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A colisão da aeronave da US Airways com pássaros e a responsabilidade civil: uma realidade brasileira

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21/01/2009 às 00:00
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4. Conclusão

Diante do cenário apresentado, facilmente se depreende que as ações judiciais impetradas pelos passageiros lesados em decorrência de eventos de colisão de aeronaves com pássaros, em especial com urubus, em face do transportador aéreo, lembrando um dito popular, "fazem parte da primeira batalha, mas não encerra a guerra", pois que, em ultima ratio, trata-se de responsabilidade civil do Estado, ora na modalidade de responsabilidade por ato ilícito (como na instalação de lixões dentro da ASA), ora na feição de responsabilidade civil por omissão (na constante ausência de fiscalização de empreendimentos poluidores instalados dentro da ASA).

Porém, ressalta-se que não é o caso de se excluir a responsabilidade civil do transportador, pois o evento colisão de aeronave com pássaros deve ser classificado como fato culposo de terceiro, assumindo a posição de terceiro tanto o explorador de atividades privadas poluidoras, quanto o próprio Poder Público, o maior cliente do Poder Judiciário, englobando atos comissivos ou omissivos. Desse modo, imediata se torna a aplicação do artigo 735 do Código Civil e do Enunciado 187 da Súmula do STF, quando então o transportador aéreo poderá exercer o seu direito de regresso contra o verdadeiro causador do dano; essa é a segunda batalha, levar o dever de indenizar ao autêntico responsável pelo dano.

No aspecto jurisprudencial, demonstrou-se, por analogia, que a responsabilização do Estado quando de sua omissão no dever de fiscalização, originando uma colisão de aeronave com pássaros, é semelhante aos reiterados e pacíficos julgados que impõe a responsabilização do Estado quando da colisão de veículos com animais, em estradas nacionais, bem como na deficiente manutenção dessas mesmas vias de deslocamento, quando buracos causem idêntico acidente de trânsito.

Quanto aos danos indenizáveis, enfatizou-se que os mesmos não se restringem tão somente ao ressarcimento dos valores despendidos na indenização dos passageiros, entre danos materiais e morais; mas os danos também envolvem a indenização do transportador aéreo, que adquire sérios prejuízos materiais em função de danos à sua aeronave, despesas operacionais e, porque não, também abarcando os danos morais à pessoa jurídica, em razão da certeza do descrédito que a empresa aérea absorve perante a sociedade civil, como conseqüência natural, quando se envolve num incidente aeronáutico.

Após essa digressão, está-se preparado para responder aos questionamentos do início deste artigo. Quanto ao primeiro ponto, quando se inquiriu sobre possível presença de caso fortuito na colisão de aeronave com pássaro, pode-se afirmar que, no Brasil, sendo a colisão decorrente de aves atraídas por atividades poluidoras, inseridas na Área de Segurança Aeroportuária, infringindo as legislações ambiental, urbanística e aeronáutica, configurar-se-á caso fortuito interno, portanto, evento ligado à atividade explorada, não capaz de exonerar a responsabilidade do transportador perante o passageiro.

A colisão do Airbus 320 da U S Airways com pássaros, no Rio Hudson, em Nova York, não é um evento isolado, não há novidade, especialmente no Brasil, onde o quantitativo de colisões de aeronaves com pássaros é significativo, especialmente envolvendo aves da espécie Coragyps atratus, popularmente conhecido como urubu, salientando ainda que os passageiros não devem tão somente lamentar o sinistro, mas ir às vias judiciais, à procura da aplicação do direito, a fim de serem ressarcidos de possíveis danos incidentes.

