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O trabalho da prostituta à luz do ordenamento jurídico brasileiro.

Realidade e perspectivas

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Agenda 06/12/2009 às 00:00

CAPÍTULO VI. CONTRATOS DE NATUREZA SEXUAL

O contrato de prestação de serviços sexuais pode ser conceituado como o negócio jurídico em que um indivíduo (profissional do sexo) coloca seus serviços de natureza sexual à disposição de outrem (cliente), por um período estipulado, mediante remuneração igualmente acordada.

Do exposto, conclui-se que o objeto do contrato constitui uma obrigação de fazer, qual seja, a prestação de serviços sexuais. Esta pode ser conceituada utilizando-se as características estabelecidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, através da classificação brasileira de ocupações. Assim, a prestação de serviços sexuais possui como elemento principal a execução da relação sexual, embora outras situações possam integrar o conteúdo da presente avença, a saber: realização de streap-tease, massagens etc.

Registre-se que é um contrato essencialmente verbal. Embora plenamente possível, não é situação usual o estabelecimento de contrato de prestação de serviços sexuais na forma escrita, ante as características do objeto contratual. Ademais, tal avença é comumente estipulada por curtos períodos de tempo, fato que obsta a satisfação sexual do cliente como elemento essencial ao adimplemento contratual por parte do prestador de serviços.

No que concerne ao tipo de obrigação característica do mencionado negócio jurídico quanto ao resultado, tem-se que se trata de uma obrigação de meio, vez que, como salientado alhures, incumbe ao prestador de serviços apenas a utilização dos meios necessários capazes de suprir às razoáveis expectativas do cliente, sendo irrelevante o resultado.

Destarte, assinalam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

Incide obrigação de meio quando o próprio conteúdo da prestação nada mais exige do devedor do que o emprego dos meios adequados, sem que se indague sobre o seu resultado. É o exemplo comum do médico, que se obriga a envidar todos os esforços no sentido de aplicar os meios indispensáveis à cura ou sobrevida do paciente, sem que isto implique a obrigação de assegurar a própria cura ou resultado benéfico. [29]

No plano processual, saliente-se que compete à Justiça Comum dirimir possíveis controvérsias acerca do presente contrato, vez que se trata de uma relação de consumo.

2 Contrato de trabalho prostitucional

A igualdade material entre os indivíduos só existe quando os mesmos são tratados de forma a considerar suas particularidades. Nesse diapasão, deve-se tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, como já pregava Aristóteles. É nesse contexto, portanto, que surge o Direito do Trabalho, com a finalidade de equilibrar no plano jurídico a relação desigual existente no plano fático entre empregador e empregado. Assim, identificada a hipossuficiência do trabalhador, surge um conjunto de regras e princípios destinados a protegê-lo no âmbito jurídico.

A relação empregatícia é caracterizada nas situações em que o trabalho é prestado mediante a identificação de alguns requisitos, a saber: trabalho prestado por pessoa física; pessoalidade; não-eventualidade; onerosidade e subordinação. Registre-se que para a configuração da relação de emprego faz-se necessária a presença de todos esses elementos.

É, pois, o contrato de trabalho o instrumento jurídico que formaliza essa relação. Tal instituto possui algumas distinções quando comparado ao contrato clássico do Direito Civil, porquanto alguns direitos e obrigações são impostos por lei ante o princípio da proteção do trabalhador que vige no Direito do Trabalho. Existe, portanto, um conjunto mínimo de direitos e obrigações que não estão insertos no âmbito da livre disposição das partes.

Desse modo, conclui Mauricio Godinho Delgado acerca do conceito de contrato de trabalho:

[...] define-se contrato de trabalho como o negócio jurídico expresso ou tácito mediante o qual uma pessoa natural obriga-se perante pessoa natural, jurídica ou ente despersonificado a uma prestação pessoal, não eventual, subordinada e onerosa de serviços. [30]

Embora a ausência de qualquer elemento seja suficiente para descaracterizar a relação empregatícia, a subordinação desponta como o aspecto principal para distinguir àquela das demais relações de trabalho. A subordinação é jurídica, oriunda do contrato de trabalho, em que pese existirem outras formas do trabalhador subordinar-se ao empregador, como, por exemplo, a econômica.

