A PROFISSIONALIZAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E A CONCRETIZAÇÃO PLENA DOS PRINCÍPIOS REITORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DO POSTULADO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. PROPOSTAS PARA A CRIAÇÃO DE ESTRUTURAS PERMANENTES.
A simples leitura do art. 5º, LIV e LV da Carta Magna deixa antever de maneira cristalina que no direito constitucional positivo brasileiro o postulado do devido processo legal (instrumental e substancial), com as consequentes garantias do contraditório e da ampla defesa, espraia seu conteúdo deontológico sobre toda a sorte de procedimentos contenciosos, sejam eles administrativos ou judiciais.
Não por outra razão, o legislador constituinte originário assentou nos sobreditos dispositivos que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" e que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes." Disso se infere a abrangência e a importância conferida pela Constituição Federal ao historicamente consagrado instituto do devido processo legal.
Na seara do processo administrativo disciplinar, particularmente, a cláusula do devido processo legal e as garantias a ele inerentes impõem aos Poderes Públicos a adoção de procedimentos justos, imparciais, bem conduzidos e aptos a promover a ampla defesa do(s) indiciado(s), tal como o direito ao contraditório, conforme bem assinala Romeu Felipe Bacellar Filho:
"Na esfera administrativa, não pode haver ´privação´ de liberdade ou patrimônio sem a previsão legal do devido processo administrativo constitucionalmente consagrado.
O princípio do devido processo legal em sentido material diz respeito ao conteúdo das regras processuais: devem ser regras justas, racionais, razoáveis. Acentua-se o termo ´devido processo´: o processo devido corresponde a um processo justo. Em sentido formal, relaciona-se às formalidades previstas na lei para proteção do exercício das prerrogativas processuais inerentes ao contraditório e à ampla defesa. Acentua-se o termo ´processo legal´: a formalização do agir administrativo como garantia para a defesa dos direitos." [28]
Dentre as esferas do Poder Público vinculadas ao dever de promoção e concretização do princípio do devido processo legal na esfera administrativa disciplinar, encontra-se o Poder Legislativo que, nesse particular, terá como incumbência o delineamento de normas procedimentais dotadas das sobreditas qualidades, conforme já adiantado no tópico anterior. [29]
Viu-se nos tópicos anteriores, outrossim, que as estruturas legais de processo disciplinar e a atuação do legislador em seu delineamento são igualmente condicionadas pelos princípios constitucionais norteadores da atividade administrativa, em especial aqueles a constarem do art. 37, caput, da Lei Maior (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).
Tal vinculação impõe ao procedimento administrativo a função de servir, a um só tempo, como instrumento hábil a impedir a demissão de servidores estáveis por motivos de cunho político-pessoal e a servir como meio para a averiguação de condutas irregulares praticadas no âmbito do serviço público.
Paralelamente a isto, viu-se que o procedimento disciplinar plasmado na Lei nº 8.112/90 encontra-se eivado de diversos vícios congênitos, cujos efeitos são graves a ponto de obstar – senão de impedir, em muitos casos, – a concretização dos objetivos vislumbrados pelos sobreditos princípios constitucionais, o que acabará por redundar, fatalmente, em um excesso indevido de politização por parte dos agentes públicos e no progressivo afastamento do código do direito como móvel condutor da ação administrativa.
Diante desse quadro, impõe-se, a nosso ver, a reestruturação das bases legais do processo administrativo disciplinar aplicado à generalidade dos servidores públicos, sendo imprescindível, nesse tocante, promover-se a criação de estruturas permanentes e independentes de instrução e julgamento, integradas por servidores de formação jurídica organizados em carreira específica.
Nesse diapasão, as estruturas em referência poderiam ser constituídas como novas instâncias administrativas a serem criadas no âmbito do Poder Executivo Federal ou como órgãos especializados a integrarem o Poder Judiciário da União. Independentemente da forma a ser-lhes conferida, o fundamental é que as esferas competentes para a condução dos processos disciplinares sejam, a um só tempo, permanentes, funcionalmente independentes e integradas por profissionais da área jurídica.
