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A impossibilidade de responsabilização civil dos pais por abandono afetivo

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Agenda 24/06/2009 às 00:00

É impossível condenar um pai a indenizar seu filho por falta de afeto por ser essa uma área na qual o instituto da responsabilidade civil não pode adentrar, devido às peculiaridades que regem o direito de família.

INTRODUÇÃO

A possibilidade ou não de responsabilizar civilmente os pais por abandono afetivo é um tema divergente tanto na doutrina como na jurisprudência. Inúmeros doutrinadores já se manifestaram a respeito do assunto, contudo, com opiniões conflitantes, não chegando a um posicionamento unânime. O Judiciário também já teve a oportunidade de analisar casos concretos nos quais se pleiteava a indenização por abandono afetivo, porém, assim como na doutrina, foram proferidos julgados em diversos sentidos.

Diante desse dissenso, busca-se, no presente trabalho, evidenciar a impossibilidade de condenar um pai a indenizar seu filho por falta de afeto por ser essa uma área na qual o instituto da responsabilidade civil não pode adentrar, devido às peculiaridades que regem o direito de família.

Nesse intuito, primeiramente discorrer-se-á sobre as atuais formas de entidades familiares que hoje são constituídas não apenas pelo vínculo biológico, mas também a partir dos laços de afeto que ligam os seus integrantes.

Em seguida, será abordado o dever da família de proporcionar aos filhos a convivência familiar, conforme coloca a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Posteriormente, considerando os elementos que compõem a responsabilidade civil, será analisada a não configuração desses elementos no caso específico do abandono afetivo. Por fim, far-se-á um exame dos casos jurisprudenciais acerca do tema e ainda do Projeto de Lei nº 700/2007.


1. A afetividade como princípio basilar para formação da família: as atuais formas de entidades familiares

A Constituição Federal de 1988, nos parágrafos 3º e 4º do seu artigo 226, deixou explícito que, além do casamento, a união estável e a relação monoparental (qualquer dos pais e seus descendentes) também formam entidades familiares reconhecidas e protegidas constitucionalmente.

Fala-se ainda em outros tipos de entidades familiares não explícitas na Carta Magna, como, por exemplo, a união homossexual. A doutrina moderna defende a inclusão e a igualdade das entidades implícitas, ressaltando o conceito indeterminado de entidades familiares, já que elas são formadas de acordo com o momento em que se vive. (LÔBO, 2006).

A Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – promulgada em agosto de 2006, trouxe em seu artigo 5º, inciso II e parágrafo único um conceito mais amplo para a família, in verbis:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – (...);

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (...).

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Essa é uma norma infraconstitucional que, com propriedade, conseguiu dispor sobre o conceito moderno de família. De maneira diversa do que ocorreu com a Constituição de 1988, a referida lei não enumerou o que se teria por entidade familiar, trazendo de forma geral o que se considera família na atualidade.

Analisando se esse conceito de família seria aplicado para todo o ordenamento jurídico ou somente para a Lei Maria da Penha, dispõe Alves (2006) que "o ordenamento jurídico deverá sempre reconhecer como família todo e qualquer grupo no qual os seus membros enxergam uns aos outros como sua família."

A evolução e a abrangência das formas de família hoje aceitas devem-se a configuração do afeto como fonte instituidora das relações familiares. Considera-se que os laços de afetividade são tão ou mais importantes do que os laços biológicos. Famílias são constituídas a partir do afeto que há entre os seus membros, tenham eles ligação biológica ou não. "A partir da inclusão das diversas formas de família, conclui-se que os elos entre os componentes são o afeto, o respeito, a vontade de seguir juntos, o tratamento igualitário, etc. O elo biológico, ou genético, não mais sustenta a base familiar." (SILVA, C., 2004, p. 123).

Vale frisar que a importância do afeto nas relações familiares não se faz apenas para a formação delas, mas também para a sua solidificação, estabilidade e harmonia. O afeto não é um sentimento imposto que pode ser convencionado pelas pessoas, e sim um sentimento que decorre naturalmente, não podendo ser cobrado de ninguém.