Como negócio jurídico que representa, o contrato de trabalho também deve atender aos requisitos de validade vislumbrados no Código Civil. Assim é que, faz-se necessário que as partes sejam capazes; o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável; e a forma prescrita ou não defesa em lei, consoante artigo 104 do mencionado diploma legal.

À semelhança do que ocorre com o contrato de prestação de serviços sexuais, já analisado em momento oportuno, o contrato de trabalho prostitucional [31] encontra na ilicitude do objeto a causa para a decretação de sua invalidade. Todavia, aqui, essa ilicitude ocorre de forma acentuada, vez que o Código Penal criminaliza a conduta de terceiros que "exploram" o trabalho das prostitutas. Assim, a manutenção de casa de prostituição é considerada crime pela legislação penal (art. 229, CP), e, dessa forma, surge a proibição do reconhecimento do vínculo empregatício entre a trabalhadora do sexo e os mencionados estabelecimentos.

3 Supostas causas da invalidade dos contratos de natureza sexual

A. Contrariedade à moralidade e aos bons costumes

Diante da impossibilidade de definir objetivamente quais condutas estão de acordo à moral e aos bons costumes, deve-se sopesar, de forma casuística, a adequação de determinado objeto contratual aos mencionados conceitos. Nesse diapasão, surge a seguinte indagação: a prestação de serviços sexuais transgride a moral e os bons costumes?

Para solucionar essa questão faz-se necessário tecer alguns comentários acerca da evolução da noção de moralidade sexual na sociedade brasileira, em que pese à análise deva ser realizada levando-se em consideração a sociedade brasileira da atualidade.

O desenvolvimento das questões atinentes à sexualidade no Brasil está umbilicalmente atrelado aos ideais perseguidos pela Igreja Católica. Nesse diapasão, insta salientar que a última pesquisa realizada pelo IBGE sobre a quantidade de adeptos das diversas religiões no país, datada de 2000, evidenciou que 73,6% da população brasileira é seguidora da Igreja Católica Apostólica Romana. [32]

Assim, desde o período colonial até os dias atuais, o catolicismo desempenhou um papel decisivo na construção da noção de moral, e, especificamente, de moral sexual. Destarte, tal vertente religiosa sempre pregou que o sexo deveria apenas ter uma finalidade: a procriação. O sexo por prazer, as relações extraconjugais, sempre foram taxadas como algo pecaminoso, devendo o cristão afastar-se dessas situações.

Ressalte-se que essa idéia difundida pela Igreja possui uma profunda feição ideológica. A igreja medieval buscava controlar as mentalidades e atitudes dos homens, utilizando-se dessas noções como uma forma de atingir seu objetivo. Nesse ínterim, esclarece Nickie Roberts que como é característico em "todos os sistemas de controle social, a sexualidade era um alvo importante da Igreja e do Estado, o controle dos corpos das pessoas sendo a chave para controlar suas mentes e ações." [33]

Infere-se que moral e bons costumes são conceitos que, embora devam representar um consenso da sociedade, em realidade, constituem os valores defendidos pelas esferas de poder dominantes, destacando-se como mais notáveis o Estado e a Igreja.

Nesse diapasão, posiciona-se Paim, apud Maria Luiza Araújo:

O Estado patrimonial chamou a si a responsabilidade de normatizar a moral como se estivesse lidando com sua família. "No Brasil não há de fato moral social de tipo consensual, que é o ingrediente fundante das instituições do sistema representativo", diz Paim (1994, p.19). Na ausência de discussão da moral social de tipo consensual, a Igreja tomou o lugar que deveria caber à sociedade, interferindo na formulação da moral sexual no período estudado. Observa-se que a normatização da moral entre nós sempre foi numa estrutura vertical, não havendo espaço para o consenso. A questão da sexualidade se torna importante pois implica no desenvolvimento de política relacionada à educação e saúde, propiciando meios para que a família brasileira discuta suas necessidades e encontre suas soluções, tendo uma qualidade de vida e realização pessoal compatível com o advento do terceiro milênio. As questões sexuais estão ligadas ao exercício da liberdade e cidadania e a Ética deve pautar os estudos pois os avanços científicos nos levam a grandes encruzilhadas (como no caso da Bioética). Portanto, pensar a sexualidade é mais que formular programas educacionais, clínicos ou sociais, é, antes de tudo pensar humanidade do homem. [34]

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Ante as considerações formuladas acima é que devem ser analisadas as questões atinentes ao exercício da prostituição no Brasil, e, conseqüentemente, àquelas referentes aos contratos de natureza sexual.