Nas próximas linhas, procuraremos delimitar, em termos gerais, as duas propostas de estruturas ora formuladas - quais sejam: a) o órgão administrativo de caráter permanente e b) justiça disciplinar especializada - apontando possíveis consequências funcionais a decorrerem da implantação dos referidos modelos.
Criação de Órgãos Administrativos Permanentes voltados para a Instrução e o Julgamento de Processos Disciplinares.
A fim de cumprir com os desígnios ora propostos, poder-se-ia cogitar na criação de órgãos administrativos permanentes voltados exclusivamente para a instrução e o julgamento de processos disciplinares instaurados contra servidores públicos dos entes da administração direta, autárquica e fundacional da União.
Tais órgãos, a nosso ver, poderiam vir a integrar a estrutura funcional da Controladoria-Geral da União (CGU) cuja missão, a teor do art. 1º do Anexo ao Decreto nº 5.683, de 24.1.2006 [30] contempla justamente, dentre outras atribuições, as atividades de correição [31] no âmbito da estrutura administrativa vinculada ao Poder Executivo Federal.
No modelo ora proposto, os órgãos de instrução e julgamento a serem criados no âmbito da Controladoria-Geral da União compreenderiam duas instâncias, quais sejam, as Comissões Disciplinares locais e o Conselho Disciplinar Federal. Às primeiras, incumbiria o processamento originário dos feitos instaurados contra os servidores lotados nos órgãos da administração direta e indireta da União situados em suas respectivas áreas de jurisdição, ao passo que o último seria responsável pela reanálise dos casos em grau de recurso.
As Comissões Disciplinares locais seriam instaladas nas capitais das Unidades da Federação, bem como nos municípios em que haja significativa atividade de órgãos federais, sendo integradas, cada uma, por 3 (três) conselheiros. O número de comissões permanentes a serem criadas dependeria da quantidade de servidores da União e de suas entidades autárquicas e fundacionais em atividade nas áreas de jurisdição daquelas instâncias processantes.
A fim de promover a atuação independente das Comissões Disciplinares locais, seus quadros seriam compostos por conselheiros selecionados por concurso público de provas e títulos, na forma do art. 37, II, da Constituição, que passariam a integrar carreira regida por lei específica. [32]
O Conselho Disciplinar Federal, por sua vez – cuja sede seria estabelecida na Capital Federal – teria sua composição preenchida exclusivamente por conselheiros oriundos das Comissões Disciplinares locais promovidos à segunda instância por merecimento ou antiguidade.
Quanto ao procedimento a ser observado no âmbito das Comissões Disciplinares locais e no Conselho Disciplinar Federal, nova lei federal ordinária revogaria o Título IV da Lei nº 8.112/90 e traria novas normas aptas a assegurar, de modo amplo, não só a participação plena dos interessados e de seus procuradores, observando-se as garantias da ampla defesa e do contraditório, como também do corpo jurídico dos órgãos públicos de origem do servidor indiciado por intermédio dos respectivos Advogados da União ou Procuradores Federais.
A instauração do processo administrativo no âmbito das Comissões Disciplinares locais seria levada a cabo pelos representantes dos órgãos públicos diretamente interessados na punição de seus servidores, ou por outras autoridades a serem definidas em lei, através de solicitação formal acompanhada de elementos documentais já existentes e do eventual requerimento para a produção de novas provas.
Em seguida, a peça seria distribuída a uma das Comissões Disciplinares locais que, após a verificação dos requisitos formais, implementaria os trâmites necessários à notificação do indiciado e à instrução, nos termos a serem definidos na legislação específica. Ultimada a colheita probatória e formulados os arrazoados finais, a comissão designaria data para a leitura pública dos votos de seus integrantes, remetendo o respectivo acórdão, ato contínuo, à publicação.
Os eventuais recursos dirigidos ao Conselho Disciplinar Federal poderiam ser formulados ora pelos indiciados ora pelos Advogados da União/ Procuradores Federais representantes dos órgãos de origem dos servidores acusados. Uma vez recebidas as peças recursais, os conselheiros integrantes do órgão superior poderiam reavaliar amplamente os fatos e provas produzidos na instância local.
