4 - POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES POR CASAIS HOMOAFETIVOS
Após toda a exposição aqui realizada, verifica-se que já dispomos de um conjunto sólido para defesa do tema central do presente estudo, ou seja, a possibilidade da adoção por famílias homoafetivas.
Para tanto, urge iniciar análise dos mais variados aspectos psicológicos, sociais e jurídicos incidentes na família homoafetiva e de sua capacidade para adoção de menores.
Ainda, registre-se que a polêmica que envolve o tema deve ser discutida pelos setores da sociedade, de forma a sensibilizar a coletividade quanto aos fatores aqui apresentados e a melhor forma de solução do caso.
4.1- Aspectos jurídicos sobre a família homoafetiva: união estável
Como foi demonstrado até este ponto, a intenção da Lei Maior, ao alterar a forma de se compreender a família era de ampliar esse conceito e abarcar as ditas famílias alternativas – aquelas que não são formadas pelo instituto do casamento -, estendendo a proteção do Estado a todas as comunidades familiares unidas por laços volitivos sentimentais em detrimento de meras formalidades.
Nesse ínterim, não deve o Direito cerrar os olhos para outra realidade social: a existência de famílias homoafetivas, que são aquelas formadas por pessoas do mesmo sexo e possível filiação.
Há muitos teóricos que ainda se recusam a aceitar esse tipo familiar, sob os auspícios de argumentos preconceituosos e carregados de velhos pontos de vista de uma moralidade religiosa, incompatíveis com a contemporânea dinâmica social.
Ao negarem a existência da família homoafetiva, tais teóricos criam um padrão discriminatório plenamente divergente dos objetivos da República Federativa do Brasil, como liberdade e vedação à discriminação, insculpidos no bojo de seu artigo 3º.
Para alcançar tal conclusão, convidamos o leitor para acompanhar este simples raciocínio lógico-hermenêutico: quando um homem e uma mulher resolvem ligar-se por laços sentimentais, assumindo o compromisso de mútua ajuda moral e material, seja pelo casamento ou através da união estável, ser-lhes-ão conferidas todas as proteções do Estado previstas no artigo 226, caput da CRFB.
Contudo, dois indivíduos do mesmo sexo também podem unir-se por vínculos sentimentais, assumindo o compromisso de mútuo respeito e consideração, com recíproca ajuda moral e material, conforme o aduzido no artigo 2º e seus incisos da Lei 9.278/96.
Não reconhecer a possibilidade acima mencionada, ou seja, a família homoafetiva, a nosso sentir implica discriminação do cidadão por sua orientação sexual, ou seja, frontal confronto à letra do artigo 3º, incisos I e III da CRFB. Em outras palavras, seria o mesmo que dizer que somente a família heteroafetiva é juridicamente aceita e qualquer tipo de família homoafetiva é indigna da proteção que o Estado dispensa às famílias, por ser a homossexualidade padrão meritório de tratamento desigual.
Entretanto, a sociedade, de um modo geral, vem reconhecendo a existência da família homoafetiva, principalmente após a publicação da Instrução Normativa INSS n.º 25/2000, que disciplina os procedimentos adotados para a concessão de pensão por morte e auxílio-reclusão pago ao(à) companheiro(a) homossexual. O Estado brasileiro, com esta medida, reconhece pela primeira vez no Brasil a existência de união estável e da família homoafetiva.
Após a edição de tal ato normativo, bancos e seguradoras vêm estendendo benefícios de planos de saúde, seguro de vida, planos de previdência privada dentre outros ao(à) companheiro(a) homossexual, demonstrando uma aceitação social e o reconhecimento da família homoafetiva. Tais medidas vêm sendo copiadas por alguns institutos de previdência social dos servidores públicos, como no Município do Rio de Janeiro, além de planos de saúde de grandes sociedades empresárias, como Furnas Centrais Elétricas e Companhia Vale do Rio Doce.