De maneira diversa entende Costa (2005, p. 21), defendendo que o afeto é um direito-dever dos pais para com os filhos. Essa tentativa de impor a afetividade entre pais e filhos ou entre quaisquer membros da família destoa do sentido atual de entidade familiar, pois se é o afeto o princípio norteador das relações de famílias (DIAS, 2006, p. 61) não há que se falar em imposição desse sentimento apenas porque existe um vínculo biológico que liga pais e filhos ou outros parentes consangüíneos.

É louvável considerar que o direito de família evoluiu a ponto de reconhecer outras entidades familiares que não apenas as explicitadas no texto constitucional, assim como o é reconhecer que a afetividade é fundamental para a constituição de uma família. Dessa forma, como podem agora querer que a afetividade seja imposta a pais e filhos (ou quem sabe num futuro próximo queiram impô-la também a irmãos) fundando-se apenas no vínculo sanguíneo que os ligam?

Se o sangue já não é tão importante, por que agora tentar que ele se sobreponha ao afeto? Se não existe afeto entre parentes ligados pela genética, sejam eles pais e filhos ou não, como poderá o direito impô-lo? Parece uma missão um tanto impossível até para o melhor legislador ou aplicador do direito.

Foi com base no afeto que se admitiu a adoção de crianças por casais homossexuais, conforme entendeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS, 2006, p.23).

Ora, se duas mulheres ou dois homens podem adotar uma criança, então o que importa não é a figura de um homem e de uma mulher que representem um pai e uma mãe. Importante é o afeto que o casal, seja ele heterossexual ou homossexual, dará àquela criança.

Não se coaduna aceitar a adoção por casais homossexuais e caracterizar como imprescindível a presença do pai-homem e da mãe-mulher para boa formação de uma pessoa.

Pode-se concluir que os laços de afetividade são capazes de formar famílias e são essenciais para a sua estabilidade, contudo não é possível obrigar que aqueles ligados por laços genéticos sintam, ou dêem afeto uns aos outros. Há até contradição em admitir que famílias se constituam a partir do afeto, sem que exista nenhum vínculo biológico e, depois querer que aqueles ligados biologicamente sejam obrigados a manter relações de afetividade, sob pena de ressarcimento pecuniário.

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2. A convivência familiar como dever da família na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e Adolescente

A Constituição Federal no artigo 227 dispõe sobre direitos da criança e do adolescente, colocando dentre esses o direito à convivência familiar, atribuindo-o como dever da família, da sociedade e do Estado. No mesmo sentido discorre o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Atente-se para o fato de tratarem esses dispositivos de dever da família e não apenas de dever dos pais. Essa ressalva é importante, pois, como abordado anteriormente, atualmente admite-se diversas formas de entidades familiares, como, por exemplo, a formada por irmãos. Desse modo, as obrigações disciplinadas nesses artigos também são atribuídas a esses membros.

A convivência familiar assegurada é aquela espontânea, baseada no afeto, salutar para os seus componentes, principalmente para as crianças. Ao colocar a convivência familiar como dever da família, não desejou o legislador impor uma relação que não existe. Não se pode aqui olvidar que a família hodierna é aquela construída a partir da afetividade, sendo a convivência familiar fundamental para a formação da criança.

No que concerne a relação paterno-filial, é um grande equívoco relacionar esse dever de convivência ao vínculo puramente biológico. Assume deveres paternais quem exerce o papel de pai ou de mãe, seja por origem genética ou afetividade. Nesse sentido discorre Dias (2006, p. 58): "O direito à convivência familiar não está ligado à origem biológica da família. Não é um dado, é uma relação construída no afeto, não derivando dos laços de sangue."

Ora, torna-se evidente que o conceito atual de família é fundado a partir da afetividade, não essa podendo ser imposta. A convivência familiar constitucionalmente protegida não é aquela forçada apenas porque existe um vínculo biológico, mas sim a constituída por relações afetivas. Vale ressaltar que se assim não o fosse, a convivência familiar seria ineficaz ou até prejudicial para a criança, já que ela não seria uma relação de amor.

O descumprimento desse dever de convivência familiar deve ser analisado somente na seara do direito de família, sendo o caso para perda do poder familiar. Esse entendimento defende o melhor interesse da criança, pois um pai ou uma mãe que não convive com o filho não merece ter sobre ele qualquer tipo de direito.


