoque às medidas previstas nos arts. 22 a 24 da Lei nº 11.340/06, é fácil verificar que se cuidam de típicas tutelas de urgência, sendo sintomática a própria denominação dessas providências. São baseadas em cognição com o traço da sumariedade, além de serem revogáveis, modificáveis e substituíveis por outras (art. 19, §§ 2º e 3º, da LMP). Por outro lado, como decorrência da própria cognição superficial, em regra são provisórias (ou temporárias), exigindo o oportuno ajuizamento da demanda principal. [25] É forçoso acentuar esta conclusão, uma vez que há opiniões apregoando que as medidas protetivas de urgência funcionariam sempre como liminares satisfativas, dispensando um processo principal [26].

Algumas das providências sob comento ostentam nítido viés cautelar, outras se revestem de verdadeira feição antecipatória. Há também umas poucas que revelam caráter satisfativo e definitivo. Para efeito de sistematização de seu regime, é conveniente tratar a todas sob a roupagem de medidas cautelares. Aliás, na redação original do PL nº 4559/2004, tais medidas eram expressamente denominadas cautelares, vindo a ser cunhadas como medidas protetivas de urgência no substitutivo apresentado pela Deputada Jandira Feghali; contudo, a alteração redacional não teve, como não poderia ter, o condão de modificar a natureza jurídica dos provimentos ora examinados.

Considerando genericamente que as medidas cautelares podem revestir-se de caráter cível ou criminal, conforme a natureza do processo ou do provimento final que visam resguardar, entendemos que assumem natureza cível as medidas protetivas arroladas no art. 22, incisos II, IV e V; no art. 23, incisos III e IV; e no art. 24, em todos os seus incisos. [27] Não se pode negar, porém, que algumas revelam caráter misto, como a do art. 22, inciso II, que também é uma medida cautelar penal substitutiva da prisão preventiva, a qual inclusive já era prevista anteriormente para o processo penal no art. 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95, com a redação dada pela Lei nº 10.455/02.

A LMP, ao tratar das medidas protetivas de urgência civis, não inaugurou uma nova categoria processual. Boa parte das providências já era prevista genericamente no CPC, no Livro III – Do Processo Cautelar, seja como cautelares inominadas (art. 799: "No caso do artigo anterior, poderá o juiz, para evitar o dano, autorizar ou vedar a prática de determinados atos, ordenar a guarda judicial de pessoas e depósito de bens e impor a prestação de caução"), seja como procedimentos cautelares específicos (alimentos provisionais, arts. 852 a 854; a entrega de bens de uso pessoal do cônjuge e dos filhos, art. 888, I; o afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal, art. 888, VI; a guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visita, art. 888, VII). [28] Quanto à separação de corpos, o Código Civil já a previa nos arts. 1.562 e 1.585, como medida cautelar.

Cabe frisar que também não se criou um procedimento novo para essas tutelas de urgência. Com efeito, ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicam-se o CPC, o CPP, o ECA e o Estatuto do Idoso, conforme remissão do art. 13 da LMP. Não tendo a nova lei criado rito próprio para as medidas protetivas de urgência, incidem as normas do CPC atinentes ao rito cautelar. É certo que houve inovações na fase inicial do procedimento, como a capacidade postulatória da vítima, a redução a termo de seu pedido na delegacia, a possibilidade de um só juízo apreciar pedidos de cautelares civis e penais. Todavia, quanto ao mais, prevalecem as disposições pertinentes do CPC, urgindo ressaltar que o simples deslocamento da competência para a cautelar, de um juízo cível ou de família para o JVCM, não altera o procedimento daquela.

O que se defende aqui não compromete a aplicação da LMP. Longe disso, nossa preocupação é harmonizar direitos fundamentais em franca colidência: os direitos da mulher à vida, à integridade física, à proteção do patrimônio, à efetividade da tutela jurisdicional, de um lado; e, de outro, os direitos do suposto agressor à segurança jurídica, ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. Todos estes direitos têm igual estatura constitucional e devem ser ponderados, tendo como fiel da balança o princípio da proporcionalidade, em ordem a evitar o aniquilamento total de uns em prol de outros.