Como consequência lógica da evolução conceitual aqui demonstrada, o Estado do Rio de Janeiro, em louvável atitude, apresentou ao Supremo Tribunal Federal - STF em 27/02/2008 a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, processada através do n.º ADPF 132. O autor aduz que, em suma, quando o Estado manifesta posicionamentos contrários ao reconhecimento da união estável entre indivíduos homossexuais, seja por atos administrativos, seja por omissão legal, ou mesmo por decisões judiciais, descumpre princípios fundamentais da Constituição referentes aos direitos de igualdade (artigo 5º, caput), liberdade e autonomia da vontade (artigo 5º, II), dignidade da pessoa humana (artigo 1º, IV) e segurança jurídica (artigo 5º, caput).
Tal ação tem por objetivo reconhecer a união estável entre cidadãos homossexuais, estendendo aos companheiros as benesses previstas aos cônjuges e companheiros de servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro, previstas no Decreto-lei Estadual n.º 220/75. Até o presente momento o Plenário do STF ainda não julgou o mérito desta questão.
Não se pode olvidar também que a Lei 11.340/05, a famosa Lei Maria da Penha, que visa à proteção da mulher contra a violência doméstica, ao delimitar seu âmbito de proteção, no parágrafo único de seu artigo 5º, reconhece a existência da família homoafetiva, sendo a única legislação brasileira que a menciona expressamente. É a segunda vez que o Estado reconhece esse tipo de família, desta vez, através de lei federal.
Alguns teóricos, como Débora Vanessa Caús Brandão, Rainer Czajkowski e Washington de Barros Monteiro, não reconhecem a possibilidade jurídica de homossexuais constituírem uma família por lhes faltar a capacidade procriativa natural. Se isso fosse verdade, também não poderiam ser reconhecidas como família, aquelas formadas por casais estéreis, já que possuem a mesma incapacidade procriativa.
Entretanto, a situação aqui descrita não ocorre por representar discriminação injusta, além da procriação não ser o objetivo exclusivo da união afetiva entre duas pessoas. Não se pode olvidar, por oportuno, que, pela dicção do artigo 227, §6º da CRFB, a adoção é uma ficção jurídica que substitui a concepção natural, criando laços de filiação entre adotante e adotado, ou seja, a "capacidade procriativa natural" atinge a todos os tipos familiares, suprindo possíveis deficiências da família.
Muito embora o artigo 226, §3º CRFB e o artigo 8º da Lei 9.278/96 afirmem que será facilitada a conversão da união estável em casamento (e sobre tal norma jurídica repousa interpretação puramente gramatical em que se suportam os antagonistas à união homossexual), ousamos entender ser possível que um casal homoafetivo seja declarado como vivendo em união estável por não haver na legislação citada a exigência da heterossexualidade, relegando ao exercício hermenêutico anteriormente demonstrado o reconhecimento do direito de homossexuais unirem-se. Não se olvide que a favor dos casais homossexuais há os princípios constitucionais democráticos que lhes asseguram tratamento humano, digno e sem discriminações e preconceitos, bem como a liberdade de pensamento e a autonomia de vontade.
Aliás, cabe ressalvar que, embora o tema do presente estudo não seja especificamente a união estável nas famílias homoafetivas, é de extrema importância estudar a possibilidade de união estável entre cidadãos homossexuais à medida que o artigo 42, §2º do ECA estatui que a adoção conjunta será deferida a somente a casais ou conviventes em união estável.
O Direito brasileiro ainda caminha com dificuldades no sentido de conferir validade jurídica às famílias homoafetivas. Entretanto, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS, como era de se esperar, deu um passo maior que todos os outros, formando conjunto denso de decisões favoráveis, conforme se verifica dos exemplos abaixo:
"(...) O ordenamento jurídico brasileiro não disciplina expressamente a respeito da relação afetiva estável entre pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma, a lei brasileira não proíbe a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Logo, está-se diante de lacuna do direito. Na colmatação da lacuna, cumpre recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, em cumprimento ao art. 126 do CPC e art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.
(...) Na aplicação dos princípios gerais do direito a uniões homossexuais se vê protegida, pelo primado da dignidade da pessoa humana e do direito de cada um exercer com plenitude aquilo que é próprio de sua condição. (...) A análise dos costumes não pode discrepar do projeto de uma sociedade que se pretende democrática, pluralista e que repudia a intolerância e o preconceito. Pouco importa se a relação é hétero ou homossexual. Importa que a troca ou o compartilhamento de afeto, de sentimento, de carinho e de ternura entre duas pessoas humanas são valores sociais positivos e merecem proteção jurídica.
