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Propostas para um novo processo administrativo disciplinar no plano federal.

A superação do modelo plasmado na Lei nº 8.112/90 e a concretização dos princípios constitucionais norteadores da Administração Pública

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Agenda 10/12/2008 às 00:00

O MODELO BRASILEIRO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR PLASMADO NA LEI Nº 8.112/90 E SUAS FALHAS.

Basicamente, o processo administrativo disciplinar plasmado no Título V da Lei nº 8.112/90 manteve a moldura constante do vetusto Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União e dos Territórios (Lei nº 1.711, de 28.10.1952), inovando-lhe ao acrescentar contornos mais condizentes com o postulado constitucional da ampla defesa e do contraditório.

Tanto no diploma revogado, como no atual, a autoridade competente instaura a sindicância ou o processo disciplinar e nomeia a respectiva comissão, formada por 3 (três) servidores estáveis do órgão a que pertence o indiciado. Ato contínuo, desenvolve-se a fase instrutória, com a tomada de depoimentos, oitivas de testemunhas e produção do auto de indiciação, oportunizando-se, em seguida, a apresentação de defesa escrita para, ao final, lavrar-se o relatório final e remeter-se os autos para a autoridade julgadora.

As inovações mais relevantes consistem, em síntese, no direito à plena participação dos indiciados na fase instrutória (art. 153), na garantia de acompanhamento integral da tramitação pessoalmente ou por procurador, com a ampla produção de provas e apresentação de requerimentos nessa fase (art. 156) e no dever de indicação dos fundamentos fáticos e jurídicos a ensejarem a indiciação, a elaboração do relatório final e a eventual aplicação de penalidades (artigos 128, parágrafo único, 161 e 165).

Paralelamente a isto, o art. 150 - em um lampejo de boas intenções e, até mesmo, de ingenuidade – proclamou que "a Comissão exercerá suas atividades com independência e imparcialidade". Fazendo abstração do caráter utópico inerente ao dispositivo em apreço, sua inserção no texto da Lei nº 8.112/90 teve por escopo evidente reforçar o caráter técnico e objetivo das atividades processuais, resguardando-as de influências políticas e hierárquicas. [16]

Em que pese, todavia, a notória preocupação do legislador nesse sentido, tais medidas não bastam para assegurar a condução independente da instrução disciplinar e tampouco se mostram aptas a resguardar os direitos ao devido processo legal e à estabilidade titularizados pelos servidores indiciados.

E como se já não bastasse, a insuficiência das providências engendradas na Lei nº 8.112/90 nesse particular acabará por comprometer, ao fim e ao cabo, a própria finalidade subjacente ao processo disciplinar, qual seja, a de salvaguardar a vinculação da Administração Pública ao sistema do direito, com independência de eventuais interferências políticas externas.

Veja-se, a propósito, que já no nascedouro do processo administrativo disciplinar, abre-se uma ampla porta de entrada para as sobreditas interferências, facilmente constatável quando se nota que a comissão processante será designada por superiores hierárquicos de seus componentes, os quais, por sua vez, julgarão o servidor indiciado ao final do procedimento. [17]

A instauração de processo administrativo disciplinar é, muitas vezes, o resultado de atritos diretos ou indiretos entre servidores e superiores hierárquicos e, em tais casos, as autoridades competentes para iniciarem a instrução já o fazem com o intuito velado de punir o indiciado. Ainda quando isto não ocorre, a instauração de comissão processante faz-se acompanhada se não de um juízo de valor em torno da culpabilidade do indiciado, pelo menos de uma certa desconfiança nesse sentido.

Diante disso, não é preciso engendrar laboriosos esforços mentais para constatar que os servidores integrantes das comissões de processo disciplinar, cientes dos desígnios advindos de suas chefias, sentir-se-ão pressionados, em maior ou menor medida, a corroborarem com as intenções dos superiores hierárquicos.

E mesmo que inexista, por parte dos integrantes da comissão, o intuito de alinhar-se aos desígnios dos superiores hierárquicos, haverá, ainda assim, um certo temor quanto à adoção de posturas que possam vir a desagradar as chefias. Tal vicissitude basta, por si só, para comprometer a imparcialidade e independência que deveriam nortear o devido processo administrativo disciplinar.

