1. Comentário preambular
A contaminação voluntária de terceiros por pessoas infectadas pelo vírus da AIDS apresenta algumas variáveis suscitadoras de polêmica, conforme se delimita a seguir:
a) O risco exteriorizado pela conduta de alguém que, contaminado pelo vírus da AIDS, mantém relação sexual sem proteção com outrem, vindo este a se infectar e posteriormente falecer em razão dessa contaminação é um risco proibido ou permitido?
b) O consentimento do ofendido pode afastar a responsabilidade penal do agente no caso de contaminação pelo vírus da AIDS mediante relação sexual consensual, com conhecimento de ambos dos riscos de transmissão da patologia?
c) No caso supra, em não havendo intenção de contaminar, quiçá de provocar a morte do parceiro (dolo direto), ainda assim é possível a responsabilização penal?
A situação teorizada tem evidentes reflexos práticos, considerando ser a AIDS uma realidade, não somente brasileira, mas mundial; sendo a transmissão via contato sexual uma das formas mais usuais de infecção.
Imprescindível, portanto, analisar os reflexos penais da conduta de quem, estando infectado, vem a transmitir o vírus a terceiros.
2. A transmissão da AIDS e os artigos 130 e 131 do CPB
É cediço que o texto do Código Penal traz em seu bojo regulação das hipóteses de transmissão criminosa de moléstia venérea por meio de ato libidinoso (art. 130), e ainda, de perigo de contágio de moléstia grave de qualquer natureza (art. 131).
Ressalte-se, outrossim, que a hipótese de transmissão do vírus da AIDS não se adequa a nenhuma das hipóteses acima.
Destarte, quanto ao art. 130 do CP, comenta Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 576) que:
AIDS: a síndrome da imunodeficiência adquirida não é doença venérea, pois ela possui outras formas de transmissão que não são as vias sexuais. Assim, caso o portador do vírus – ainda considerando letal pela medicina – da AIDS mantenha relação sexual com alguém, disposto a transmitir-lhe o mal, poderá responder por tentativa de homicídio ou homicídio consumado, conforme o caso.
No tocante ao art. 131 do CP, também descarta o mesmo autor (2006, p. 578) a incidência de referido tipo quando há a contaminação criminosa em tela:
Aliás, sob outro aspecto, é preciso mais uma vez ressaltar que a AIDS não se encaixa, por ora, no perfil deste artigo porque ainda é considerada uma doença letal. Fosse apenas uma enfermidade grave e estaria condizente com o tipo penal do art. 131. Dessa forma, quando o agente buscar transmitir o vírus da AIDS, propositadamente, pela via da relação sexual ou outra admissível (ex: atirando sangue contaminado sobre a vítima), deve responder por tentativa de homicídio ou homicídio consumado (conforme o resultado atingido).
Segundo se vê, há uma tendência doutrinária em se considerar que aquele que transmite intencionalmente o vírus da AIDS responde por homicídio ou tentativa de homicídio, conforme a superveniência ou não do resultado morte, considerando a letalidade da patologia. Ressalve-se, contudo, que mesmo havendo a intencionalidade, tal conclusão não é ponto pacífico.
3. Situações reais de contaminação criminosa pelo vírus da AIDS e seus reflexos penais
Em 2005 houve conflito de atribuições de promotores suscitado junto à Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, ocasião em que o então titular do posto maior do MP paulista, procurador Rodrigo César Rebello Pinho, entendeu que aquele que sabendo ser soropositivo continua mantendo relação sexual sem proteção com sua esposa, provocando a contaminação desta, deve responder por lesão corporal gravíssima por transmissão de moléstia incurável (art. 129, parágrafo 2º, II, do CP) e não por tentativa de homicídio [01], ao argumento que seria "[...] temerário afirmar que o agente teria assumido o risco de provocar a morte, já que sequer é possível afirmar, no atual estágio, se a morte é uma conseqüência inevitável da doença".
Na Holanda, em 2007, quatro homens infectados pelo HIV foram presos acusados de promoverem festas onde se utilizavam de artifícios para, propositalmente, contaminarem seus convidados (todos também homens). Relata-se que drogavam as vítimas e mantinham relações sexuais com as mesmas sem proteção e/ou injetavam nelas sangue contaminado. No caso, não foram acusados por tentativa de homicídio, visto que a Suprema Corte holandesa entendeu que a AIDS "não pode ser considerada como uma doença inevitavelmente fatal, mas crônica" [02].