Reconhecimento de que a união de pessoas do mesmo sexo gera as mesmas consequências previstas na união estável. Negar esse direito às pessoas por causa da condição e orientação homossexual é limitar em dignidade a pessoa que são.
A união homossexual no caso concreto.
Uma vez presentes os pressupostos constitutivos da união estável (art. 1.723 do CC) e demonstrada a separação de fato do convivente casado, de rigor o reconhecimento da união estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano.
Via de consequência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, tal como a partilha dos bens, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual". (Apelação Cível 70021637145, 8ª Câmara Cível TJRS. Relator: Des. Rui Portanova. Julgamento: 13/12/2007) (grifou-se).
O Judiciário Gaúcho tem posicionamento firmado quanto ao reconhecimento da legalidade e legitimidade das uniões homossexuais, reconhecendo-lhes os efeitos da união estável, conforme os ditames legais do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC: diante de uma questão em que há uma lacuna da lei, o TJRS aplica os preceitos do Direito de Família por analogia e julga sob o pálio dos princípios gerais do direito previstos no texto da Constituição, como liberdade, isonomia, vedação à discriminação e dignidade da pessoa humana.
O órgão julgador, defronte a uma questão de alta indagação quanto a presente, em que há relevante clamor social e extrema controvérsia, deve despir-se completamente de preconceitos e de convicções pessoais, políticas e religiosas, e interpretar o pleito jurisdicional conforme as disposições constitucionais e sob os auspícios de noções de Justiça. Taxar de ilegal a união entre dois indivíduos homossexuais, negando-lhes as proteções estatais ou reconhecer tão somente os efeitos patrimoniais atinentes a uma sociedade de fato significa abandonar direitos preciosos desses cidadãos, classificando-os como inferiores em relação aos heterossexuais. Assim, uma decisão judicial que não reconhece a união estável homoafetiva constitui preconceito e discriminação chancelados pelo Poder Público.
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a questão ainda é, infelizmente, negligenciada por seus Desembargadores. E o absurdo ser perfaz no momento que o Órgão Especial do TJRJ julgou procedente a Representação por Inconstitucionalidade n.º 2004.007.00166, retirando do ordenamento jurídico estadual o parágrafo 7º do artigo 29 da Lei Estadual 285/79, que reconhecia o companheiro homossexual como beneficiário da pensão paga pelo IPERJ – Instituto de Previdência do Estado do Rio de Janeiro.
Entretanto, apesar disso, o Poder Judiciário do Rio de Janeiro foi pioneiro em deferir adoções a homossexuais solteiros, quando o Dr. Juiz Siro Darlan era titular do Juizado de Menores. Merece aplausos a atuação deste Magistrado, pois mantém sua brilhante atuação judicante na 12ª Câmara Cível, conforme se destaca:
"(...) Inicialmente, convém ressaltar que a nova dogmática constitucional impõe a efetividade imediata dos direitos fundamentais, os quais configuram declaração mais pormenorizada daquilo que implica ‘dignidade’ que é justo que os homens reconheçam-se uns aos outros.
Nesse sentido impõe-se a interpretação das normas constitucionais em consonância ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana, consoante previsto no artigo 1º, III da Constituição da República. Outrossim, o artigo 3º da Constituição da República trata dos objetivos fundamentais da República, como a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo e cor. Ainda, o clássico artigo 5º da Carta Magna prevê que todos são iguais perante a lei. De forma específica, o artigo 226 da Constituição da República dispõe que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Adotada esta ordem de idéias, observa-se que o ser humano detém um valor que lhe é intrínseco, excluída apreciação acerca de origem, raça, sexo e cor, cabendo a ele ser concedido o cuidado o cuidado inerente de sua condição de ser humano.