Em que pese à existência de determinados grupos, principalmente ligados à Igreja Católica, contrários à regulamentação legal do exercício da prostituição, é inegável que esta profissão é um fenômeno que sempre fez parte da sociedade, em todos os países do mundo, desde os tempos mais remotos, como demonstrado no primeiro capítulo do presente trabalho.

Nesse ínterim, assevera Rossana Maria Albuquerque:

Tanto a moral quanto as leis expressam determinadas formas de ser social que nunca podem ser mais que a própria sociedade. É por isso que mesmo a moral mais contrária à prostituição, assim como a lei mais severa que proíba a atividade, se mostram incapazes diante do processo real, pois é nele que se encontra a vitalidade da prostituição. [35]

No limiar do século XXI é simples perceber que a sociedade brasileira encontra-se amadurecida e aberta às questões de cunho sexual. O exercício da prostituição deixa de ser visto como uma atividade pecaminosa, amoral. Percebe-se que as profissionais desse ramo são trabalhadoras como quaisquer outras. Possuem família, anseios, sonhos, direitos, obrigações, e, acima de tudo, dignidade humana, consoante evidencia Roberts afirmando que "[...] as prostitutas não pensam apenas nelas próprias quando trabalham na indústria do sexo – a maioria delas também é mãe." [36]

A moralidade pública e os bons costumes transmutaram-se no sentido de não considerar o exercício da prostituição como uma atividade capaz de violentar os valores reais da sociedade. Senão, como explicar a existência de estabelecimentos comerciais destinados exclusivamente ao encontro para fins libidinosos, como são os motéis (que, inclusive, são sujeitos passivos de obrigações tributárias e recebem, por parte do Estado, alvarás de funcionamento)? E quanto às modelos, atrizes e tantos outros profissionais que utilizam seus corpos para fins essencialmente comerciais, como a publicação de imagens em revistas e filmes eróticos? E o que dizer dos diversos estabelecimentos que possuem como atividade-fim a venda de produtos eróticos, como os sexshops e os serviços de tele-sexo?

Nesse passo, arremata Sérgio Carneiro:

A prestação de serviços de natureza sexual é um fenômeno presente, e muito significativo, não apenas na sociedade brasileira, como também em todas as outras sociedades do mundo. Modernamente, como dissemos, o que corresponde ao interesse social e à ordem pública não é mais a marginalização social nem a manutenção dessa realidade em um limbo jurídico, mas sim que essa atividade não constitua motivo de exploração, violência e degradação para os homens e mulheres que a exercem. [37]

As opiniões hipócritas e preconceituosas de alguns setores sociais, que representam a minoria, não podem subjugar o real posicionamento que a maior parte da população brasileira detém sobre a prostituição, encarando-a como uma profissão usual. Sensível a essa nova realidade, o Governo Federal, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reconheceu a profissão das profissionais do sexo (registrada sob o número 5198 na classificação brasileira de ocupações). Diante disso, emerge o seguinte questionamento: como é possível o Poder Judiciário negar validade aos contratos de natureza sexual sob a alegação de que tal atividade é ilícita, sendo que, o Poder Executivo reconhece expressamente a existência dessas profissionais através da sua taxação no código brasileiro de ocupações?

Nesse diapasão, assevera Planiol apud Georges Ripert, referindo-se ao Código Civil Francês:

O poder que têm os tribunais pelo art. 6º, de anular os contratos e outros fatos dos particulares como imorais, é um dos mais temíveis que receberam da lei. Supondo-se exercido, por homens facciosos, por moralistas demasiado rígidos, ou por espíritos sectários, a liberdade civil poderia sossobrar. A única coisa que pode contrabalançar é, neste caso, a opinião pública; a corrente geral das idéias que regula o nível normal dum povo [...]. [38]

Ademais, anote-se que o Poder Legislativo, através de alguns de seus representantes, caminha no sentido de promover a dignidade humana dessas profissionais, retirando-as da marginalidade legal. Nesse ínterim, em 2003, o deputado Fernando Gabeira apresentou o Projeto de Lei n.º 98/2003, que recomendava a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual, além da revogação dos artigos 228, 229 e 231 do Código Penal.