Há de se ressaltar, todavia, que os atos das Comissões Disciplinares locais e do Conselho Disciplinar Federal, por possuírem natureza administrativa, seriam passíveis de impugnação no âmbito do Poder Judiciário, haja vista a imperatividade da garantia insculpida no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, a assegurar a ampla sindicabilidade judicial das lesões e ameaças aos direitos dos cidadãos.
Observa-se, portanto, que o modelo ora exposto, pautado na criação de instâncias administrativas permanentes, logra não só ampliar o escopo de independência e profissionalismo que devem permear o processamento e julgamento das causas disciplinares, como também afigura-se menos custoso em relação à criação de uma justiça administrativa especializada, porquanto aproveita, em certa medida, a estrutura já existente no âmbito da Controladoria-Geral da União.
No entanto, em que pesem as notórias vantagens do modelo em apreço em relação à atual sistemática disciplinar plasmada na Lei nº 8.112/90, não é ele, por evidente, é perfeito e, justamente por tal razão, apresenta-se naturalmente permeável a críticas, mesmo porque sua definição nos estritos limites do presente texto, deu-se de forma superficial.
Ainda assim, não há como negar que a criação de instâncias administrativas permanentes, nos moldes ora propostos, garantiriam grau consideravelmente maior de segurança, independência e imparcialidade à condução dos processos disciplinares, o que por si só basta para levar a proposta em consideração nas discussões em torno da substituição da sistemática plasmada na Lei nº 8.112/90.
Criação de Justiça Administrativa Especializada a Integrar o Poder Judiciário.
Há de se cogitar, outrossim, na criação de uma jurisdição administrativa especializada, que viria a integrar a estrutura do Poder Judiciário, ao lado das esferas atualmente previstas no Capítulo III do Título IV, da Constituição Federal (Justiça Estadual, Federal, Eleitoral, Militar e do Trabalho), e teria por competência o processamento e o julgamento dos feitos disciplinares, bem como as ações de improbidade administrativa e as ações penais decorrentes dos mesmos fatos.
Tal modelo de justiça administrativa dotada da competência para a instrução e o julgamento dos processos disciplinares vem sendo, já há algum tempo, amplamente defendida, encontrando eco nas lições de Mauro Roberto Gomes de Mattos e Maria Izabel Pohl Grechinski:
"Deve o processo administrativo disciplinar se submeter à especialização do julgador administrativo, admitido pelo salutar critério do concurso público de provas e títulos, e exame de saúde física e mental, para os candidatos que ostentem a condição de Bacharéis em Direito e que possuam prática forense, com prazo a ser fixado pela lei, como condição mínima para a participação no certame.
(...)
Essa especialização da justiça administrativa disciplinar, através de juízes ordinários, com competência administrativa, iria qualificar o Órgão julgador como independente e técnico, preocupado em fazer justiça e não em julgar em conformidade com interesses superiores ou políticos. Esse poder independente teria fundamento no próprio Estado Democrático de Direito instalado em nosso País, além de garantir a devida segurança jurídica ao servidor acusado, no sentido de que ele será investigado e julgado por um Órgão técnico e imparcial." [33]
"Esta idéia de ´jurisdicionalizar o processo administrativo disciplinar´seria a mais compatível com o Estado Democrático de Direito que vivemos e previsto constitucionalmente, tendo em conta que as decisões disciplinares sairiam do sistema fechado, que é puramente hierárquico para dar lugar à exteriorização do Direito, através de julgamentos feitos por órgãos compostos de juízes com formação jurídica e com a independência necessária, visto que não sofreriam pressões externas, por possuírem a devida estabilidade que a função exige." [34]
Não se trata aqui da criação de uma "justiça administrativa" nos moldes franceses, em que impera a dualidade de jurisdição, caracterizada pela coexistência em paralelo entre aquela e o Poder Judiciário ordinário. [35] Tal organização, a bem da verdade, decorre mais de particularidades inerentes ao desenvolvimento histórico das instituições constitucionais gaulesas – com especial destaque para a separação de poderes - do que de considerações de ordem prática. [36]
No modelo ora proposto, a Justiça Administrativa viria a integrar efetivamente o Poder Judiciário da União e, para sua criação, far-se-ia necessária a edição de emenda constitucional cujo texto viria a adicionar ao Capítulo III do Título IV, da Constituição Federal as diretrizes estruturais básicas do novo órgão.