‘(...) Um Estado que se quer democrático, onde a dignidade da pessoa humana é erigida à condição de fundamento da República, não pode, sob pena de contrariar frontalmente o ordenamento constitucional, partir de uma perspectiva de exclusão de arranjos familiares, atenda-se, tecnicamente, entidades familiares não mencionadas expressamente pela CF, a que denominamos entidades familiares implicitamente constitucionalizadas. (...)’ Adotados tais parâmetros, vislumbro que a relação homoafetiva merece proteção como entidade familiar, não podendo o Poder Judiciário se manter alheio ou distante das novas concepções que permeiam a sociedade. Não se pode denegar a tutela jurisdicional, sendo certo que a união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar, não podendo os julgadores se manterem arraigados a meros conceitos ultrapassados, em dissonância à evolução social. (...)". (Apelação Cível 2006.001.09083, Lavratura de voto vencido, 12ª Câmara Cível TJRJ. Revisor: Des. Siro Darlan. Data da lavratura: 01/11/2006) (grifou-se).
Outra questão concernente ao assunto abordado é a tendência de parte da jurisprudência e da doutrina em fazer concessão outrora apontada às famílias homoafetivas: se de um lado não se reconhece à união estável, por outro, declara-se a existência de uma sociedade de fato entre o casal. Tal solução atende somente às questões patrimoniais, mas negligencia completamente as relações decorrentes da constituição da família.
A referida solução, embora represente, de certo modo, um pequeno avanço jurídico, de outro lado representa ainda o pensamento preconceituoso arraigado na mentalidade coletiva brasileira, pois ainda se recusa de chamar de família a união entre homossexuais, relegando-os à frieza do conceito de "sociedade de fato", que representa uma sociedade empresária informalmente constituída, o que não condiz com a complexidade de relações afetivas, patrimoniais, atuariais, sucessórias e reais atinentes às famílias.
O próprio STF, em outra oportunidade, reconheceu a possibilidade de união estável nas famílias homoafetivas, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 3300:
"(..) o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. (...): ‘A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso. Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção. (...)". (ADI 3300, Tribunal Pleno do STF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: 03/02/2006) (grifou-se).
Recentemente, mais precisamente em 02/09/2008, o STJ julgou o Recurso Especial n.º RESP 820.475 em que a maioria da 4ª Turma reconheceu a existência da união estável entre dois indivíduos homossexuais, um brasileiro e outro canadense, formalmente casados no Canadá, país de origem de um dos consortes.
Os recorrentes pleiteavam o reconhecimento da união estável como forma de reconhecer o casamento institucional celebrado no Canadá, gerando todos os efeitos jurídicos decorrentes da família.
Esse é o maior passo dado por um Tribunal brasileiro, cuja importância se eleva à medida que foi o Tribunal Superior de Justiça o prolator desta brilhante decisão.
Segundo o referido acórdão, o STJ entendeu que a união afetiva pública e duradoura há de ser considerada uma instituição familiar, independentemente do sexo dos cônjuges. Além disso, reconheceu que só seria juridicamente impossível uma família homoafetiva se a lei assim o determinasse, o que não ocorre.
O reconhecimento da legalidade e da juridicidade da família homoafetiva vai além de simples declaração judicial, pois, além de representar verdadeira vitória a este grupo tão desrespeitado e marginalizado de nossa sociedade, tem importância jurídica à medida que são reconhecidos efeitos e prerrogativas previstos tanto na CRFB quanto nas legislações extravagantes, como, por exemplo, direito de percepção de pensão, efeitos sucessórios, possibilidade de inscrever o(a) parceiro/parceira como dependente do plano de saúde oferecido pelo empregador, benefícios de previdência privada, impenhorabilidade do bem de família, divórcio e seus efeitos patrimoniais, direito a alimentos e direito à adoção conjunta.
Assim, é patente a existência da família homoafetiva, que em nada difere da família heteroafetiva, seja esta concebida pelo casamento, seja esta formada por meios alternativos, cabendo aos operadores de Direito e a seus teóricos o desenvolvimento destes conceitos e sua aplicação, unificando pensamentos, teses e jurisprudência, buscando regulamentação legal, dirimindo conflitos e expurgando dúvidas.