3.3 Competência do JVCM para as medidas protetivas: exclusividade ou concorrência com a competência das Varas de Família?

Criados que sejam os JVCM pelas normas de organização judiciária, uma vez que dispõem de competência cível e criminal, é evidente que se inserem no âmbito de sua competência as medidas protetivas de urgência de natureza civil discriminadas nos arts. 22 a 24 da Lei nº 11.340/06. Com efeito, não faria sentido os Tribunais de Justiça instituírem esses juízos de competência híbrida sem que lhe competissem quaisquer demandas cíveis.

Entretanto, nada impede que a mulher opte por ajuizar a demanda cautelar em uma Vara de Família, que não deixou de ostentar competência para medidas assecuratórias relacionadas às demandas que lhe são afetas pelas leis de organização judiciária.

Com efeito, a LMP tem por escopo facilitar a proteção dos direitos da ofendida, inclusive possibilitando que requeira medidas protetivas logo ao registrar a ocorrência policial, que serão reduzidas a termo na delegacia e enviadas celeremente ao JVCM. Contudo, pelas mais variadas razões, pode interessar à mulher que a cautelar seja apreciada pelo juízo de família. De fato, pode ser que deseje maior resguardo de sua intimidade, o que será mais efetivamente observado nesse juízo (art. 155, inciso II, do CPC); que seu intuito, ao registrar a ocorrência policial, fosse apenas de mera documentação para efeito, v.g., de pedir a separação de corpos, mas que não tenha interesse na persecução criminal; que já esteja em tramitação, na Vara de Família, a ação principal, tendo o juiz e o promotor desse juízo conhecimento da realidade que cerca a ofendida. Outrossim, o fato configurador de violência doméstica e familiar, em face da amplitude conceitual do art. 4º, pode não configurar infração penal, o que tornaria ilógico acionar o JVCM.

Deve-se entender, pois, que o JVCM e a Vara de Família dispõem de competência concorrente para as medidas protetivas de urgência, podendo a vítima eleger um desses dois juízos especializados, a critério seu, para as providências acautelatórias. [29] A nosso ver, no tocante às medidas protetivas de urgência, deverá ser observada a possibilidade de a ofendida, mesmo sem tê-lo feito na delegacia, formular oralmente o pedido diretamente em um daqueles juízos, o qual será reduzido a termo. Para os demais atos, inclusive eventuais audiências, deverá a vítima estar acompanhada de advogado ou defensor público, nos termos do art. 27 da Lei nº 11.340/06.

3.4 Procedimento das medidas protetivas de urgência no JVCM

A LMP muniu a mulher vítima da violência doméstica e familiar de meios mais eficazes no intuito de obter uma tutela jurisdicional efetiva e tempestiva. De ver que, comparecendo à delegacia de polícia, seu pedido de medidas protetivas é reduzido a termo e remetido em 48 horas, em expediente apartado, ao juiz, que deve decidir em igual prazo (arts. 12, inciso III, e 18, inciso I). Com isto, permite-se que, em pouco mais de 96 horas (considerados os trâmites cartorários), se decida, por exemplo, sobre o afastamento do agressor do lar comum e sobre alimentos provisórios em favor da mulher e de seus filhos menores ou inválidos, agilidade esta não permitida pelo sistema anterior.

Contudo, resguardada a mulher ofendida e seus filhos, deve-se assegurar a bilateralidade da audiência. Da cláusula do due process of law emanam os princípios do contraditório e da ampla defesa, os quais pressupõem não somente a informação sobre a existência do processo e sobre seus atos e termos, mas também a faculdade de alegar, de produzir a prova e a contra-prova, de se pronunciar sobre estas, de procurar influir no convencimento do juiz. Tal é a força dos preceitos invocados que modernamente se fala, sob determinado ângulo, em processo como procedimento em contraditório. [30]

