1. Intróito
Sobre o imenso território brasileiro, nos últimos dez anos, ocorreram, inacreditavelmente, cerca de 3.800 colisões entre aeronaves e pássaros1. O caso U S Airways é mais brasileiro do que imaginamos.
Será que a colisão de uma aeronave com pássaros pode ser simplesmente tratada como caso fortuito, livrando o explorador do transporte aéreo das rédeas da responsabilidade civil, ou seja, o acidente ocorrido com o Airbus 320 da U S Airways, no Rio Hudson, em Nova York, é fruto do acaso, em que passageiros apenas devem lamentar o infortúnio?
Em segundo plano e não menos importante: existe responsabilidade civil do Estado, como gerente maior de toda a estrutura ambiental e controlador dos serviços aéreos, diante da legislação brasileira?
Com base nesses sérios questionamentos, iremos trilhar um sintético caminho pelo universo da responsabilidade civil no transporte aéreo, considerando, especificamente, o caso de colisão de aeronaves com pássaros e suas repercussões jurídicas, bem como o entendimento jurisprudencial atual sobre o tema.
2. A responsabilidade civil no transporte aéreo.
Os transportes, de um modo geral, sempre tiveram um tratamento diferenciado da legislação nacional, em especial por causa da forte Teoria do Risco, que atribui a responsabilidade de danos àquele que desenvolve a atividade com riscos, pois tal explorador deve absorver tanto os lucros dessa atividade, quantos seus riscos. Assim, cintila a proteção ao passageiro, pois esse cidadão, em termos de transportes, entrega o seu bem mais precioso, sua vida, a um empresário ou ao próprio Estado, a fim de ser transportado. Não é à toa que exsurge, como a principal cláusula do contrato de transporte, a chamada Cláusula de Incolumidade 2.
A cláusula de incolumidade retrata o dever do transportador em garantir a integridade global do passageiro, abarcando aspectos materiais e morais, até a chegada ao seu destino. Ninguém ingressa num ônibus, ou trem ou aeronave duvidando se chegará ao seu destino.
No Brasil, a legislação sobre contratos de transporte foi inaugurada pela Lei das Estradas de Ferro, editada no de 1912, observado-se que o nosso antigo Código Civil de 1916 não tratou sobre o tema, até porque, nessa data, os transportes ainda engatinhavam em nosso solo pátrio. Sobre tal incipiência, muito bem descreve o renomado jurista brasileiro Sérgio Cavalieri Filho 3:
Conta-se que os primeiros trens corriam à espantosa velocidade de 6 quilômetros por hora. Certo dia, um velhinho chegou a uma estação e viu aquela coisa comprida parada, com uma chaminé enorme soltando fumaça por todos os lados, e as pessoas embarcando nos vagões. Então, em sua incredulidade, começou a gritar: desçam, essa coisa não vai andar, essa coisa não vai andar... De repente, a coisa apitou e começou a andar lentamente. Aí o velhinho pirou de vez e se pôs a gritar: essa coisa não vai parar, essa coisa não vai parar. E nesse ponto ele tinha razão porque, na realidade, não parou mesmo. De 6 quilômetros passou-se para 60, depois 120, até chegar aos trens bala e aviões supersônicos dos nossos dias.
A Lei das Estradas de Ferro trouxe em seu bojo, especificamente em seu artigo 1º, a implícita e importante cláusula de incolumidade, onde se estabeleceu, ainda no raiar dos primeiros anos do século passado, a responsabilidade subjetiva com presunção de culpa. Esta forma de imputação de responsabilidade civil abre oportunidade para que o transportador possa produzir provas, a fim de eximir-se de sua responsabilidade, sinteticamente, a lei considera o transportador como responsável até que ele desvencilhe-se de tal ônus. Porém, ao desfilar pelas possíveis causas excludentes de responsabilidade estabelecidas pela norma, percebe-se, rapidamente, que o legislador limitou a fatos que excluam o nexo de causalidade. Doutrina majoritária 4 conclama que a situação se trata, na verdade, de responsabilidade objetiva imprópria, uma vertente da responsabilidade objetiva.
No aspecto do transporte aéreo, o Brasil detém lei especial sobre o tema, o Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA 5, norma essa que teve a aptidão de regular a responsabilidade civil do transportador aéreo nacional:
Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente:
I - de morte ou lesão de passageiro, causada por acidente ocorrido durante a execução do contrato de transporte aéreo, a bordo de aeronave ou no curso das operações de embarque e desembarque;
II - de atraso do transporte aéreo contratado.