4.2- Aspectos psicossociais sobre a homoparentalidade
As regras do processo de adoção são claras quando estatuem que somente será deferido tal pedido se a família representar ambiente saudável, tanto material quanto pelas questões sentimentais em relação ao menor. Assim, além da questão jurídica estudada no item anterior, há também os aspectos psicossociais envolvendo a matéria da família homoafetiva, da homoparentalidade e dos efeitos desta sobre os filhos, o que confirma a tese defendida no presente trabalho.
Necessário se faz ressaltar que são inúmeros os casos de menores brasileiros convivendo de certa forma no seio de famílias homoafetivas, de maneira mais ou menos intensa.
Vozes(3) têm argumentado que a existência das famílias homoafetivas e a prática da homoparentalidade deveriam ser proibidas sob a falsa alegação que estas causam danos irremediáveis às crianças, das mais variadas espécies, o que não se coaduna com a verdade apresentada nas rotinas familiares do mundo inteiro.
Inicialmente, convêm ressaltar que há praticamente consenso na comunidade científica atinente ao fato que "pai" e "mãe" são papéis sociais interpretados pelos indivíduos, carregando em si o conjunto de atos que estes devem adotar no curso da socialização, como se conclui da seguinte leitura:
"Há um mito que cerca não apenas o casal homossexual com filhos, mas todo relacionamento homoafetivo de que um tem que exercer um papel ativo (considerado masculino) e outro o passivo (entendido como feminino), embora saibamos que gênero é uma categoria social, historicamente flexível e, portanto, mutante, sujeita às modificações de cada sociedade em seus diversos momentos. A flexibilização dos papéis sociais de gênero aponta para um maior questionamento do ser masculino e feminino, independente da orientação do desejo."(4)
Nada impede que casais homoafetivos eduquem com sucesso uma criança, pois, "de acordo com a psicanálise, a função materna e paterna são exercidas pela linguagem (...) qualquer pessoa, independente do sexo biológico, pode suprir essa carência"(5). Assim, as ditas "figura paterna" e "figura materna" podem ser exercidas independentemente do parentesco ou mesmo do sexo.
Como visto, a família homoafetiva tem validade jurídica, posto que formada por laços sentimentais, constituindo ambiente saudável e normal para o desenvolvimento dos filhos, conforme os dados que seguem.
Em meados de 1970 foram estudadas as relações existentes no seio de famílias alternativas da Califórnia, principalmente homoafetivas, e seus impactos na criação, educação e socialização dos filhos(6). Os pesquisadores concluíram que a prole destas famílias demonstra mesmo nível de ajustamento encontrado nas crianças das famílias heteroafetivas. "As meninas são tão femininas quanto as outras e os meninos tão masculinos quanto os demais". Concluíram também que a homossexualidade dos pais não afeta a sexualidade dos filhos, fato que só reforça a teses de que a homossexualidade é estado de fato, característica inerente ao indivíduo, portanto não é doença, tampouco contagiosa.
Outra pesquisa realizada em 1976(7) constatou que mães homossexuais são tão aptas quanto as heterossexuais para criar e educar a prole. E a ausência da "figura paterna" é compensada por meios alternativos, como brinquedos, terapias, parentes, como tios e avôs, bem como outras pessoas próximas, como professores, vizinhos, amigos, etc. Não foram identificadas tendências homossexuais e/ou confusões na identidade sexual das crianças por conta exclusivamente da orientação sexual da família, tampouco impulsos incestuosos das mães, concluindo que "a criação em lares formados por lésbicas não leva, por si só, a um desenvolvimento psicossocial atípico ou constitui um fator de risco psiquiátrico".
A Associação Americana de Psicologia, em 1995, termnou profunda pesquisa sobre a questão da homoparentalidade, constituída de uma amostragem muito densa e de observação regular, concluindo que
"as evidências sugerem que o ambiente doméstico promovido por pais homossexuais é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento ‘psicológico das crianças’. A maioria das crianças, em todos os estudos, funcionou bem intelectualmente e não demonstrou comportamento ego-destrutivos prejudiciais à comunidade. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, auto-estima, habilidade de liderança, ego-confiança, flexibilidade interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças que vivem com pais homossexuais não demonstravam diferenças daqueles encontrado com deus pais heterossexuais."(8)
Convém ressaltar, embora seja óbvio, que a analisada unidade familiar homoafetiva que representa âmbito familiar ideal para a criação e a educação da prole, é aquela social, afetiva e psicologicamente bem estruturada, cujos laços se dão em decorrência do sentimento de afeto, lastreados na confiança, no respeito mútuo, na durabilidade e na publicidade, umbrais sólidos e seguros para as relações microssociais familiares.