Ora, caso não se assegure o contraditório e defesa ao suposto agressor no concernente às medidas protetivas de urgência, poderá ele ser surpreendido com um provimento judicial grave e danoso à sua pessoa ou seu patrimônio, sem dispor de meios eficazes para se defender. Já se afirmou que tais princípios não restariam violados, porque o pretenso agressor poderia recorrer da medida prejudicial e, na ação penal, uma vez citado, seria oportunizada sua defesa. Esta assertiva constitui grave equívoco. A uma, porque no recurso manejado contra o deferimento de uma medida protetiva cível não caberá a produção de provas, muito menos testemunhal. A duas, porque são extremamente comuns os inúmeros pedidos de prorrogação de prazo para conclusão do inquérito policial, que muitas vezes se arrasta por anos; concedida uma medida protetiva de urgência em desfavor do suposto agressor, poderia ele, por exemplo, ser afastado coativamente do lar ou privado do contato com os filhos por tempo indefinido, sem qualquer possibilidade de reversão da medida. A três, porque no processo criminal, se instaurado, o réu não poderá se defender de medidas de cunho cível, como separação de corpos, alimentos provisionais ou provisórios etc.

Assim, contundente e sem reparos é a advertência de CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO no que diz com o respeito ao contraditório, mesmo nas tutelas de urgência [31]:

O contraditório não admite exceções: mesmo nos casos de urgência, em que o juiz, para evitar o periculum in mora, provê inaudita altera parte (CPC, arts. 929, 932, 937, 813 ss.), o demandado poderá desenvolver sucessivamente a atividade processual plena e sempre antes que o provimento se torne definitivo.

Em virtude da natureza constitucional do contraditório, deve ele ser observado não apenas formalmente, mas sobretudo pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas que não o respeitem.

É certo que, no mesmo expediente de medidas protetivas de urgência, pode ocorrer o pedido concomitante de cautelares civis que seguem o procedimento cautelar comum, ao lado de outras que exigem rito especial, segundo o regramento do CPC. Também natural é que sejam tratadas, no bojo desse mesmo feito, cautelares de cunho penal, como a proibição de aproximação e contato com a ofendida, lembrando-se que o CPP não prevê citação nem defesa para as cautelares penais, embora se admita na praxe forense o pedido de reconsideração nos autos em que foram determinadas.

Diante dessa verdadeira miscelânea, sugerimos a adoção do procedimento cautelar comum, sempre que houver requerimento de alguma medida protetiva de índole cível. É que, ainda quando haja pleito de apenas uma providência, e esta seja de rito especial, será sempre possível ao juiz substituí-la em razão da fungibilidade por outra (ou conceder também uma segunda medida) que tenha rito comum ou diverso rito especial. Adotado o procedimento comum cautelar, a defesa eventualmente apresentada pelo requerido será encarada como contestação, quanto às cautelares cíveis, e como pedido de reconsideração, no tocante às cautelares penais. Porém, se não for requerida qualquer providência cível, independentemente de eventuais provimentos na seara criminal, será dispensável a citação do réu, ato de comunicação que não se verifica nas cautelares de natureza penal.

Obviamente, deverá haver certo abrandamento na aplicação deste rito, tendo em vista os fins sociais da LMP e as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, bem como a circunstância de que a aplicação das normas do CPC não pode conflitar com o estabelecido naquele diploma legal, tudo em consonância com seus arts. 4º e 13. Assim é que, especialmente quando as medidas protetivas de urgência civis forem requeridas pela ofendida sem assistência de advogado, não se imporá a observância dos requisitos da petição inicial da cautelar elencados no art. 801 do CPC, nem ficará a mulher, obtido um provimento liminar, obrigada a promover a citação do requerido.

Merecem relevo duas novidades trazidas pela LMP: o jus postulandi conferido à mulher para o pedido das medidas protetivas de urgência, isto é, para deflagrar o processo cautelar (LMP, arts. 12, § 1º, 19, caput e § 3º, e 27, in fine); e a atribuição de legitimação extraordinária ao Ministério Público para requerer tais providências cautelares em benefício da mulher ou mesmo de seus filhos menores ou inválidos (art. 19, caput e § 3º). Como já ressaltado, não são exigíveis maiores formalidades para o pedido desses provimentos emergenciais, podendo o requerimento, se provier da ofendida, ser formulado oralmente na delegacia ou no próprio JVCM.

