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Considerações jurídicas sobre a governança corporativa

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Agenda 17/04/2009 às 00:00

5 A REGULAÇÃO DA GOVERNANÇA CORPORATIVA NO BRASIL

A difusão e efetivação das práticas da Governança Corporativa se torna possível, em grande parte, graças ao papel exercido pela CVM e pela BOVESPA no âmbito regulatório.

A Medida Provisória nº 08/01, posteriormente convertida na Lei nº 10.411/02 [29], ampliou as competências da CVM e lhe conferiu o status de agência reguladora [30]. A Lei nº 10.303/01 modificou a Lei do Mercado de Capitais, inserindo nas atividades disciplinadas e fiscalizadas pela CVM a negociação e intermediação no mercado de derivativos e a organização e funcionamento das Bolsas de Mercadorias e Futuros. Os poderes de ingerência conferidos à CVM encontram-se enumerados nos incisos do artigo 9º da Lei 6.385/76.

A regulação do mercado de capitais pela CVM, de forma a disseminar as boas práticas da Governança Corporativa, se dá principalmente através da edição de instrumentos normativos denominados Instruções. Dentre as mais importantes estão a Instrução nº 31/84, que obriga as companhias a publicarem fatos considerados relevantes (tais como aumento de capital e eleição da diretoria, dentre outros); a Instrução nº 202/06, que regula o registro de companhia aberta e obriga a eleição de um diretor de relações com os investidores (RI); as Instruções nº 229/95 e nº 345/00, que dispõem sobre o cancelamento das companhias de capital aberto na CVM; a Instrução nº 299/99, que dispõe sobre a divulgação de informações na alienação de controle acionário e no aumento de participação de acionistas controladores; e a Instrução nº 391/03, que dispõe sobre a constituição e funcionamento dos fundos de investimento em participações - FIPs [31]. Nesta última, há maiores exigências de transparência no fornecimento de informações por parte do administrador do fundo aos cotistas, bem como exigências de que aquele preste declaração de que foram obedecidas as disposições da instrução, numa clara referência aos princípios do disclosure e da compliance.

Outras inovações importantes no que tange àquele instituto, trazidas pela Instrução CVM 391/03, referem-se aos padrões mínimos de boas práticas exigidos das companhias pelos FIPs. No caso de investimentos em companhias abertas, o artigo 2º dessa instrução admite que o próprio regulamento do FIP defina os critérios das companhias passíveis de investimento pelo fundo. Quanto às companhias fechadas, entretanto, a CVM estabeleceu regras claras que exigem a observância de padrões mínimos de Governança Corporativa, tais como a que proíbe a emissão de partes beneficiárias, a que exige a adesão à câmara de arbitragem e a que obriga as companhias fechadas, em caso de abertura de capital, a aderirem a segmento especial de bolsa de valores ou entidade de balcão organizado.

Há ainda a chamada Cartilha de Governança Corporativa da CVM, instrumento que não é de adoção obrigatória. Entretanto, a CVM informou, na própria cartilha, que oportunamente passará a exigir nas informações anuais das companhias a indicação de quais regras sugeridas foram adotadas, numa forma conhecida como "pratique ou explique", onde a empresa deverá explicar as razões pelas quais preferiu não adotar determinada recomendação. Simões [32], citado por Ribeiro, critica a adoção do "pratique ou explique", por entender que iniciativas dessa natureza representam indícios da existência de um grande potencial de distorções a ser produzido pela Governança Corporativa, que gerará incerteza jurídica e prejudicará o objetivo funcional que poderia ser obtido com a adoção de melhores padrões de relacionamento entre controladores e minoritários.

Na BOVESPA, a principal iniciativa de auto-regulação foi a criação, em 2000, dos segmentos diferenciados de listagem, através de suas resoluções 264/00 e 265/00. Além deste evidente esforço auto-regulatório, não se pode deixar de destacar a existência de outros, como o da Associação Nacional dos Bancos de Investimento - ANBID, que edita o Código de Auto-Regulação para a indústria de fundos de investimento e o Código de Auto-Regulação para as operações de colocação e distribuição pública de títulos e valores mobiliários, inspirador da Instrução CVM nº 400/03, editada para regular ofertas públicas de títulos de dívida e ações.