Diante de todo o exposto, verifica-se que a paternidade/maternidade independem da orientação sexual dos pais, sendo esta última completamente irrelevante para a boa educação e criação da prole(9). O ambiente familiar homoafetivo é também saudável e propício ao desenvolvimento sadio do menor enquanto indivíduo, assim como ator social. Qualquer argumento contrário é baseado em preconceito e discriminação, por que não se baseia em conclusões científicas, mas tão-somente em convicções pessoais.
4.3- Possibilidade de adoção por famílias homoafetivas
A beleza e a complexidade do presente tema são exatamente as problemáticas sociais envolvidas, dentre elas a tendência natural do ser humano em resistir aos movimentos que buscam revolver antigos padrões e pensamentos. Muitos juristas(10) são completamente contrários ao reconhecimento deste direito sob a falsa alegação que a família homoafetiva não oferece subsídios à criação saudável dos filhos.
Entretanto, o que parte da doutrina e dos leigos vem apregoando é um verdadeiro absurdo axiológico, no sentido de "endemoninhar" a família homoafetiva, associando-a a perversões psicóticas e a um nível de desestruturação tal que as tornaria incapazes de criar satisfatoriamente uma criança.
Entretanto, profissionais gabaritados realizaram as pesquisas supramencionadas, demonstrando de uma vez por todas que casais homoafetivos são plenamente capazes de constituir família sólida e compor um ambiente bom para criação de seus filhos. Concluíram também que entre a hetero e a homoparentalidade não há diferenças de quaisquer espécies, surtindo os mesmos efeitos psicossociais sobre seus respectivos filhos. Assim sendo, não pode o Direito deixar de apreciar essa dinâmica social que vem ocorrendo há muito tempo, mas que até agora o Estado, por seu poder legiferante, ainda não regulamentou de modo socialmente necessário e satisfatório.
Quando o tema é a adoção por indivíduo homossexual solteiro, não há maiores debates na jurisprudência, ou seja, o pensamento jurídico brasileiro, de certa forma, já avançou em reconhecer parte dos direitos tangíveis às famílias homoafetivas monoparentais.
A problemática reside quando se defende o direito de adoção conjunta pela família homoafetiva, ou seja, por ambos companheiros/companheiras. Isso porque a norma contida no artigo 42, §2º do ECA estatui, in verbis que:
"a adoção por ambos os cônjuges ou concubinos (sic) poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado vinte e um anos (sic) de idade, comprovada a estabilidade da família."
Como o ECA foi publicado em 1990, ou seja, doze anos antes do Novo Código Civil, onde lê-se "concubinos", deve ser lido "conviventes em união estável" e "vinte e um anos" deve ser substituído por "dezoito anos". Assim, os mais conservadores utilizam-se da letra fria do artigo 226, §3º da CRFB e do artigo 1º da Lei 9.278/96 para vedar o reconhecimento da união estável entre homossexuais, sem atentar para a lógica sistemático-jurídica esposada ao longo deste estudo.
Da mesma forma que ocorre com a união estável, também não há legislação proibindo o deferimento da adoção conjunta às famílias homoafetivas, ocorrendo, portanto, uma omissão legal. Assim, tal a omissão deve ser suprida, nos termos do artigo 4º da LICC, pela analogia, pelos costumes e pelos princípios gerais do direito, devendo o julgador ter em mente o fim social e o bem comum a que se destinam tanto a lei quanto a dicção jurisdicional (artigo 5º da LICC). E a CRFB contemporânea dispõe de um enorme arsenal de princípios democráticos que não permitem que o pedido de adoção conjunta seja indeferido pelo Poder Judiciário.