Nos parágrafos seguintes, ainda no mesmo artigo 256, o legislador prevê a possíveis causas de exclusão de responsabilidade, dividindo-as para os casos do inciso I (morte ou lesão) e para os casos do inciso II (atraso); sendo que o caso fortuito somente é direcionado para as situações reportadas para atraso de vôo, não sendo causa excludente em relação ao inciso II. Abrem-se como excludentes culpa exclusiva da vítima e determinação da Autoridade Aeronáutica, essa última indecifrável, pois o que pode ocorrer é o direito de regresso, mas nunca excludente de responsabilidade.
O Código Aeronáutico, na verdade, estabelece a responsabilidade objetiva do transportador aéreo, pois que as causas de exclusão de responsabilidade são fatos que excluem o nexo de causalidade.
Atualmente, balizada doutrina considera como causas excludentes de responsabilidade objetiva fatos que rompem o nexo de causalidade entre a causa e o dano ocorrido, como Sérgio Cavalieri Filho, em seu emérito postulado Tratado de Responsabilidade Civil, obra alicerce no tema de responsabilidade civil 6:
Causas de exclusão de nexo causal são, pois, casos de impossibilidade superveniente do cumprimento da obrigação não imputáveis ao devedor ou agente. Essa impossibilidade, de acordo com a doutrina tradicional, ocorre nas hipóteses de caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou de terceiro.
Fato exclusivo de terceiro é um evento capaz de excluir o nexo de causalidade e, portanto, incendiar a responsabilidade civil do transportador aéreo, apesar de não eleito como causa excludente pela lei especial aeronáutica, mas impossível de sobreviver à pequena argüição de racionalidade. É o caso de um atentado terrorista a uma aeronave de transporte de passageiros, que explode em pleno vôo, decorrente de bomba a bordo. Nesses casos, até poderá incidir à responsabilidade da autoridade aeroportuária, responsável pela segurança do sistema aeroportuário, mas não compatível com a responsabilidade do transportador, que, via de regra, tem excluída a sua responsabilidade em questões de segurança pública, como o assalto a ônibus de transporte de passageiros, situação pacífica na jurisprudência nacional, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça 7.
O fato exclusivo de terceiro tanto é reconhecido como causa excludente de responsabilidade civil do transportador que o próprio legislador, atento quanto à evolução do risco de atentados terroristas, após o trágico 11 de setembro de 2001, rapidamente emitiu a Lei Federal 10.744, de 09 de outubro de 2003, norma que prevê que a União assuma a responsabilidade civil pelas indenizações perante terceiros, passageiros ou não, decorrentes de fatos específicos, como atentados terroristas e guerras, situações qualificáveis como fato exclusivo de terceiro 8.
Assim, os passageiros não ficarão ao desamparo. Se dependesse tão somente das regras de responsabilidade civil, isento está o transportador aéreo por eventuais prejuízos decorrente de atos terroristas, com pequena possibilidade de responsabilização do Estado, em razão da ineficiência do sistema de segurança pública, mas atenuável pela moderna teoria da reserva do possível.
A Lei 10.744/2003, ao mesmo tempo em que ampara o passageiro e eventuais terceiros, demonstra o reconhecimento do aplicável o fato exclusivo de terceiro como excludente da responsabilidade civil objetiva do transportado aéreo, apesar do silencia da lei aeronáutica.
Há que se obtemperar o estabelecido pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, ao desincumbir o caso fortuito ou força maior dentre as possíveis excludentes de responsabilidade em acidente aeronáutico, portanto, em situações que gerem lesão ou morte de passageiro, em razão de que não se adota a Teoria do Risco Integral, ou seja, a incidência de responsabilidade independente de haver alguma relação com a causa provocadora do dano, muito mais que "independente de dolo ou culpa".
Paralelamente, o Código Civil de 2002, no que estabelece regras sobre contratos de transporte, prevê a possibilidade de que a força maior possa excluir tal causalidade, em seu artigo 734 9, entendida tal força maior como caso fortuito. Logo pensarão os mais atentos leitores, o conflito se resolve por especialidade, pois a lei aeronáutica é especial em relação à lei civilista. Não é bem assim, pois que a nova lei maior do direito privado expressamente tornou suas regras superiores a outras que venham a ser editadas, quando regulem contrato de transporte, nos termos de seu artigo 732:
Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais. (grifo nosso)
Importante salientar que fato culposo de terceiro não é a mesma coisa que fato exclusivo de terceiro, pois que, no primeiro caso, não existe vontade firme na consecução do dano provocado, que é fruto da falta de cuidado objetivo, mas suficiente para originar o dano.