Ainda assim, se o trio processante cometer a audácia de recomendar o arquivamento do feito ou a aplicação de penalidade mais branda ao indiciado nessas hipóteses, as autoridades indiciantes/julgadoras poderão contar com os integrantes das consultorias jurídicas de seus órgãos que, igualmente subordinados a superiores postos em seus cargos por intermédio de indicações políticas, sentir-se-ão pressionados, de alguma forma, a buscar soluções para implementar a diretriz imposta pelas chefias, conferindo, assim, ares de legitimidade à punição em vias de ser aplicada. [18]

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A situação ora narrada se agrava consideravelmente quando a instauração do processo disciplinar é precedida da divulgação, pela imprensa, de denúncias a envolverem práticas de irregularidades no âmbito de um determinado órgão administrativo. Nesses casos, diante das cobranças midiáticas, as autoridades competentes para a instauração (geralmente ocupantes de altos cargos comissionados) agem de modo quase espasmático no sentido de agilizar a formação da comissão processante para proceder, ao final, a uma condenação já sacramentada antes mesmo de terem início as formalidades processuais. [19]

Garante-se, dessa forma, a imagem do órgão estatal perante à mídia e, principalmente, a da autoridade de plantão, que, em muitos desses casos, enxerga e concretiza uma oportunidade factível para a obtenção de dividendos políticos. Nesse contexto lastimável, a atuação imparcial, impessoal e independente da comissão processante, bem como as garantias de estabilidade e do devido processo legal, permanecerão relegadas a um segundo plano na ordem das prioridades a serem observadas na condução do procedimento disciplinar por parte dos agentes públicos.

Porém – e infelizmente -, as falhas inerentes ao processo administrativo disciplinar brasileiro e os consequentes riscos de interferências provenientes de elementos estranhos ao sistema do direito não param por aí. O notório improviso na condução dos trabalhos pela comissão processante, aliada à falta de estrutura física existente em muitos órgãos e à má utilização de servidores deslocados das áreas-fim destes últimos agravam consideravelmente as potenciais lesões aos direitos dos indiciados, principalmente no que concerne à condução escorreita dos procedimentos.

Veja-se, a propósito, que em muitos casos os servidores designados para as comissões não possuem a qualificação técnica minimamente necessária para promover a condução dos procedimentos em observância às garantias inerentes ao devido processo legal, mesmo porque a Lei nº 8.112/90 não veicula em seu texto tal exigência. [20] E para acrescentar a este quadro tons ainda mais trágicos, raríssimos são os treinamentos fornecidos pela Administração Pública nessa seara, o que deixa a instrução disciplinar ainda mais distante do grau de profissionalismo desejado. [21]

Ou seja, põe-se nas comissões servidores selecionados e preparados para atuar nas atividades finalísticas dos órgãos públicos, cuja natureza em nada tem a ver com a complexa tarefa inerente à instrução processual e, o que é pior, sem dar-lhes qualquer treinamento! Tal constatação, tão familiar àqueles que militam na esfera administrativa, denota o perigoso amadorismo que impera no processo disciplinar regido pela Lei nº 8.112/90.

Para além disso, e a despeito da diretriz emanada do art. 152, § 1º, da Lei nº 8.112/90 [22], as atividades pertinentes à condução dos procedimentos disciplinares por parte dos servidores integrantes das respectivas comissões são exercidas em concomitância com as tarefas finalísticas de seus órgãos. Disso decorre que os referidos agentes públicos não encontram condições satisfatoriamente adequadas para dedicar tempo e atenção ao munus processual que lhes foi confiado, sob pena de comprometer as demandas próprias de seus cargos.

Tal situação acaba por dar azo, invariavelmente, à condução precária dos procedimentos disciplinares, em notório prejuízo ao postulado do devido processo legal. Paralelamente a isto, a própria realização satisfatória das atividades regulares do órgão restará comprometida, pois a designação de servidores para comporem comissões disciplinares retirará daquelas áreas-fim recursos humanos necessários ao seu escorreito atendimento, o que vai de encontro ao princípio da eficiência administrativa. [23]

Nesse contexto amadorístico, o procedimento disciplinar tende a se prolongar por meses ou até mesmo anos a fio, pois os meios disponibilizados à comissão e o tempo para a realização dos atos processuais não serão suficientes para promover o desfecho no lapso de 120 (cento e vinte) dias a constar do art. 152 da Lei nº 8.112/90. Diante disso, a autoridade instauradora/julgadora promove a edição de sucessivas portarias – quantas forem necessárias – para evitar o decurso do referido prazo e, com isso, prorrogar indefinidamente o procedimento e a agonia experimentada pelo infeliz indiciado.

Ainda que se pretenda mitigar a gravidade das falhas inerentes à estrutura de processo administrativo disciplinar plasmada na Lei nº 8.112/90 com a assertiva de que os eventuais vícios podem ser corrigidos a posteriori pelo Poder Judiciário, tal argumento não basta para afastar os notórios prejuízos financeiros e morais passíveis de serem experimentados pelos servidores demitidos ao cabo de tais procedimentos.

Com efeito, uma vez encerrado o processo administrativo e implementada a demissão do servidor, a percepção de seus vencimentos cessa imediatamente e, paralelamente a isto, a apreciação da demanda judicial proposta, ainda que em sede de liminar ou antecipação dos efeitos da tutela, levará algum tempo para ocorrer.