3. A IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS POR ABANDONO AFETIVO

A doutrina diverge quando a aplicabilidade ou não da responsabilidade civil no direito de família. Adepto pela impossibilidade é Lopes (2006, p. 54): "Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação [...]." Em sentido contrário considera Madaleno (2006, p. 159) que o direito de dano é aplicável sim ao direito de família, tendo por fundamento o abuso de direito que prevê o artigo 187 do Código Civil e não o ato ilícito

Ciente da divergência, admite-se, para estudo do tema proposto, a responsabilidade civil nas relações de família, composta pelos seguintes elementos: conduta, dano, nexo de causalidade e culpa .

Partindo da conduta, seja essa uma ação ou uma omissão, percebe-se que no caso o que poderia ser configurado como tal era o descumprimento do dever de convivência familiar e não a falta de afeto. Impende frisar, como já asseverado anteriormente, que o próprio direito de família prevê punições específicas para a inobservância dos deveres parentais. Silva, R. (2006) considera presente a omissão no caso de desrespeito ao direito do filho à convivência familiar, se o pai agiu voluntariamente e de forma injustificada.

Quanto ao dano, para ser indenizável ele precisaria ser certo e injusto. No caso do abandono afetivo o dano seria o psicológico, não podendo ser dado como certo e injusto. Injusto é o dano causado voluntariamente, que podia ser evitado pelo agente. Nas relações familiares há condutas naturais dotadas de sentimento que não dependem da vontade da pessoa. Não é questão de ser justo ou não os pais amarem o filho, mas sim uma questão natural para a qual ninguém pode ser compelido. Outrossim, o dano causado pelo abandono afetivo jamais poderá ser configurado como certo, pois nada fará cessa-lo, nem mesmo o fim de uma ação judicial que indenize o filho em pecúnia. Quiçá, com o trâmite processual, o dano até aumente devido aos desgastes que uma ação traz para os seus litigantes.

O elemento nexo de causalidade seria ainda mais difícil de ser verificado. Como provar que foi o abandono de um dos genitores que causou aquele dano psicológico ao filho? Destaque-se que nada é monocausal. Cada ser humano reage de uma forma diferente diante da mesma situação. Dificilmente um dano psicológico decorre única e exclusivamente de um só fato. Não é uma decorrência lógica e certa que o filho desprovido de afeto paternal sofrerá necessariamente um dano.

O abalo psicológico também pode ser desencadeado por fatores outros, que não a ausência paterna, sendo influenciáveis o meio onde vive o indivíduo, as outras pessoas com quem mantém relacionamentos, sua índole, seu jeito de ser, sua forma de amar. (LEÃO, 2006).

Por fim, ter-se-ia ainda que constatar a culpa para configuração do dano moral. Age com culpa quem poderia agir de maneira diversa, tendo em vista um dever preexistente. Na subjetividade do que seja afeto, concluir-se-ia pela impossibilidade de condenar alguém por não ter afeto por outrem, visto que poderá ocorrer do agente ter a consciência plena que deu afeto e o ofendido achar exatamente o inverso, ou achar que o afeto dado não foi o suficiente. Leão (2006) assim constata que não há lógica em culpar alguém por não amar, pois não existe um dever geral de amar como um dever geral de cautela.

Interessante observar o que seria protegido com a responsabilização pelo abandono afetivo. Indenizar significa tornar indene, ou seja, sem dano. Contudo, quando o dano é moral, não há como "indenizar", o que pode existir é uma reparação. A doutrina que admite a possibilidade de responsabilização não encontra consenso. Dassi (2006) considera a indenização pecuniária uma forma de desestimular outros pais a abandonarem seus filhos afetivamente. Já Moraes (2005, p. 59) defende que a reparação teria o caráter de reparar o dano sofrido pelo filho, não podendo ter função punitiva. Em uma terceira opinião, expõe Santos (2006) que a indenização teria o caráter compensatório, punitivo e dissuasório. De forma mais moderada, assevera Costa (2005, p.37) que a indenização deveria existir para pagar o tratamento psicológico daquele que sofreu o dano até a sua recuperação, sendo a reparação em dinheiro aconselhável apenas quando ficasse configurado que o tratamento já não seria mais eficaz.