Deve-se ter em mente que, no momento da análise do caso concreto, expurgar-se-á qualquer análise moral sobre a homossexualidade. Não faz parte do crivo conceitual se o observador a tem por correta ou não, se ela é ou não natural, se ela ofende ou não a vontade de Deus. Simplesmente pelo fato de pesquisas científicas idôneas comprovarem que a orientação sexual é valor particular de cada indivíduo, este padrão discriminatório deve ser abandonado, por se basear em caráter inerente ao indivíduo, configurador da proteção dispensada pelos Direitos Humanos. Considerar-se-ão, portanto, os princípios constitucionais, tais como liberdade (de pensamento e mesmo sexual), direito a tratamento igualitário, dignidade da pessoa humana, direito de não ser discriminado, bem como os fins sociais a que se destina o direito da adoção pleiteado por famílias homoafetivas.
Como já asseverado, uma família homoafetiva não dispõe de capacidade de constituir prole natural, por ser biologicamente necessária a presença dos gametas masculino e feminino para formar o embrião que originará o novo indivíduo humano. Entretanto, quando a atual Constituição Federal rompe a prevalência dos filhos naturais sobre os adotivos, o instituto da adoção passa a ser ficção jurídica, suprindo a filiação natural.
E como sendo direito constitucionalmente previsto, a adoção não deve ser negligenciada às famílias homoafetivas, conforme anotam os princípios da igualdade (artigo 5º, caput e inciso I CRFB), da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III CRFB) e o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil em promover o bem de todos sem qualquer forma de preconceitos (artigo 3º, IV CRFB). Assim sendo preceitua o artigo 43 do ECA e o artigo 1.625 do CC, que a adoção será deferida observando-se sempre a melhor alternativa para o menor adotando. Ao ser proposto pedido de adoção por uma família, seja ela hetero ou homoafetiva, deve o Juízo competente anotar prazo de estágio de convivência, com acompanhamento das equipes de psicólogos e assistentes sociais (artigo 46 do ECA).
Se forem observados os ajustamentos e a saudável convivência do menor adotando no seio da família, mesmo que ela seja homoafetiva, outra não pode ser a sentença senão a procedente, pois estará atendido o requisito do artigo 43 do ECA e do artigo 1.625 do CC/02.
Não é novidade a criatividade do povo brasileiro em face das adversidades e das lacunas jurídicas. Como a jurisprudência uníssona é favorável à adoção por solteiros homossexuais, muitos ingressam com ações de adoção como se assim o fossem, e, após o deferimento do pedido, voltam a conviver com seus(as) companheiros(as), formando uma família homoafetiva com prole.
Tal medida, contudo, acarreta consequências jurídicas que podem vir a ser prejudiciais ao filho no futuro, pois este terá direitos sucessórios, alimentares, previdenciários e atuariais somente pela linhagem do pai ou mãe que efetivamente o adotou. O pai ou a mãe que não adotou o menor no caso hipotético apresentado encontrará sérias dificuldades em inscrevê-lo no plano de saúde oferecido por seu empregador, bem como perceber benefícios como auxílio-escola, salário-família, pensões previdenciárias por morte, acidente e outros.
Há também uma questão social importante a ser considerada. Verifica-se que existe uma infinidade de menores abandonados nos orfanatos e instituições, dependentes dos parcos recursos e da caridade alheia, sonhando com o dia em que serão finalmente aceitos e amados por uma família de verdade. Negar um pedido de adoção conjunta a um casal homoafetivo pode selar para sempre um destino triste e sem volta para este menino ou menina, que será entregue às ruas depois de certa idade, onde terá contato com toda a sorte de desgraças e condutas degradantes do ser humano, com consequências sentidas diretamente pela sociedade como um todo.
Pelo exposto, percebe-se que indeferir a adoção conjunta às famílias homoafetivas, nos termos do artigo 42, §2º do ECA, além de representar preconceito e discriminação pela orientação homossexual dos indivíduos, implica diretamente em sérios prejuízos ao menor adotando que terá seu leque de direitos e interesses reduzidos à metade. Além disso, cria um padrão discriminatório e desproporcional entre os adotados por famílias heteroafetivas e homoafetivas.
O Poder Judiciário brasileiro teve a oportunidade de deferir dois pedidos de adoção realizados por famílias homoafetivas, nos famosos casos de Catanduva/SP e Bagé/RS.