Em muitos casos, o pleito só vem a ser analisado no momento em que se decide o mérito propriamente dito e mesmo quando há apreciação efetiva do pedido de liminar ou antecipação dos efeitos da tutela, tal só vem a ocorrer, frequentemente, após a apresentação das informações da autoridade impetrada ou da contestação da pessoa jurídica ré, em se tratando de mandado de segurança ou ação ordinária, conforme a situação específica.

Até lá, as demissões advindas de procedimentos viciados permanecerão a surtir efeitos e, o que é pior, privando o servidor de verbas alimentares imprescindíveis para o seu sustento e mitigando cada vez mais a confiança dos demais agentes públicos nos institutos da estabilidade e do processo disciplinar, em notório prejuízo à escorreita atuação da Administração Pública.

Não obstante, em certas situações a atuação do Poder Judiciário acaba por agravar a sensação de incerteza e a insegurança dos servidores que respondem a processos disciplinares, tal como ocorre, por exemplo, com a adoção do entendimento a propalar a inexistência de nulidade em decorrência da ultrapassagem do prazo de 120 (cento e vinte) dias constante do art. 152 da Lei nº 8.112/90. [24] O posicionamento em apreço afigura-se questionável na medida em que a atuação processual da administração pública é vinculada ao lapso previsto no referido dispositivo, razão pela qual a inobservância a este último, por qualquer motivo, terá como consequência natural a fulminação do ato viciado. [25]

O quadro exposto nas presentes linhas demonstra que a estrutura legal de processo administrativo disciplinar hodiernamente existente dá azo não só à operacionalização de interferências políticas e pessoais estranhas à aplicação do direito, como também à condução precária, amadorística e morosa dos procedimentos, em notório prejuízo às garantias constitucionais do indiciado.

Com efeito, diante de tais riscos – cuja concretização é facilitada, como visto, pelo ordenamento infraconstitucional em vigor – os direitos ao o devido processo legal e à estabilidade dos servidores públicos acabam sendo substancialmente enfraquecidos e, consequentemente, a condução dos negócios regulares da Administração Pública torna-se mais vulnerável a eventuais interesses pessoais e políticos.

Ora, se a estabilidade tem por função precípua resguardar os servidores efetivos de potenciais interferências políticas e, com isso, assegurar-lhes um grau mínimo de segurança para atuarem em observância perene aos princípios e regras que regem a Administração Pública, como manter a eficácia de tal garantia e dos objetivos a ela inerentes se seus destinatários podem ser destituídos dos cargos que ocupam através de procedimentos disciplinares notoriamente falhos e amadorísticos?

Ainda nesse diapasão – e retomando aqui as concepções de Luhmann discorridas no tópico anterior-, sendo a estabilidade dos servidores e o processo administrativo disciplinar institutos voltados para assegurar a atuação da Administração Pública segundo o código jurídico e para obstar eventuais interferências de sistemas estranhos ao direito – tal qual o político -, como fazê-lo quando as falhas inerentes à legislação procedimental facilitam a materialização da referida corrupção intersistêmica?

De outro turno, como assegurar a plenitude do direito constitucional ao devido processo legal quando a estrutura de perquirição disciplinar apresenta deficiências aptas a nulificarem, na prática, a eficácia da referida garantia? Nesse tocante, é oportuno recordar que o "devido processo" a envolver a possibilidade de punição – seja no âmbito criminal ou na esfera administrativa – deve ser apto a assegurar ao indiciado a substancial e efetiva (e não a meramente formal) observância aos princípios orientadores da persecução penal. [26]

E, por derradeiro, não há de se olvidar que o postulado constitucional do devido processo legal, por consistir em garantia fundamental, exige do legislador ordinário e da Administração Pública em geral a implementação de medidas aptas a concretizá-lo plenamente. [27] Diante disso, indaga-se: a manutenção da atual estrutura de processo administrativo disciplinar logra materializar efetiva e integralmente a garantia insculpida no art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal?

A nosso ver, a resposta a tais indagações passa, necessariamente, pela elaboração de uma nova sistemática de procedimento administrativo disciplinar pautada pela profissionalização dos quadros instrutórios e decisórios, pela efetiva independência dos órgãos processantes e, principalmente, pela criação de instâncias especializadas e permanentes aptas a assegurarem a observância efetiva ao postulado constitucional do devido processo legal.

Sobre o autor
Paulo Roberto Lemgruber Ebert

Advogado. Doutorando em Direito do Trabalho e da Seguridade Social na Universidade de São Paulo-USP. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EBERT, Paulo Roberto Lemgruber. Propostas para um novo processo administrativo disciplinar no plano federal.: A superação do modelo plasmado na Lei nº 8.112/90 e a concretização dos princípios constitucionais norteadores da Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1988, 10 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12065. Acesso em: 27 nov. 2024.

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