Além da ANBID, outras entidades, como a Associação Brasileira das Companhias de Capital Aberto - ABRASCA, o Instituto Brasileiro de Relações com Investidores - IBRI e o Comitê de Pronunciamentos Contábeis - CPC [33], possuem iniciativas de auto-regulação. A ABRASCA fornece regras para a política de comunicação de fatos relevantes das empresas registradas na CVM. O IBRI prepara um projeto de certificação da política das companhias de relacionamento com o mercado, que tem previsão de se tornar aplicável a partir de 2009. O CPC já decide, em conjunto com a CVM, as regras de contabilidade a serem aplicadas pelas companhias. A existência dessas autoridades auto-reguladoras, atuando em conjunto com a CVM representa os esforços extralegais, na difusão da Governança Corporativa.

Por fim, ressalte-se que, atualmente, praticamente todas as grandes companhias já editam códigos de conduta e de ética, com fins de disciplinar o comportamento de seus executivos. Esses códigos abordam temas como o cuidado que deve ser tomado com as informações sigilosas, as questões ambientais e a negociação com as ações da empresa.


6 GOVERNANÇA CORPORATIVA E QUESTÕES JURÍDICAS ATUAIS

A questão do conflito de interesses nas sociedades anônimas tem sido uma das principais preocupações daqueles que discutem juridicamente a Governança Corporativa. Recorde-se, aqui, que as origens daquele instituto se encontram relacionadas a teorias que abordavam os chamados "conflitos de agência" [34].Entretanto, conforme lembra Betarello, o conflito entre gestores e acionistas é apenas uma forma de manifestação do conflito de agência, que ocorre também, e até que com maior freqüência, entre acionistas majoritários/minoritários, impulsionado por fatores como a permissão legal de emissão de ações sem direito a voto (que pode gerar a concentração da propriedade nas mãos dos majoritários, alijando os minoritários do processo decisório).

O atual Código de Melhores Práticas do IBGC define que há conflito de interesses "quando alguém não é independente em relação à matéria em discussão, e pode influenciar ou tomar decisões motivadas por interesses distintos daqueles da sociedade". Na LSA, o conflito de interesses se encontra disciplinado no § 1º do artigo 115, que dispõe que "o acionista não poderá votar nas deliberações da assembléia-geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia".

Importa definir o que seria o "interesse da companhia", mencionado no referido dispositivo. Comparato [35] afirma que tal expressão concerne ao interesse comum dos sócios; não um sócio determinado, mas um padrão abstrato de acionista, cujo interesse seria sempre a participação nos lucros e no patrimônio da companhia, refletido no valor de suas ações.

Em seguida, faz-se mister diferenciar os dois institutos jurídicos que se encontram inseridos no caput e no § 1º daquele dispositivo: o abuso de direito (conflito de interesses lato sensu) e o voto conflituoso (conflito de interesses stricto sensu). O abuso de direito, em sua acepção clássica, é visto como uma categoria de ato ilícito e, enquanto tal, pressupõe a coexistência de basicamente três elementos, quais sejam 1) a conduta que viola direito alheio; 2) o dano; e 3) o nexo causal. O seu controle é feito a posteriori e depende de uma verificação in concreto. O voto conflituoso, por sua vez, dispensa a configuração de um evento danoso ou mesmo da prevalência do voto na composição da maioria deliberante, uma vez que a vedação ao seu exercício se dá de forma cautelar, ou seja, a priori em relação ao exercício do voto.

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A figura do abuso de direito pode ser encontrada nas hipóteses do artigo 115, caput, da LSA, que se refere ao voto emulativo, cujo propósito é causar prejuízo à companhia e obter vantagem indevida para o votante ou terceiro, vantagem esta que deve ser entendida como a que foge ao padrão da justa distribuição de direitos entre os acionistas, violando o princípio da eqüidade (fairness). A solução, nesses casos, se dá à luz da teoria do abuso de direito.

Por sua vez, o voto conflituoso, previsto na última hipótese do § 1º do artigo 115, traz à tona uma nova discussão, muito bem abordada por Koslowski [36], que dá origem a duas correntes interpretativas: uma primeira, influenciada pela teoria contratualista da companhia, que entende tratar o dispositivo de um conflito substancial; e uma segunda, apoiada na teoria institucionalista da companhia, que diz tratar-se de hipótese de conflito material.