Os ensinamentos dos simpatizantes pela aplicação da responsabilidade civil no caso em estudo também não se harmonizam ao que tange à idade do filho para a configuração ou não do dano moral por abandono afetivo. Moraes (2005, p. 64) defende que não importa a idade para ter o filho direito à indenização. De outro modo entende Costa (2005, p. 31) ao colocar que somente os filhos menores de idade têm legitimidade para pleitear o tipo de indenização ora em comento.

Vale ainda questionar como se daria a mensuração da indenização devida. Sugere Moraes (2005, p.60) que para tanto deve utilizar-se dos seguintes critérios: 1) As condições socioeconômicas paternas; 2) A gravidade do dano e; 3) A condição pessoal da vítima.

Ora, se o valor da reparação for fundado nas condições financeiras do pai, então o caráter da indenização seria claramente punitivo. Se for fundado na gravidade do dano, como mensura-lo diante da própria dificuldade em constatá-lo? A inviabilidade de quantificar um dano por abandono afetivo é notória, sendo impossível ao menos estabelecer uma data para seu início e para o seu término. Por fim, levando-se em consideração a condição pessoal da vítima, restaria configurada a indenização como um meio para melhorar a situação financeira do autor. Estabelecer um quantum debeatur coerente com este tipo de indenização seria uma atividade árdua e, provavelmente, subjetivamente perigosa, gerando reparações pecuniárias de valores ínfimos e também exorbitantes.

Pelo estudo realizado, pode-se perceber que a maioria da doutrina tende a admitir a responsabilização civil dos pais nos casos de abandono afetivo, contudo, divergindo em diversos pontos, longe de haver uma posição consolidada, haja vista os melindres que o assunto enseja.

Para completar a análise proposta, passa-se agora ao exame dos julgados que deram fundamento para todo o debate hoje existente em torno do assunto.

3.2. Análise das polêmicas decisões sobre o tema e do Projeto de Lei nº 700/2007

A primeira decisão sobre o tema em apreciação foi proferida em setembro de 2003, na 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa – RS (Processo nº 141/1030012032-0). Na referida ação, a filha, alegando abandono material e moral do pai pugnou pelo pagamento de R$ 48.000,00 a título de indenização.

Julgando a questão, o juiz Mário Romano Maggioni comparou a rejeição do pai à inclusão do nome indevidamente no SPC. Data venia, tal correlação demonstra a comparação indevida das relações de família com o instituto da responsabilidade civil, olvidando que o direito de família necessita de dispositivos próprios, uma vez que a família é a fonte de formação de todo ser humano e é norteada pelo princípio da afetividade.

Nessa ação, o Ministério Público manifestou-se pela extinção do processo, entendendo que não cabia ao Judiciário condenar alguém por desamor. No entanto, esse não foi o posicionamento do magistrado que condenou o pai a pagar o valor requerido pela filha. Houve o trânsito em julgado da decisão já que o pai foi revel.

O decisório posterior teve grande divulgação na imprensa e gerou grande debate no mundo jurídico. Em abril de 2004, a 7ª Câmara Cível do TJMG (Apelação Cível nº 408.550-5) reformou sentença de primeiro grau que negara a indenização por danos morais ao filho. O magistrado a quo considerou inexistente o nexo causal entre o afastamento e o desenvolvimento de sintomas psicopatológicos pelo menor. Nesse caso o pai nunca havia deixado de honrar com a prestação alimentícia.

O Relator da Apelação, Unias Silva, argumentou que com o cumprimento do dever de convívio seria constituída a afetividade e formado o laço afetivo entre pai e filho.

Seguindo o critério cronológico, em junho de 2004, o juiz Luís Fernando Cirillo, da 31ª Vara Cível Central da Comarca de São Paulo (Processo nº 01.036747-0), julgou parcialmente procedente o pedido formulado por uma filha, condenado o pai à reparação pelo dano moral e pelo custeio do tratamento psicológico da autora, mas negando o pedido de indenização de gastos com o tratamento até agora realizado, já que quem pagava o tratamento era pessoa estranha à demanda. Nessa situação, o pai também fornecia à autora o sustento material.

Na sua fundamentação, o julgador restringiu a aplicação da responsabilidade civil por abandono afetivo, acreditando ser necessária a apreciação de cada caso concreto. Entendeu o magistrado que precisa ser analisado se o pai ou a mãe teve condições de dá mais afeto ao filho e assim não o fez. Ademais, defendeu que é necessário constatar que foi essa falha no relacionamento que provocou o dano no filho. Dessa necessidade de provar o dano discorda Moraes (2005, p. 62) argumentando que o dano moral é in re ipsa, ou seja, o dano seria provado pelo próprio fato.