Na justificação, atenta Fernando Gabeira para os benefícios oriundos da disciplina legal dessa profissão, concluindo:

Houve, igualmente, várias estratégias para suprimi-la, e do fato de que nenhuma, por mais violenta que tenha sido, tenha logrado êxito, demonstra que o único caminho digno é o de admitir a realidade e lançar as bases para que se reduzam os malefícios resultantes da marginalização a que a atividade está relegada. Com efeito, não fosse a prostituição uma ocupação relegada à marginalidade – não obstante, sob o ponto de vista legal, não se tenha ousado tipificá-la como crime – seria possível uma série de providências, inclusive de ordem sanitária e de política urbana, que preveniriam os seus efeitos indesejáveis. [39]

No mesmo sentido, embora mais abrangente, foi proposto pelo deputado Eduardo Valverde o projeto de lei n.º 2.244/2004, com a finalidade de considerar trabalhador da sexualidade a prostituta, prostituto, dançarino, garçom, garçonete, atriz, ator, acompanhante, massagista que trabalhem expondo o corpo, em caráter profissional, em locais ou condições de provocar apelo sexual e erótico, e o gerente de casa de prostituição. Dessa forma, estariam garantidos aos profissionais do sexo todos os direitos decorrentes da relação empregatícia, desde que a mesma fosse configurada.

Ante o exposto, depreende-se que os contratos de natureza sexual não devem ser invalidados sob a alegação de ilicitude, porquanto não afrontam a moralidade pública, tampouco os bons costumes prevalentes na atual sociedade brasileira. O estigma construído ao longo do tempo acerca da prostituição não condiz com a atual posição da sociedade brasileira, não obstante às tentativas de determinados setores da sociedade no sentido de dissimular uma realidade latente e presente em todo o mundo. Urge, pois, que o Direito acompanhe a evolução cultural enquanto fenômeno essencialmente social que representa. Nesse passo, o magistrado deve ser um homem do seu tempo, interpretando e aplicando a norma consoante os atuais valores, que, de há muito, vislumbram o exercício da prostituição como uma atividade usual.

B. Configuração dos crimes previstos pelos artigos 228, 229 e 230 do Código Penal

Sabe-se que o Direito é uma espécie de controle social caracterizado pela presença da sanção. Nesse ínterim, o Direito Penal representa a ultima ratio do Direito, pois é aplicado apenas quando os demais ramos jurídicos mostram-se ineficazes.

O crime, elemento nuclear do Direito Penal, deve ser considerado por dois prismas: o fato típico e a antijuridicidade ou ilicitude. O primeiro constitui toda ação humana que origina um resultado juridicamente relevante, posto que vislumbrado pela lei penal como infração, consoante o princípio da legalidade. Por seu turno, a antijuridicidade ou ilicitude representa a contrariedade de determinado fato típico ao ordenamento jurídico.

Nesse diapasão, conclui Damásio de Jesus:

[...] sob o ponto de vista material, o conceito de crime visa aos bens protegidos pela lei penal. Dessa forma, nada mais é que a violação de um bem penalmente protegido. [...] Sob o aspecto formal, crime é um fato típico e antijurídico. [40]

Registre-se que, o Direito, enquanto fenômeno social que representa, deve sempre acompanhar a evolução da sociedade. Assim é que a sociedade atual, no limiar do século XXI, não pode ser disciplinada por um Código Penal que conta com quase oitenta anos. Nesse sentido, evidencia a teoria da adequação social da conduta, elaborada pelo jurista Hans Welzel.

A mencionada teoria defende que não se pode aplicar uma punição a determinado indivíduo se a conduta praticada por ele é aceita ou, ao menos, tolerada pela sociedade à qual está inserido, não obstante tal conduta seja taxada pela lei como delituosa. Assim, as condutas que são aceitas socialmente não são consideradas típicas.