A corrente que defende que o conflito de interesses é substancial pauta-se pela importância que deve ser dada ao direito de voto previsto no artigo 110 da LSA. Entende que o acionista, via de regra, não prejudicará a companhia em seu próprio benefício, razão pela qual não deve ser impedido de votar. O controle do voto deve ser feito, caso se mostre necessário, em momento posterior ao seu exercício, em decorrência da existência do conflito, apurada de acordo com a análise do caso concreto. Afirmam, ainda, que se o conflito previsto § 1º tivesse caráter formal, o voto do acionista conflitante seria nulo, e não anulável, conforme previsão do § 4º do artigo 115. Por fim, defendem que a proibição "formal" do direito de voto poderia configurar um instrumento de abuso por parte dos minoritários, invertendo a relação de controle societário. Em defesa desta corrente estão Miranda Valverde [37] e Azevedo França [38]. França argumenta que a Lei nº 6.404/76 tutela os interesses dos grupos societários e disciplina das relações entre as sociedades coligadas, controladoras e controladas, de forma que seria inimaginável que o legislador, neste contexto, tivesse optado por um sistema formal de proibição do voto, que acarretaria na impossibilidade da controladora votar nas assembléias da controlada, em face do conflito que lhes é inerente.

Doutro lado, a corrente que diz ter aquele conflito caráter formal pauta-se na letra do artigo 115, § 1º da LSA, que possui vedações de voto ao acionista. Afirmam que o legislador preferiu se afastar de uma visão romântica do acionista e não presumir a boa-fé deste nas deliberações em que possua interesses conflitantes. Defendem que o controle do voto deve ser apriorístico, de forma a impedir o seu exercício naquelas situações. Rechaçam o argumento de que a proibição formal poderia ser instrumento de abuso para os minoritários, já que para coibir tal abuso existe a previsão do artigo 115, § 3º. Por fim, dizem que a desconfiança com relação aos acionistas minoritários constitui impedimento para a constituição de um mercado acionário forte, indo contra a própria lógica do sistema, que busca justamente proteger aqueles acionistas através de mecanismos contra-majoritários. Lembre-se que tal proteção também é visada pela Governança Corporativa. Em defesa desta corrente estão Modesto Carvalhosa [39] e Calixto Salomão Filho [40]. Este último adverte que, caso não fosse aquela hipótese de conflito formal, o interesse da sociedade continuaria a corresponder ao do seu controlador.

Fábio Konder Comparato tem uma posição intermediária, e entende que a última figura do artigo 115, § 1º é hipótese que deve ser interpretada sob a ótica do princípio que orienta as outras duas hipóteses de proibição ali previstas, qual seja o de que "ninguém pode ser juiz em causa própria". Identifica naquela hipótese uma questão fática, a ser apreciada no caso concreto, porém não nega a possibilidade de proibição a priori quando o conflito de interesses transparecer da própria estrutura da relação ou negócio sobre os quais se deliberará.

Sobre a questão, interessante trazer à análise algumas decisões proferidas na CVM, que demonstram a aplicação prática dos princípios da Governança Corporativa.

A primeira decisão se deu no Inquérito Administrativo CVM nº TA/RJ2001/4977, julgado em 19 de dezembro de 2001, e no qual a CVM analisou se a Tele Celular Sul Participações S/A (TCS), controladora da CTMR Celular S/A, poderia ou não votar em uma assembléia realizada pela CTMR para deliberar sobre a aprovação de um contrato de licenciamento de marca entre esta e sua controladora indireta, a Telecom Italia Mobile (TIM), e que previa o envio de 1% do faturamento de royalties da receita líquida da CTMR para a TIM, detentora da marca. Para a aprovação do contrato, foi essencial o voto da TCS. Entendeu-se pela existência do conflito de interesses, uma vez que a TCS figurava em ambos os pólos da relação jurídica, tendo interesse em sua formação. A CVM adotou o critério formal de interpretação do conflito e entendeu que a TCS deveria abster-se de votar, de forma a garantir maior transparência aos demais acionistas. Em sua declaração de voto, o presidente José Luiz Osório de Almeida Filho, aplicando o princípio da disclosure, entendeu que "deve (a CVM) cuidar para que haja a devida transparência acerca das circunstâncias que envolvem esse tipo de contratação" e que "essa transparência não é obtida com a simples sujeição da matéria à assembléia, para que esta decida acerca da possibilidade dessa contratação ou não, mas, somente, com a divulgação de todos os dados e informações possíveis acerca do contrato, de modo a permitir que os demais acionistas da controlada possam exercer o seu direito de voto adequadamente, sem o voto daquele que esteja em conflito de interesses, permitindo a formulação de um juízo acerca dos custos e benefícios da matéria a ser votada, o que não ocorreu no caso presente [41]". Esta decisão foi mantida em sede do recurso administrativo nº 4.120, julgado pelo Conselho Federal de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) em 21.01.2004 [42].