4. Conclusões
Primeiramente, cabe consignar que aquele que intencionalmente se conduz no sentido de contaminar seu parceiro com o vírus letal da AIDS age, sem dúvida, com animus necandi. Nem se argumente que se poderá em um futuro próximo descobrir a cura para o mal, afastando a sua letalidade, ou que com o atual estágio da medicina o doente soropositivo tem sua sobrevida prolongada por anos a fio, pois é incontestável que, objetivamente falando, é sabido por todos que a AIDS atualmente é inevitavelmente mortal, e certamente quem contamina propositadamente outrem não tem outra intenção senão tirar-lhe a vida, e de uma forma cruel. Se conseguirá ou não consumar seu intento, isso só o futuro dirá, sendo certo, contudo, que se a vítima não morrer isto ocorrerá por razões alheias à vontade do agente infrator.
E esta conclusão deve ser igual tanto para o homem que contamina seu parceiro ou parceira quanto para a mulher que age da mesma forma, mesmo que mediante relação sexual levada a efeito por insistência da vítima que conhece a condição de contaminado do agente.
Analisando tal hipótese sob a luz da teoria da imputação objetiva, Luiz Flávio Gomes (2007, p. 279) chega à seguinte conclusão:
E se é a mulher que está com AIDS, comunica o parceiro disso e mesmo assim ele insiste na relação sexual, contraindo a doença? Nesse caso a mulher deve, em princípio, ser tida como responsável pela morte do parceiro. Sua anuência (causadora da destruição da sua vida) não é válida. Restaria examinar, de qualquer modo, a questão da exigibilidade ou inexigibilidade de conduta diversa, em relação à mulher (que pode não ser responsabilizada por falta de culpabilidade).
Inicialmente, pondere-se que a vida é um bem indisponível [03]. Ninguém pode consentir validamente seja sua vida, sem motivo plausível, posta em risco extremado por uma conduta de terceiro (ou mesmo compartilhada com terceiro); mormente no caso em exame, em que a única motivação para o indivíduo consentir o risco seria, em princípio, a irracional satisfação de sua libido.
Não estamos, portanto, diante de um caso de uma conduta provocadora de um risco permitido, conforme conclui Luiz Flávio Gomes, mas sim de um risco proscrito.
Adicionalmente, sob o aspecto da dimensão subjetiva da tipicidade penal, pode-se asseverar que a pessoa que, sabendo-se portadora do HIV, mantém relação sexual com outrem, mesmo que não tenha a intenção direta de contaminar e provocar as drásticas conseqüências decorrentes desse evento, assume o risco pela produção dos danos inerentes à contaminação; isso por força do dolo eventual. De fato, esta espécie de dolo exige os seguintes requisitos (GOMES, 2007, p. 378): a) representação do resultado; b) aceitação desse resultado; c) indiferença frente ao bem jurídico. Desse modo, o indivíduo soropositivo que mantém relação sexual com outrem sem proteção, certamente sabe que pode contaminá-lo e, por conseguinte, provocar sua morte; aceita isso e demonstra-se indiferente quanto ao bem jurídico protegido pela norma (in casu, a vida da vítima), pois se assim não fosse abster-se-ia da conduta. Não é o caso de culpa consciente, pois nesses casos há uma elevadíssima probabilidade (alardeada pela mídia) de contaminação e futuro óbito do parceiro, decerto conhecida pelo agente.
Quanto ao possível reconhecimento de causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa, aventada por Luiz Flávio Gomes no trecho transcrito linhas atrás, levando à configuração de uma causa de exculpação no caso sob foco, não vemos como plausível a sua ocorrência, considerando a presença de reprovação social em todos os casos que podemos antever (exceto aqueles já abarcados por outra causa de exculpação – coação moral irresistível, por exemplo) de contaminação de parceiro pelo HIV mediante relação sexual sem proteção, conhecendo o agente previamente sua condição de contaminado.
Referências bibliográficas
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2006.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal, parte geral, vol. I. 8ª ed. rev.,ampl. e atual. – Niterói : Impetus, 2007.
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de; coordenação Luiz Flávio Gomes. Direito penal – parte geral. – São Paulo : RT, 2007.
Revista Consultor Jurídico, de 20-09-2005. Disponível em http://www.conjur.com.br/static/text/38031,1, acesso em 23-09-2008, às 16:15 h.
Folha Online, de 31-05-2007. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u301208.shtml , acesso em 23-09-2008, às 16:30 h.
Notas
- Fonte: Revista Consultor Jurídico, de 20-09-2005. Disponível em http://www.conjur.com.br/static/text/38031,1, acesso em 23-09-2008, às 16:15 h.
- Fonte: Folha Online, de 31-05-2007. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u301208.shtml , acesso em 23-09-2008, às 16:30 h.
- Pondera Greco (2007, pp. 378-379) sobre a impossibilidade de reconhecimento do consentimento do ofendido como causa de justificação quando o bem afetado é indisponível, como é o caso da vida.