Quanto ao segundo questionamento, no aspecto da responsabilidade do Estado em relação a colisões de aeronaves com aves, pode-se afirmar que no Brasil, em função da forte deficiência sanitária das cidades brasileiras, o Perigo Aviário ora é um produto da ação ilícita do Poder Público, geralmente Prefeituras Municipais, que possuem lixões poluidores instalados dentro da Área de Segurança Aeroportuária-ASA, ora o referido Perigo Aviário se desenvolve sem freios, em função da ausência do Estado em seu dever de fiscalizar os empreendimentos poluidores, inseridos também na ASA, consoante as regras urbanísticas, ambientais e aeronáuticas, o que faz da região do entorno do Aeroporto uma área de elevado risco para a operação aeronáutica.

Sem dúvida o maior impulso à prevenção do Perigo Aviário será proporcionada pelo próprio transportador, na árdua tarefa de responsabilizar o verdadeiro agente causador da colisão de suas aeronaves com pássaros, que não é o pobre do urubu, mas o Poder Público, pois esse sem as rédeas do Poder Judiciário e isento de responsabilização civil, continuará a poluir ou mesmo a se omitir em seus deveres constitucionais. Até que a conscientização chegue, trabalho esse que envolve mudança de comportamento, labuta constante do CENIPA, há que se buscar a aplicação do direito, a fim de obrigar o Poder Público a cumprir a lei e manter a ordem urbanística, ambiental e aeronáutica.

Talvez o caminho mais eficaz, considerando o elevado desacerto urbano em que vivemos, seja trilhado pelo emprego do instituto da Ação Civil Pública, tendo como sujeito ativo Sindicatos e Associações, ligadas à aviação, legitimados pelos termos da Lei 7.347/1985, ou mesmo por representação ao Ministério Público Federal. É certo que tal ação coletiva possui plena capacidade em garantir o direito constitucional à segurança pública do transporte aéreo [30], compreendido como direito fundamental de 3ª geração [31], pois é um direito de todos, típico direito difuso, fronteira a ser conquistada pelos operadores do direito nesse século XXI.


Notas

01 MOREIRA NETO, Raul. Perspectivas do CCPAB. CENIPA, Brasília, 25 nov. 2008. Disponível em: <http://www.cenipa.aer.mil.br/palestras/palestras.htm>. Acesso em 18 jan 2009. Apresentação divulgada no 4º Seminário Internacional de Perigo Aviário e Fauna, coordenado pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos – CENIPA, ocorrido em Brasília-DF, entre os dias 24 e 28 de novembro de 2008.

02 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 316.

03 CAVALIEIR FILHO, Op. cit. p. 317.

04 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Responsabilidade Civil. 5ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005.

05 Lei Federal 7.565, de 19 de dezembro de 1986.

06 CAVALIEIR FILHO, Op. cit. p. 89.

07 AgRg no Ag 840278 / SP, Relator Ministro MASSAMI UYEDA, acórdão julgado em 20/11/2007e publicado no DJ de 17/12/2007.

08 Art. 1º  Fica a União autorizada, na forma e critérios estabelecidos pelo Poder Executivo, a assumir despesas de responsabilidades civis perante terceiros na hipótese da ocorrência de danos a bens e pessoas, passageiros ou não, provocados por atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, ocorridos no Brasil ou no exterior, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo.

09 Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.

10 Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.

11 Responsabilidade civil. Acidente ferroviário. Queda de trem. "Surfista ferroviário". Culpa exclusiva da vítima. I - A pessoa que se arrisca em cima de uma composição ferroviária, praticando o denominado "surf ferroviário", assume as conseqüências de seus atos, não se podendo exigir da companhia ferroviária efetiva fiscalização, o que seria até impraticável.

12 CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito administrativo. 7ª ed. Salvador: Jus podivm, 2009, p. 326.

13 Constituição Federal de 1946:

Art 194 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único - Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

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14 Art. 21. Compete à União: (...)

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...)

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária.

15 CAVALIEIR FILHO, Op. cit. p. 322.

16 1º TACIVSP – Ap. Sum. 1059736-7, 21-8-2002, 4ª Câmara – Rel Oséas Davi Viana.