Em sentido oposto foi a decisão proferida no Inquérito Administrativo CVM nº TA/RJ2002/1153, julgado em novembro de 2002, no qual se questionou a aprovação, na assembléia-geral da Tele Norte Leste Participações (TNLP), de um contrato de prestação de serviços gerenciais a serem prestados pela Telemar. O contrato foi aprovado graças aos votos da Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil – PREVI e da Fundação SISTEL de Seguridade Social, integrantes do grupo controlador da contratada Telemar. Nesse caso, a CVM adotou o critério material de interpretação do conflito de interesses e decidiu por absolver os acionistas da TNLP, por entender pela inexistência do conflito, vez que o voto foi proferido por acionistas minoritários da Telemar que, nesta condição, não poderiam ser considerados contraparte da sociedade. A absolvição teve por base o entendimento do diretor Luiz Antonio Campos, que fundamentou o seu voto no princípio da boa-fé e na importância que deve ser dada ao direito de votar do acionista [43]. Em 21 de janeiro de 2004, entretanto, o CRSFN julgou, em segunda instância, o recurso administrativo nº 4.585, no qual modificou a decisão da CVM para reconhecer a existência do conflito de interesses formal [44].

Ainda, no processo nº RJ2004/5494, julgado em 16 de dezembro de 2004 pelo Colegiado da CVM, os acionistas preferencialistas da AmBev questionavam a alienação de controle desta para a InterBrew, sob o argumento de que os controladores da AmBev não poderiam ter participado da deliberação da assembléia geral que aprovou a incorporação da Labatt Brewing Canadá Holding Ltd., sociedade controlada da InterBrew, tendo em vista que aqueles haviam se obrigado a aprovar tal deliberação como parte da transação, o que configuraria o conflito de interesses. Neste caso, o Colegiado decidiu pela não ocorrência de voto em conflito de interesse, entendendo que se tratou de uma incorporação de sociedade sob controle comum que não se sujeitaria à regra do artigo 115, § 1º, mas sim à disposição específica do artigo 264 da LSA. Adotou-se, na ocasião, o critério material de verificação do conflito de interesses. Vencida foi, novamente, a diretora Norma Parente [45].

Nesta esteira, Souza entende que o conflito da hipótese residual do dispositivo em comento tem caráter formal, que proíbe o voto conflitante, mas que esta não pode ser vista como uma presunção absoluta, comportando prova em contrário por parte do acionista proibido de votar, para demonstrar que seu voto será norteado pelo interesse social. A autora critica a solução legal para o conflito, por entender que aquela se baseia no conceito aberto de "interesse social", que não possui definição unívoca na doutrina, e por considerar que é difícil estabelecer de forma precisa as hipóteses de conflito, o que gera a ineficácia do dispositivo.

Por último, cumpre trazer para discussão a questão do veto imposto à modificação pretendida pela Lei nº 10.303/01, que acrescentaria os parágrafos 5º ao 10º ao artigo 115. Aqueles parágrafos propunham um procedimento legal para se apurar a existência de conflito de interesses, que permitiria a convocação de uma assembléia-geral específica, inclusive pelos minoritários, para tratar do tema. As razões do veto, contidas na mensagem nº 1.213/01 [46] foram fundamentadas no princípio majoritário, que visa coibir eventuais abusos dos minoritários, mas que é criticado por alguns doutrinadores. A referida mensagem mencionou que aqueles dispositivos iam de encontro ao interesse público, por ser inócua em termos de proteger o acionista minoritário, ao passo que trariam confusão quanto à configuração daquele conflito, o que acabaria por arrastar a decisão final para o Poder Judiciário, aumentando o já elevado número de processos. Entretanto, o vetado parágrafo 10º dispunha que, caso as partes concordassem, a apuração do conflito de interesses poderia ser solucionada pela via arbitral.