Recebido o expediente ou a petição com o requerimento de medidas protetivas de urgência cíveis, pode o juiz: a) presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, deferir liminarmente as medidas protetivas postuladas (art. 19, § 1º, da LMP; arts. 804 e 889, parágrafo único, do CPC) ou aplicar outras mais eficazes, com fundamento no princípio da fungibilidade (arts. 19, § 2º, e 22, § 1º, da LMP); b) designar audiência de justificação prévia, para colher maiores dados a respeito da situação (art. 804 do CPC); c) indeferir de plano as medidas protetivas, caso verifique prima facie a ausência da plausibilidade do direito ou do perigo na demora.

Partindo do pressuposto de que, na hipótese do parágrafo antecedente, estamos diante de um verdadeiro processo cautelar, deferidas ou não as providências solicitadas, deve o réu ser citado para, caso queira, defender-se em 05 dias (art. 802 do CPC). O prazo fluirá da juntada aos autos do mandado de execução da medida de urgência, concedida liminarmente ou após justificação prévia; ou da juntada do mandado citatório, quando indeferidas as providências protetivas ou se a efetivação das medidas deferidas não implicar seu conhecimento prévio pelo réu (art. 802, parágrafo único).

Não sendo apresentada contestação, incide a revelia com seu efeito material de presunção da veracidade dos fatos alegados pelo requerente (arts. 803 do CPC), impondo-se o julgamento antecipado. [32] Ofertada tempestivamente a peça defensiva, e havendo necessidade de produção de prova oral, o juiz designará audiência de instrução e julgamento (art. 803, parágrafo único, do CPC), proferindo oportunamente sentença.

Em conformidade com o § 4º do art. 22 da LMP, na efetivação das providências protetivas de urgência que obrigam o agressor, aplica-se o disposto no caput e §§ 5º e 6º do art. 461 do CPC, o que autoriza o juiz, por exemplo, a determinar que o marido não se aproxime da esposa agredida num raio de 300 metros, sob pena de multa por cada descumprimento comprovado, isto sem prejuízo da responsabilidade criminal pela desobediência à ordem judicial e da possibilidade de decretação da prisão preventiva.

O procedimento comentado é de aplicar-se também às cautelares que possuam natureza mista, como o afastamento do agressor do lar comum. Se tal medida fosse requerida no juízo de família, é inquestionável que seguiria o rito cautelar comum (arts. 888, inciso VI, c/c 889, caput, do CPC). Não há razão plausível para que, pela simples circunstância de ser requerida no JVCM, o requerido não seja citado nem tenha oportunidade de defesa.

A decisão que concede ou indefere medidas protetivas de urgência, liminarmente ou após justificação prévia, ou a que revê ou substitui medidas no curso do processo cautelar, reveste-se de natureza interlocutória. É passível de agravo de instrumento no tocante às providências de caráter cível (art. 522 do CPC). Quanto às medidas protetivas de índole penal ou mista, será impugnável, conforme o caso, por apelação (art. 593, inciso II, do CPP) ou mediante habeas corpus. Pode-se considerar a hipótese comentada como de exceção ao princípio da unirrecorribilidade das decisões judiciais, visto que, em alguns casos, o mesmo pronunciamento judicial será atacável simultaneamente por recursos distintos.

Questão delicada a solver diz respeito aos arts. 806 e 808, inciso I, do CPC, os quais preconizam que a parte deve ajuizar a ação principal no prazo de 30 dias, sob pena de perda de eficácia da medida cautelar. Via de regra, as ações principais deverão ser propostas nesse prazo decadencial, sendo conveniente que a ofendida seja alertada sobre isto, seja na delegacia, seja em eventual audiência de justificação, seja quando da intimação da concessão da medida protetiva. Porém, em face da indisponibilidade e relevância da maior parte dos direitos que se visa proteger, por vezes não poderá haver rigorismo na observância desse prazo, como, aliás, a jurisprudência recomenda em causas afetas ao direito de família. [33]

Sobre o autor
Irênio da Silva Moreira Filho

Promotor de Justiça do MPDFT. Pós-Graduando em Direito Processual Civil. Pós-graduado em Direito Administrativo e Direito Penal e Processual Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA FILHO, Irênio Silva. Vara de família e juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher.: Análise acerca de eventual competência concorrente e sua repercussão sobre outras questões processuais atinentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1948, 31 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11916. Acesso em: 8 nov. 2024.

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