Até os defensores da responsabilização, como o juiz Luís Fernando Cirillo, admitem a necessidade de restringir a responsabilização nos casos de abandono afetivo por temerem a sua aplicação genérica.

[...], baseada na idéia de despatrimonialização das relações familiares, penso ser imprescindível que se busque estabelecer certos limites ao dever de indenizar decorrente de suposto abandono afetivo, sob pena de se assistir à instalação de verdadeira indústria indenizatória do afeto. (Hironaka, 2006, p.144)

Em outro caso, julgado em julho de 2004, pela 4ª Câmara Cível do TJRJ (Apelação Cível nº 70013801592) negou-se, por unanimidade, provimento ao recurso que visava à modificação da sentença que extinguiu o processo sem exame do mérito. Tratava-se de ação indenizatória proposta pela filha em face do pai, que tinha por objetivo a condenação desse à reparação por dano moral pela sua falta de afeto para com a filha e também por ter deixado de lhe doar um bem prometido.

No caso em questão, a filha, por volta dos 40 anos de idade, propôs ação investigatória de paternidade que foi julgada procedente. Em decorrência, buscou a indenização do pai por falta de afeto durante esses anos.

O Desembargador Relator, Mário dos Santos Paulo, explicitou, em seu voto, a intenção da autora em obter vantagem patrimonial de maneira fácil, frisando a alta soma pedida em caráter indenizatório (1.250 salários mínimos, na época equivalente e R$ 325.000,00). O julgador fixou-se na distinção entre o direito e a moral para fundamentar a sua decisão. Argumentou que a falta de amor e de afeto não pode ser apreciada pelo direito, que não há normas obrigando ninguém a dar amor e afeto, sendo esta questão cabível à moral. Por fim, salientou a problemática que a concessão de indenizações deste tipo podem trazer para o direito, visto que se poderia imaginar o dano moral presente nas situações mais improváveis, acarretando uma "indústria do dano moral".

Em novembro de 2005, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou sobre o assunto ora em comento. O pai condenado no já citado processo do TJMG (Apelação Cível nº 408.550-5) impetrou Recurso Especial (Resp. nº 757411-MG) que, por maioria, foi conhecido e provido. O Ministro Relator Fernando Gonçalves, em seu voto, expôs que o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil já preveem a perda do poder familiar para o caso de abandono, encarregando-se da função punitiva e, principalmente, dissuasória para os pais que abandonam seus filhos.

Colocou ainda o Ministro o seu receio de que esse tipo de ação tenha como escopo o caráter ambicionista do outro genitor e não a intenção de atender ao interesse do menor. Questionou se com a indenização não estará por definitivo afastada a possibilidade de existir uma aproximação entre pai e filho e concluiu que com o trâmite da ação ficariam eles mais afastados afetivamente.

Concordo com a posição do Relator, pois admitir este tipo de ação só dificultaria a relação paterno-filial que se até o momento foi marcada pela falta de afeto, passará agora a ser também maculada pelo desgaste que as relações judiciais ensejam, bem como pela figura monetária. Se havia alguma possibilidade de um dia existir afeto entre a figura paternal e o filho, essa se extinguirá pelo intervencionismo estatal.

Ao analisar a função que teria a indenização, o Ministro concluiu que essa não teria o caráter de reparação financeira - já que essa é obtida por meio da pensão alimentícia - e, nem o efeito punitivo e dissuasório - já que esses são alcançados pela aplicação da perda do poder familiar. Encerrando o seu voto, colocou que não cabe ao Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter relacionamentos com outrem e enfatizou que esse tipo de indenização não traz nenhuma finalidade positiva. Sendo assim, concluiu que o abandono afetivo não é passível de indenização.

Inconformado com a supracitada decisão do Superior Tribunal de Justiça, o autor do pedido de indenização interpôs, em outubro de 2007, no Supremo Tribunal Federal, o Recurso Extraordinário nº 567164. A Procuradoria Geral da República, em novembro de 2007, opinou, em seu parecer, pelo não conhecimento do recurso.