Nesse contexto, assinalam Paulo José Teotônio e Silvio Henrique Teotônio:

O princípio da adequação social, então, exclui, desde logo, a conduta do sujeito como adequada ao modelo legal, retirando sua reprovação do âmbito de incidência do tipo, situando-a entre os comportamentos atípicos, ou seja, como comportamentos normalmente tolerados, que não constituem crimes, apesar de descritos como tal. [41]

A lei n.º 12.015, de 07 de agosto de 2009, alterou o Título VI, da parte especial do Código Penal, modificando a antiga nomenclatura (Dos Crimes Contra os Costumes) para a atual "Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual". Nesse título encontram-se os crimes de "Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual" (art. 228), "Casa de prostituição" (art. 229), "Rufianismo" (art. 230). Aplicando-se a teoria supracitada a tais delitos torna-se flagrante a atipicidade material dos mesmos, vez que são condutas amplamente aceitas pela atual sociedade. Registre-se que esse mesmo fundamento foi adotado pelo legislador penal quando revogou os crimes de sedução, rapto, rapto consensual e adultério, através da lei n.º 11.106, de 2005, ante a evidente ineficácia social da tipificação de tais condutas.

Nesse diapasão, acerca do crime de "Casa de prostituição" salienta Guilherme de Souza Nucci:

Consoante se verifica, a conduta denunciada, apesar de estar incriminada no Código Penal, há muito tempo, deixou de ser considerada crime no âmbito da jurisprudência, por ser socialmente aceita. Tanto passou a ser irrelevante para o Direito Penal a manutenção de casa de prostituição, que existem estabelecimentos dessa natureza em praticamente todos os municípios do país, fato que é conhecido da população e das autoridades policiais e administrativas. Ademais, a penalização da conduta em nada contribui para o fortalecimento do estado democrático de direito ou para o combate à prostituição. Ao contrário, se constituiu tratamento hipócrita apenas de casos isolados, normalmente marcado pela participação de pessoas de baixa renda, diante da prostituição institucionalizada, amplamente anunciada com rótulos como "acompanhantes", "massagistas" e outros, inclusive pelos meios de comunicação social. [42]

Ademais, não obstante os crimes tipificados pelo Código Penal através dos artigos 228, 229 e 230 representarem uma das supostas causas para invalidade do contrato de trabalho prostitucional, diversos tribunais brasileiros já se manifestam no sentido de não considerar como típicas tais condutas. Os posicionamentos se fundamentam, principalmente, nas teorias da adequação social e secularização do Direito Penal, esta, analisada adiante.

Nesse ínterim, transcrevem-se trechos dos seguintes julgados:

Trata-se da imputação do crime de manter, por conta própria, casa de prostituição. Inviável a condenação dos acusados por esse crime. Pelo entendimento jurisprudencial, da aplicação do princípio da adequação social, torna-se o fato materialmente atípico. Embora estejam presentes a materialidade e autoria do delito, não devem os réus serem condenados, pois esse tipo de fato não ofende mais a moralidade pública, objeto jurídico protegido pelo crime imputado a ré. A conduta é aceita pela sociedade atual, inexistindo justificativa para manter a criminalização nesta situação. [43]

Não há falar em crime previsto no art. 229 do CP, quando a própria sociedade tolera a existência de casa de prostituição. O desuso da norma do art. 229 do CP, por ser habitualmente inaplicada, faz letra morta o dispositivo. Precedente desta Corte. Recurso Provido. [44]

Não se caracteriza o delito de casa de prostituição quando a boate destinada a encontros amorosos funciona na chamada zona do meretrício com pleno conhecimento e tolerância das autoridades administrativas bem como da sociedade local. [45]

Impende manter o entendimento adotado na sentença recorrida, da lavra da digna Juíza de Direito GREICE PRATAVIEIRA GRAZZIOTIN, que concluiu acertadamente ao reconhecer a aplicação do princípio da adequação social ao fato denunciado, pois manter casa de prostituição tornou-se fato socialmente aceito pela comunidade em determinados locais, daí a sua atipicidade material. [46]

Por seu turno, a teoria da secularização do Direito Penal, originária no século XVIII, pugna pela desvinculação entre direito e moral. Para os defensores dessa corrente teórica não é função do legislador penal impor uma dada moral aos indivíduos, reprovando moralmente suas ações. A função do Direito Penal é impedir o cometimento de condutas que ocasionem danos a terceiros.