17 AGRAVO REGIMENTAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - ASSALTO - INTERIOR DE ÔNIBUS - RESPONSABILIDADE DA EMPRESA - EXCLUDENTE - CASO FORTUITO - DECISÃO AGRAVADA MANTIDA - IMPROVIMENTO.

I. Fato inteiramente estranho ao transporte (assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo), constitui caso fortuito, excludente de responsabilidade da empresa transportadora.

18 Recurso Especial. Ação indenizatória. Transporte Aéreo. Atraso em vôo c/c adiamento de viagem. Responsabilidade Civil. Hipóteses de exclusão. Caso Fortuito ou Força Maior. Pássaros. Sucção pela turbina de avião.

- A responsabilização do transportador aéreo pelos danos causados a passageiros por atraso em vôo e adiamento da viagem programada, ainda que considerada objetiva, não é infensa às excludentes de responsabilidade civil.

- As avarias provocadas em turbinas de aviões, pelo tragamento de urubus, constituem-se em fato corriqueiro no Brasil, ao qual não se pode atribuir a nota de imprevisibilidade marcante do caso fortuito.

- É dever de toda companhia aérea não só transportar o passageiro como levá-lo incólume ao destino. Se a aeronave é avariada pela sucção de grandes pássaros, impõe a cautela seja o maquinário revisto e os passageiros remanejados para vôos alternos em outras companhias. O atraso por si só decorrente desta operação impõe a responsabilização da empresa aérea, nos termos da atividade de risco que oferece.

19 Emb Inf 949.477-7/01, de 09 de maio de 2007 - TJ SP

20 Estatística disponível no sítio do CENIPA: http://www.cenipa.aer.mil.br/passaros/graficos/grafico2008.pdf

21 Art. 43. As propriedades vizinhas dos aeródromos e das instalações de auxílio à navegação aérea estão sujeitas a restrições especiais.

Parágrafo único. As restrições a que se refere este artigo são relativas ao uso das propriedades quanto a edificações, instalações, culturas agrícolas e objetos de natureza permanente ou temporária, e tudo mais que possa embaraçar as operações de aeronaves ou causar interferência nos sinais dos auxílios à radionavegação ou dificultar a visibilidade de auxílios visuais.

22 Portaria 1.141, de 05 de dezembro de 1987.

23 Resolução CONAMA nº 04, de 09 de outubro de 1995. Disponível em http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=182.

24 ACP 2005.39.01.001578-9 – TRF-1 Seção Judicial Pará, Vara única de Marabá.

25 Art. 5º  Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

V - a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

26 CUNHA JÚNIOR, Op. cit. p. 329.

27 HONORATO, Marcelo. A responsabilidade civil no perigo aviário. CENIPA, Brasília, 25 nov. 2008. Disponível em: <http://www.cenipa.aer.mil.br/palestras/palestras.htm>. Acesso em 18 jan 2009. Apresentação divulgada no 4º Seminário Internacional de Perigo Aviário e Fauna, coordenado pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos – CENIPA, ocorrido em Brasília-DF, entre os dias 24 e 28 de novembro de 2008.

28 No mesmo sentido: REsp 467.883 e REsp 668.491

29 REsp 992.86-0 e REsp 647.216.

30 Constituição Federal de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

31 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 589.

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Sobre o autor
Marcelo Honorato

Juiz Federal Substituto, Bacharel em Direito pela UFPA. Especialista em direito processual pela UNAMA. Especialista em direito constitucional pelo IDP. Pós-graduando em Direito do Estado pela UNIDERP. Bacharel em Ciências Aeronáuticas pela AFA. Ex-Oficial aviador da Força Aérea Brasileira.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HONORATO, Marcelo. A colisão da aeronave da US Airways com pássaros e a responsabilidade civil: uma realidade brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2030, 21 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12231. Acesso em: 7 mai. 2024.

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