Verifica-se assim que, se a questão já é naturalmente controversa, o veto imposto em nada contribuiu para solucioná-la. Ao contrário, através de uma justificativa que foi contra o próprio espírito da reforma legal e os princípios da Governança Corporativa, restaram prejudicados os minoritários e a própria aplicabilidade do dispositivo legal. Isso porque, acredita-se, a previsão de que os próprios acionistas deliberassem sobre o "conflito de interesses" poderia contribuir fortemente para tornar este conceito mais definido.Acredita-se, assim, que tal medida tão só contribuiu para gerar desconfiança nos acionistas minoritários, que tendem, diante de uma postura do legislador que os desprestigia, a assumir o papel de especuladores. Cabem às próprias companhias, por meio da adoção voluntária das boas práticas de Governança Corporativa, encontrar uma solução para inverter este quadro, a fim de ganhar a confiança destes pequenos investidores.

6.2 O acordo de acionistas

Carvalhosa [47], citado por Osmar Brina Corrêa-Lima, afirma ser acordo de acionistas uma espécie de contrato, submetido às normas de validade do negócio jurídico privado, concluído entre acionistas de uma companhia, e cujo objeto é a regulação do exercício dos direitos referentes às suas ações. Andrade e Rossetti lembram que os acordos de acionistas são instrumentos que podem favorecer o alinhamento dos proprietários da companhia no exercício de seus direitos, salvaguardando o interesse comum. Como conseqüência, as decisões, especialmente aquelas estratégicas, que produzem um maior impacto na companhia, seriam mais seguras. Também, o acordo de acionistas poderia contribuir também no estabelecimento de mecanismos destinados a solucionar desacordos pontuais, harmonizando os interesses.

Entretanto, o acordo de acionistas também recebe críticas de parte da doutrina, que afirma que sua utilização pode, eventualmente, ferir o interesse social. Essas críticas se fundam, basicamente, em aparente contradição existente entre as disposições do artigo 118 e as dos artigos 116, parágrafo único e 154, todos da LSA.

Registre-se, inclusive, que esta discussão foi alvo da primeira Carta Diretriz do IBGC, na qual aquele instituto afirma que, se aplicados de forma equivocada, os parágrafos 8º e 9º do artigo 118 podem reduzir a credibilidade do conselho de administração, submetendo-o às orientações do acionista controlador, e reduzir a proteção dos acionistas minoritários. Como entende que uma interpretação estrita daqueles dispositivos afrontaria os princípios da autonomia dos órgãos da companhia, previsto no artigo 139 da LSA, e o da independência funcional do conselheiro de administração, previsto no artigo 154, § 1º, o IBGC propõe uma interpretação sistemática daqueles dispositivos, compatibilizada com ao § 2º do artigo 118, e conclui que a orientação de voto deve ser recebida pelo conselheiro como mera orientação, que ele só deverá seguir caso concorde expressamente com ela. Por fim, sugere procedimento para compatibilizar os comandos dos §§ 8º e 9º com os princípios e práticas da Governança Corporativa e propõe uma alteração no texto daqueles dispositivos.

Segundo Santos [48], o acordo de acionistas deve ser fielmente respeitado por aqueles que dele fizeram parte, exceto em três situações, quais sejam: 1) quando a orientação advinda do acordo for ilegal; 2) quando a orientação recebida conflitar com o interesse social, em afronta ao princípio da função social da empresa; e 3) quando a orientação puder configurar hipótese de conflito de interesses, em sua acepção formal.