Nesse ínterim, nos denominados "crimes contra os costumes", hoje "crimes contra a dignidade sexual", o suposto bem jurídico tutelado pela lei é a moralidade pública sexual, fato que demonstra a total atipicidade material dessas condutas quando analisadas à luz da mencionada teoria.

Corroborando esse entendimento, leciona Luiz Flávio Gomes:

O risco de se fazer confusão entre o Direito e a Moral é muito grande (sobretudo na esfera dos crimes sexuais). Cada um tem uma visão de mundo. Cada um vê o sexo de uma maneira. Mas a moral de cada um não pode preponderar sobre o bom senso, sobre a razoabilidade. O processo de secularização do Direito penal começou, de forma clara, no século XVIII: Direito e Moral foram separados, delito e pecado foram delimitados. Enquanto de adulto se trate, cada um dá à sua vida sexual o rumo que bem entender. O plano moral não pode ser confundido com o plano jurídico. O Estado não tem o direito de instrumentalizar as pessoas (como dizia Kant) para impor uma determinada orientação moral ou sexual. [47]

Ante o exposto, anote-se que a caracterização de determinada conduta como penalmente típica deve estar inserta apenas nos limites jurídicos, e não em questões ligadas à moral. Como se sabe, a moral deve agir no âmbito interno, subjetivo, em contrapartida, o Direito é um fenômeno externo, que visa disciplinar condutas através da aplicação de sanções. Desse modo, deve ser indiferente ao Direito regulamentar, por meio de normas jurídicas, a moral sexual dos cidadãos, como ocorre no delito previsto pelo art. 229 do Código Penal (casa de prostituição).

Nesse sentido, arremata novamente Luiz Flávio Gomes:

No que diz respeito ao delito do art. 229 do CP (casa de prostituição), a melhor interpretação é a restritiva, ou seja, desde que o ato sexual envolva maiores, não há que se vislumbrar qualquer tipo de crime nas casas destinadas aos encontros sexuais. As pessoas maiores freqüentam essas casas se quiserem (e quando quiserem). São livres para isso. Nos parece um absurdo processar o dono de um motel ou de uma casa de prostituição, que é freqüentada exclusivamente por pessoas maiores de idade. O comércio que tem como objeto o sexo privado (entre maiores), que conta com conotação positiva (em razão da segurança, da higiene etc.), não é a mesma coisa que exploração sexual (que tem conotação negativa de aproveitamento, fruição de uma debilidade etc.). As pessoas maiores contam com a liberdade de darem à sua vida sexual a orientação que quiserem. Podem se prostituir, podem vender o prazer sexual ou carnal, podem se exibir de forma privada etc. Só não podem afetar direitos de terceiros (nem muito menos envolver menores). [48]

Adotando semelhante posição, conclui Guilherme de Souza Nucci:

Quanto à persistência desse tipo penal, cremos dispensável (ver comentários ao título, tratando dos ‘bons costumes’). E preciso não fechar os olhos à realidade, pois a prostituição, queiram alguns setores da sociedade ou não, está presente e atuante, além de existirem vários locais apropriados para o seu desenvolvimento. Com o nome de motel, casa de massagem, bares ou cafés de encontros, saunas mistas, dentre outros, criam-se subterfúgios variados para burlar a lei penal. Robora-se a permissividade diante do princípio da legalidade, pois os tribunais pátrios não vêm condenando os proprietários desses estabelecimentos sob o pretexto de que não são lugares destinados, exclusivamente, à prostituição, vale dizer, não são casas de prostituição, mas motéis, bares, saunas ou casas de massagens que podem abrigar condutas configuradoras da prostituição. Não se critica a jurisprudência, ao contrário, deve-se censurar a lei, persistindo em impingir um comportamento moralmente elevado - ou eleito como tal - à coletividade através de sanções penais. Os que forem contrários aos locais de prostituição devem buscar sanar o que consideram um problema através de campanhas de esclarecimento ou educação moral, mas jamais valendo-se do direito penal, que há muito tempo mostra-se ineficaz para combater esse comportamento. Por outro lado, já que a prostituição não é, penalmente, proibida, não há razão para o tipo penal do art. 229 subsistir. Se, porventura, o local destinado a encontros libidinosos provocar desrespeito a direito alheio - algazarra com perturbação de sossego, congestionamento no trânsito, exposição ofensiva ao pudor etc. -, merece ser sanada a questão por outros mecanismos, abolindo-se a polícia de costumes, especialmente no atual estágio de liberdade atingido pela sociedade. [49]

Pelo exposto, forçoso concluir que os delitos previstos nos artigos 228, 230, e, especificamente, o previsto no art. 229 do Código Penal, casa de prostituição, são, quando analisados à luz das teorias da adequação social da conduta e da secularização do Direito Penal, materialmente atípicos, embora descritos na lei como crimes.