Ainda no mesmo ano de 2007, no âmbito legislativo, o Senador Marcelo Crivella apresentou o Projeto de Lei nº 700/2007, propondo a modificação da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente) para caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal. Dentre as alterações, ele sugere as seguintes redações:

Art. 5º. (...)

Parágrafo único. Considera-se conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental de criança ou adolescente previsto nesta Lei, incluindo os casos de abandono moral. (NR)"

Art. 232-A. Deixar, sem justa causa, de prestar assistência moral ao filho menor de dezoito anos, nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 4º desta Lei, prejudicando-lhe o desenvolvimento psicológico e social.

Pena - detenção, de um a seis meses.

A proposta do nobre Senador limita-se aos menores de dezoito anos, ou seja, às crianças e aos adolescentes. Sendo assim, o caso da filha de 40 anos de idade, julgado pelo TJRJ não estaria protegido por essa norma. Não seria uma distinção injusta?

Na justificação do Projeto defende Marcelo Crivella que: "Portanto, embora consideremos que a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil contemplem a assistência moral, entendemos por bem estabelecer uma regra inequívoca que caracterize o abandono moral como conduta ilícita passível de reparação civil, além de repercussão penal".

Ora, se a responsabilização civil por abandono afetivo já é digna de ser rechaçada, quem dirá a responsabilização criminal. Com o devido respeito, tal criminalização do abandono moral sequer merece ser debatida. O Projeto em questão não se coaduna com o direito de família e nem com o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.

Em 14 de maio de 2009, a Ministra Ellen Gracie, Relatora do supramencionado RE 567164, proferiu decisão monocrática, negando seguimento ao recurso. A referida decisão, foi noticiada, em 27 de maio de 2009, no sítio do Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos:

Ministra arquiva recurso sobre abandono afetivo por não existir ofensa direta à Constituição

A ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), arquivou Recurso Extraordinário (RE 567164) em que A.B.F. pedia ressarcimento por danos morais em razão de abandono familiar. Ele alegava ofensa aos artigos 1º, 5º, incisos V e X, e 229 da Constituição Federal. 

O autor questionava decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que ao dar provimento a um recurso especial concluiu, com base no artigo 159 do Código Civil de 1916, a inviabilidade do reconhecimento de indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo.

"O apelo extremo é inviável, pois esta Corte fixou o entendimento segundo o qual a análise sobre a indenização por danos morais limita-se ao âmbito de interpretação de matéria infraconstitucional, inatacável por recurso extraordinário", explicou a ministra. Ela avaliou que, conforme o ato contestado, a legislação pertinente prevê punição específica, ou seja, perda do poder familiar, nos casos de abandono do dever de guarda e educação dos filhos.

Assim, Ellen Gracie afastou a possibilidade de analisar o pedido de reparação pecuniária por abandono moral, pois isto demandaria a análise dos fatos e das provas contidas nos autos, bem como da legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente), o que é inviável por meio de recurso extraordinário. Para a ministra Ellen Gracie, o caso "não tem lugar nesta via recursal considerados, respectivamente, o óbice da Súmula 279, do STF, e a natureza reflexa ou indireta de eventual ofensa ao texto constitucional".

Ao citar parecer da Procuradoria Geral da República, a ministra asseverou que conforme o Código Civil e o ECA, eventual lesão à Constituição Federal, se existente, "ocorreria de forma reflexa e demandaria a reavaliação do contexto fático, o que, também, é incompatível com a via eleita". Dessa forma, a ministra Ellen Gracie negou seguimento (arquivou) ao recurso extraordinário.

Merece louvor a avaliação da Ministra Relatora ao ponderar, segunda a notícia acima, que "a legislação pertinente prevê punição específica, ou seja, perda do poder familiar, nos casos de abandono do dever de guarda e educação dos filhos".

O entendimento do STJ e da Ministra Ellen Gracie é digno de aplausos e deve ser seguido pelos aplicadores do direito.

Sobre a autora
Danielle Alheiros Diniz

Servidora Pública Estadual, Especialista em Direito Privado (civil e empresarial) pela Esmape em convênio com a Faculdade Maurício de Nassau

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINIZ, Danielle Alheiros. A impossibilidade de responsabilização civil dos pais por abandono afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2184, 24 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12987. Acesso em: 22 dez. 2024.

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