Deve-se admitir que a preocupação demonstrada pelo IBGC e pelos demais debatedores deste ponto específico é nobre, porém exacerbada. Isso porque a solução interpretativa sugerida por eles figura na própria Lei, de tal forma que seria temeroso admitir-se que tais parágrafos pudessem receber interpretação descontextualizada. Nas exceções admitidas ao acordo de acionistas, enumeradas acima, observa-se o seguinte: 1) a orientação ilegal e a que afronta o interesse social configuram agressões aos princípios que regem o nosso ordenamento jurídico, razão pela qual o acordo que as contém deve ser entendido como nulo, por se tratar de negócio jurídico maculado de defeito grave, pois que lhe falta um dos elementos essenciais de validade, qual seja a licitude do objeto; 2) o conflito de interesses, apto a impedir o cumprimento do acordo pela parte que se julgar conflituosa, está disposto no artigo 115, § 1º e é hipótese legal de vedação do voto, se estendendo, naturalmente, ao acordo de acionistas que é também conflituoso. Neste caso, se espera que o próprio acionista conflituoso se abstenha, mediante justificativa, de cumprir o acordo.

Dessa forma, a mudança da legislação [49], proposta pelo IBGC, não é medida necessária no presente momento, pois que a modificação da redação dos §§ 8º e 9º do artigo 118 somente servirá para repetir naqueles dispositivos o que já se encontra no sistema da LSA.

Lado outro, interessante é a observação do Instituto no sentido de que o acordo de acionistas deve encontrar limites nas competências exclusivas atribuídas ao conselho de administração, previstas nos incisos do artigo 142 da LSA, de forma a não exigir do conselheiro posição de subordinação na discussão daqueles assuntos [50]. Tal observação é importante e coaduna-se com os princípios da transparência e responsabilidade corporativa, pois permite a preservação da competência daquele conselho, enquanto garante a necessária independência dos conselheiros no trato dos temas que lhe foram exclusivamente confiados.

6.3 A função social da companhia

A Governança Corporativa e a função social da companhia são temas interligados. Isso porque, mais do que um princípio informador, a função social é o marco legal da Governança no Brasil. O artigo 116, § único da Lei 6.404/76, menciona aquela função social ao dispor que "O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender".

Este dispositivo também destaca o papel do acionista controlador no cumprimento da função social. Enquanto detentor da maior parte das ações com direito a voto e, portanto, principal responsável pelas decisões tomadas no âmbito das companhias, este acionista deve ser considerado verdadeiro agente da coletividade, cujos interesses deve tutelar.

A exposição de motivos nº 196 é ainda mais enfática ao abordar a função social, relacionando-a à própria legitimidade do exercício do poder de controle, ao dispor que "O principio básico adotado pelo Projeto, e que constitui o padrão para apreciar o comportamento do acionista controlador, é o de que o exercício do poder de controle só é legítimo para fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e enquanto respeita e atende lealmente aos direitos e interesses de todos aqueles vinculados à empresa - o que nela trabalham, os acionistas minoritários, os investidores do mercado e os membros da comunidade em que atua." [51]

Toda esta preocupação com a função social existe graças ao papel central exercido, atualmente, pelas companhias na sociedade. As decisões tomadas em seu âmbito podem influenciar no destino de milhares de pessoas. Afinal, as companhias são as principais responsáveis pela circulação das riquezas, pela geração de empregos e pelo progresso tecnológico e científico da sociedade, sendo também os sustentáculos do mercado de capitais.

Hodiernamente, o interesse social não pode mais ser identificado tão só com o interesse dos sócios, e tampouco unicamente com o interesse social. A função social mencionada no artigo 116, parágrafo único da LSA busca a compatibilização destes interesses (não necessariamente contrapostos), permitindo que as companhias expandam suas atividades e a ampliem seus lucros, desde que pautadas pela responsabilidade social. Aqui, importante destacar as ações socialmente responsáveis referentes ao meio ambiente e ao desenvolvimento educacional, promovidas por empresas como a Vivo S.A. e o banco HSBC S.A.

Pode-se concluir, portanto, que a função social da companhia é cumprida, nas palavras de Ribeiro, quando o interesse público é observado, mediante o respeito dos direitos dos acionistas e a atuação regular da administração da companhia. Ou, melhor, quando as companhias adotam os princípios e práticas recomendados pela Governança Corporativa.

Sobre o autor
Rodrigo Eustáquio Ferreira

Advogado graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduando em Direito de Empresas pela PUC/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rodrigo Eustáquio. Considerações jurídicas sobre a governança corporativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2116, 17 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12644. Acesso em: 18 dez. 2024.

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