A organização da Justiça Administrativa poderia tomar por parâmetro a Justiça Militar da União [37], sendo, portanto, composta por auditorias integrantes de Circunscrições Judiciárias, cuja localização e quantidade variaria em função do número de servidores públicos federais lotados na respectiva região e cuja competência material abrangeria, para além dos feitos disciplinares, o julgamento das ações penais e de improbidade administrativa a decorrerem, eventualmente, do mesmo fato. [38]
Segundo tal modelo, as auditorias comporiam a primeira instância da Justiça Administrativa da União e seriam formadas, cada uma, por juízes de carreira selecionados por concurso público de provas e títulos, sendo-lhes assegurado o gozo das prerrogativas elencadas no art. 93 da Constituição Federal.
A segunda instância da Justiça Administrativa seria integrada pelo Superior Tribunal Administrativo, com sede na Capital Federal e composto por um número próximo a 15 (quinze) ministros escolhidos dentre os juízes titulares das auditorias por merecimento e antiguidade. Ao referido colegiado competiria apreciar os recursos interpostos contra as decisões lavradas em primeira instância, cuja devolutividade alcançaria a integralidade dos fatos e provas trabalhados no processo.
Das decisões lavradas pelo Superior Tribunal Administrativo caberia recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses elencadas no art. 102, III, da Constituição Federal, uma vez que o referido órgão consistiria na última instância da Justiça Administrativa.
Há de se ressaltar, por oportuno, que a criação da Justiça Administrativa, nos moldes ora propalados, exigiria a instituição de um novo órgão do Ministério Público da União incumbido de zelar pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis junto àquela jurisdição especializada. [39] Far-se-ia necessário, para tanto, emendar o texto do art. 128 da Constituição Federal e alterar a Lei Complementar nº 75, de 20.5.1993.
A instituição da Justiça Administrativa demandaria, ademais, uma substancial reformulação do arcabouço legislativo pátrio regulamentador do processo disciplinar, no fito de estabelecer o procedimento a ser observado por aquele novo órgão judicial especializado e definir, nesse diapasão, a participação do Ministério Público e das partes nos feitos, bem como o rito, os prazos, a forma de instrução, julgamento, etc.
Da singela descrição formulada nas presentes linhas a título precário, observa-se de plano que a proposta de instituição da Justiça Administrativa especializada, a integrar a estrutura do Poder Judiciário, seria consideravelmente custosa não só do ponto de vista financeiro, como também sob o prisma político.
De fato, não se pode ignorar que a implementação do novo órgão demandaria não só a alocação de recursos vultosos com vistas à contratação de pessoal e à disponibilização de estrutura material mínima, como também consideráveis esforços voltados para as alterações constitucionais e legislativas necessárias.
No entanto, em que pesem os custos subjacentes à proposta, sua concretização traria como benefício incontestável a condução dos feitos disciplinares por instância independente, desvinculada das autoridades superiores a integrarem a Administração Pública, o que, ao fim e ao cabo, reduziria significativamente a influência do componente político na apuração das faltas funcionais, bem como a margem para a implementação de perseguições pessoais no âmbito das repartições públicas, gerando, com isso, condições mais favoráveis para o desempenho dos misteres confiados aos servidores de carreira.
Paralelamente a isto, a criação da Justiça Administrativa e a submissão dos feitos disciplinares à sua alçada, somada à adoção de procedimentos adequados ao bom desempenho de suas funções institucionais, poderá contribuir consideravelmente para o reforço aos princípios do devido processo legal, da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e, por fim, à racionalização da atividade dos órgãos públicos a ser obtida mediante o melhor aproveitamento dos recursos humanos disponíveis em suas atividades finalísticas.
Tem-se, portanto, que, se por um lado, a implementação de uma Justiça Administrativa é deveras custosa, por outro, a medida tem o condão de contribuir substancialmente para a racionalização das funções da Administração Pública e para a concretização das garantias titularizadas pelos servidores enquanto cidadãos. Dever-se-á, portanto, levar tais assertivas em conta e ponderá-las devidamente ao se cogitar na substituição do modelo atual, plasmado na Lei nº 8.112/90.