Os cabeleireiros da cidade de Catanduva, interior de São Paulo, Vasco Pedro da Gama e Júnior de Carvalho possuíam relacionamento público e estável já há 14 (quatorze) anos quando ingressaram, em 2004, com pedido de adoção, sendo-lhes deferido o direito de adotar a menor Theodora Rafaela Carvalho da Gama, escolhida pelo casal em um orfanato, após regular estágio de convivência e expedição de parecer positivo da equipe de psicólogos e assistentes sociais, bem como do próprio Ministério Público. Assim, em decisão inédita, o Juízo da Vara Única de Infância e Juventude de Catanduva deferiu o sonhado direito de adotar conjuntamente Theodora em 01/11/2006, passando a ser esta a primeira família homoafetiva com prole oficialmente reconhecida em território brasileiro.
O segundo caso foi a do casal de mulheres em Bagé, interior do Rio Grande do Sul, em que o Juízo deferiu a adoção conjunta a ambas conviventes de três irmãos menores de idade. Elas já cuidavam dos dois mais velhos desde o nascimento, quando a mãe biológica lhes ofereceu o terceiro recém-nascido. Em sua sentença, o MM. Juízo argumentou que "a sociedade não pode ignorar a relação entre pessoas do mesmo sexo", que ele qualifica como "um determinismo biológico, e não uma mera opção sexual". O magistrado enfatizou que "o homossexualismo (sic) não afeta o caráter nem a personalidade de ninguém". Ao conceder a adoção, considerou a excelente criação e ambiente de afeto em que vivem as crianças, satisfazendo todos os requisitos que muitas vezes não estão presentes nos lares de casais "considerados normais pela sociedade". Entretanto, o Ministério Público impetrou recurso de apelação, tendo o mesmo sido julgado improcedente por unanimidade, em acórdão inédito e de brilhante lavra, conforme se verifica abaixo:
(...) No entanto, a jurisprudência deste colegiado já se consolidou, por ampla maioria, no sentido de conferir às uniões entre pessoas do mesmo sexo tratamento em tudo equivalente ao que nosso ordenamento jurídico confere às uniões estáveis. (...) Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin, na perspectiva da família eudemonista, ou seja, aquela que se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade. É uma questão de opção, ou de determinismo, controvérsia esta acerca da qual a ciência ainda não chegou a uma conclusão definitiva, mas, de qualquer forma, é uma decisão, e, como tal, deve ser respeitada. (...) Partindo então do pressuposto de que o tratamento a ser dado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável, sendo essa convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família deve ser o mesmo que é atribuído em nosso ordenamento às uniões estáveis, resta concluir que é possível reconhecer, em tese, a essas pessoas o direito de adotar em conjunto.
É preciso atentar para que na origem da formação dos laços de filiação prepondera, acima do mero fato biológico, a convenção social. (...)
Além de a formação do vínculo de filiação assentar-se predominante na convenção jurídica, mister observar, por igual, que nem sempre, na definição dos papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo biológico com o sexo social. (...) os estudos especializados não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores. (...) (Apelação Cível 70013801592, 7ª Câmara Cível TJRS. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Julgamento: 05/04/2006) (grifou-se).
Conclui-se, então, que razões não faltam para seja deferido o pedido de adoção proposto por uma família homoafetiva, seja porque é juridicamente possível sua existência, seja porque esta oferece ambiente saudável para a criação do menor, seja porque não deferi-la represente preconceito e discriminação. O que falta é boa vontade do pensamento jurídico brasileiro, teórico e prático, para implementar e regulamentar expressamente a questão abordada.
E, tendo-se em vista o munus publico que envolve a atividade do profissional de Direito, defender os direitos de classes marginalizadas, cuja aplicação ainda demanda controvérsias, significa movimentar o pensamento jurídico e ajudar a sociedade a compreender e a se desenvolver constantemente. Reconhecer o direito de adoção às famílias homoafetivas é de suma importância na luta contra o preconceito, bem como visa integrar os cidadãos e construir um futuro melhor para os menores abandonados e para todo o grupo social.