Nesse sentido e ingressando no mundo da aviação, é o fato que decorre de uma oficina de manutenção, que não realiza adequadamente os serviços de inspeção e sem almejar a ocorrência de algum acidente com a aeronave sob seus cuidados, acaba por contribuir para um sinistro aéreo.
Acidentes decorrentes de deficiente serviço de manutenção não excluem a responsabilidade do transportador, pois não houve rompimento do nexo de causalidade, o que houve foi deficiência no serviço prestado, ninguém almejava o acidente. A regra merece exceção, pois em alguns casos poderá haver dolo eventual, quando então surgirá, limpidamente, o fato exclusivo de terceiro, exonerando o transportador aéreo. É o caso da oficina que não realiza a inspeção em que foi contratada, mas registra tal serviço, em plena fraude ao proprietário da aeronave; não há como olvidar da presença do dolo eventual, ou culpa grave no direito civil.
O Supremo Tribunal Federal já estava ciente quanto a essa possível excludente, mas limitou a questão à relação entre o responsável pelo transporte e o terceiro, deixando a salvo a vítima do dano, tanto que emitiu o Enunciado nº 187 de sua Súmula, em Sessão Plenária de 13 de dezembro de 1963:
A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva. (grifo nosso)
O novel Código Civil não traiu a linha doutrinária e jurisprudencial, levando à legalidade formal o conteúdo do citado enunciado do STF, pelo artigo 735 10, repetindo literalmente o mesmo entendimento.
Por último, o fato exclusivo da vítima, chamado pela lei aeronáutica de "culpa exclusiva", conforme artigo 256, 1º, aliena "a", in fine, que nada tem de culpa, pois que, em termos de responsabilidade objetiva, não há lugar para análise de culpa, salvo em ações de regresso contra o causador do dano, pois que a responsabilidade objetiva é independente de culpa ou dolo e considerar conduta culposa como capaz de excluir a indenização é flagrante contra-senso.
Desse modo, especializada doutrina melhor denomina esses fatos jurídicos como fato exclusivo da vítima, evento com capacidade de romper o liame entre o serviço prestado e o dano causado.
Em termos gerais de transporte, pode-se bem exemplificar a situação com a figura dos surfistas ferroviários, jovens que transitam pelos trens das grandes capitais, no teto dos vagões, expondo a si mesmo a elevado risco de morte. O STJ já se manifestou sobre o assunto e vêm confirmando ser caso de "culpa exclusiva da vítima" 11.
Em transporte aéreo, o exemplo mais característico é o da gestante que se expõe ao transporte aéreo, depois de passados oito meses de gestação, sem o cumprimento das regras especiais, como limite de tempo de vôo e devida avaliação médica. Fraude a este procedimento e possível parto a bordo, ensejando em traumas ou lesões a passageira parturiente e bebê, demonstra óbvio fato exclusivo da vítima, sem relação causal com o transporte aéreo, que foi apenas meio para que o descuido da gestante se transformasse em tragédia.
Relevantíssima observação ainda deve constar deste artigo se refere ao mandamento constitucional previsto no artigo 37, §6º da Carta Política Brasileira, onde se reafirmou a responsabilidade civil do Estado na modalidade objetiva 12, situação que se mantém desde a Constituição de 1946 13.
Inovação constitucional foi a forma clara de imputação de responsabilidade civil objetiva dos concessionários de serviços públicos, aplicável ao transportador aéreo, visto que o mesmo desenvolve a exploração de serviço público da União, conforme expressa o artigo 21, inciso XII, alínea "c" 14 da Constituição Federal de 1988.
2.1. Caso Fortuito Interno e Externo
Primeiramente, necessário esclarecer que a diferenciação entre caso fortuito e força maior já se tornou irrelevante para a doutrina, sendo ambos qualificados como caso fortuito; hoje as atenções se voltam a um critério muito mais importante, analisar se ocorre fortuito interno ou externo, conforme o fato imprevisível tenha ou não relação com o risco assumido pela exploração do serviço prestado.