Por fim, registre-se que diversos juízes do trabalho reconhecem o vínculo empregatício existente entre o apostador e o dono da banca do jogo do bicho, embora o objeto do contrato de trabalho seja ilícito (contravenção penal), em que pese à existência dos jogos de loteria explorados pelo poder público, por conta da disposição constante no art. 58 do Decreto-Lei n.º 3.688/41, in verbis:

Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração:

Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.

Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.

As decisões que reconhecem o mencionado vínculo empregatício fundamentam-se, principalmente, na teoria da adequação social da conduta, já analisada em momento oportuno. Dessa forma, diante da ampla aceitação social dessa prática, a mesma deve ser considerada materialmente atípica. Tais julgados representam notáveis precedentes no sentido dos juízes trabalhistas também reconhecerem o vínculo empregatício das prostitutas com as casas de prostituição, ante a autorização do uso da analogia autorizado pelo art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho.

Nesse diapasão, apontam as seguintes decisões:

JOGO DO BICHO. COLETOR DE APOSTAS. VALIDADE DA CONTRATAÇÃO. Em que pese a ilicitude do jogo do bicho, considerar nulo o contrato de trabalho celebrado com o trabalhador que exerce sua atividade na coleta de apostas significaria premiar o contraventor desobrigando este de cumprir as leis trabalhistas em prejuízo daquele. Dessarte, uma vez constatada a presença das condições previstas no art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, impõe-se o reconhecimento do vínculo empregatício. [50]

Relação de Emprego. Jogo do Bicho. Possibilidade. Presentes os requisitos do artigo 3º, da CLT, é cabível o reconhecimento de relação de emprego, mesmo na hipótese de a empregadora explorar a atividade de jogo de bicho, até porque não se pode admitir que o empregador lucre duplamente com a utilização da força de trabalho de seus empregados sem a devida contraprestação, punindo àqueles que necessitam do trabalho. [51]

JOGO DO BICHO - RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO - A ampla aceitação desta modalidade de jogo de prognósticos e a inércia das chamadas "autoridades competentes", na sociedade brasileira, sugerem certa institucionalização desta atividade, sendo que sob a ótica do direito do trabalho, não há como não se reconhecer a produção de efeitos jurídicos indenizatórios na relação base, em face da peculiaridade ínsita ao direito laboral de não se poder restituir o status quo ante à força trabalho despendido pelo obreiro e pela respectiva apropriação econômica pelo empreendedor. Recurso ordinário a que se dá provimento. [52]

JOGO DO BICHO - RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO - RETORNO DOS AUTOS À JCJ DE ORIGEM PARA APRECIAÇÃO DO MÉRITO SOB ESTE ENFOQUE - Embora considerado o jogo do bicho como uma contravenção penal, admite-se o vínculo empregatício entre o bicheiro e o cambista, entendimento já consolidado em nossa Jurisprudência. Assim, os autos devem retornar à JCJ de origem para apreciação dos demais aspectos da demanda. [53]

Ante o exposto, conclui-se que, uma vez presentes os elementos caracterizadores da relação empregatícia, deve o contrato de trabalho entre a prostituta e o dono da casa de prostituição ser válido, reconhecendo-se, por conseguinte, todos os direitos trabalhistas e previdenciários pertinentes a essa classe de trabalhadoras.

Sobre o autor
Mário Victor Assis Almeida

Graduando em Direito (10º período) pela Universidade Estadual de Santa Cruz - Ilhéus, BA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Mário Victor Assis. O trabalho da prostituta à luz do ordenamento jurídico brasileiro.: Realidade e perspectivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2349, 6 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13963. Acesso em: 5 nov. 2024.

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