A imprevisibilidade apenas denota que não há tempo certo para a sua ocorrência, como a colisão de um pássaro com uma aeronave, entretanto, necessário se faz questionar se o evento imprevisível traz relação com a organização do negócio, com bem assevera Sérgio Cavalieri Filho 15.
Sinteticamente, pode-se compreender o tema analisando a atividade desenvolvida pelo negócio e a causa do dano, havendo relação, como se fizesse parte do processo de produção ou disponibilização do serviço, tem-se o fortuito interno, ou seja, mantém-se a responsabilidade do explorador, pois o fato imprevisível adere-se ao risco da atividade desenvolvida, não há como aliená-la para o cliente, seria dar vida a velho chavão bolchevista: privatizar os lucros e socializar os prejuízos.
Uma aeronave que tenha "pane" e resulte num acidente aeronáutico, entendendo "pane" como mau funcionamento de algum de seus sistemas, teremos fortuito interno, pois que disponibilizar uma aeronave segura é dever do transportador, implícita na cláusula de incolumidade.
Assim tem decidido os tribunais, considerando que defeito ou quebra de aeronave perfaz como inadimplemento do transportador, cuja manutenção de suas aeronaves tem que ser prévia e constante 16, típico fortuito interno da aviação.
Por outro lado, há o fortuito externo, evento imprevisível e alijado da organização do negócio, sem qualquer conexão com a organização, como o assalto a ônibus 17, apesar de que a sua melhor definição, em nosso entendimento, seja fato exclusivo de terceiro. No exemplo apontado, o transportador não tem o dever de segurança pública, que é do Estado, diferente da situação de "pane" da aeronave, em que há o dever de fornecer aeronaves seguras para a exploração do serviço concedido. O fortuito externo é o autêntico fator excludente de responsabilidade civil do transportador aéreo.
2.2. A responsabilidade civil do transportador aéreo em colisão com pássaros
Como fica o caso da aeronave que colide com pássaros? Está-se diante de caso fortuito interno ou externo?
Os tribunais pátrios têm respondido a esta questão, perfilando o caminho que configura caso fortuito interno, pois que o evento é previsível, bem como se relaciona ao serviço prestado. Nesse sentido o STJ 18 e mais recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo 19, nos Embargos Infringentes nº 949.477-7/01, de 09 de maio de 2007 - TJ SP:
(...) A existência de aves nos aeroportos diz com a segurança de vôo, de responsabilidade das autoridades aeroportuárias, mas integra o contrato de transporte aéreo, como condição conexa para tal prestação de serviço, configurando tal hipótese (sugamento de ave pela turbina do avião) fortuito interno, de forma que cabe à companhia aérea responder pelo dano moral. (grifo nosso)
E ainda complementa o acórdão:
(...) Se a responsabilidade é objetiva pelo próprio risco inerente ao negócio que se desenvolve e se a existência de aves nas proximidades do aeroporto é fato previsível (...) Não há como negar a sua vinculação à prestação dos serviços.
(...) Era de conhecimento da companhia aérea e do próprio aeroporto a presença de urubus nas proximidades da área de decolagem e pouso. (grifo nosso)
Em ambos os julgados encontram-se presentes tanto a previsibilidade como a relação do fato, colisão com urubu, com o serviço de transporte aéreo.
Desse modo, a responsabilidade civil do transportador perante seus passageiros é límpida, devendo ressarci-los de seus prejuízos e danos morais. Porém, a história não pára por aqui, pois o causador do dano, numa análise mais abrangente não é o transportador, não é ele quem cria urubus.
Considerar o transportador responsável pelos danos decorrentes de colisão com pássaros, perante o passageiro, diante das normas ambientais em vigor, assim como do uso do solo urbano, não é tarefa simples e requer complementos. Na verdade, está-se diante de fato culposo de terceiro, pois as colisões, especialmente envolvendo urubus, decorrem do inadimplemento de regras urbanísticas, ambientais e aeronáuticas, negligenciadas por terceiros e não pela Empresa Aérea.
A responsabilidade primária perante o passageiro realmente é da Empresa Aérea, pois esta não será isenta do dever de indenizar diante de fato culposo de terceiro, em situação que tenha direito de regresso, regra essa já vista e consubstanciada no Enunciado nº 187 da Súmula do STF e no artigo 734 do Código Civil, entretanto, necessário se faz detectar quem é este terceiro e qual a responsabilidade que lhe é imputada.