7. OS PROJETOS DE LEI QUE VERSAM SOBRE A MATÉRIA
Após pesquisa sobre o tema, foram encontrados alguns projetos de lei que pretendem dar nova roupagem à obrigatoriedade do regime de bens para o sexagenário que queira realizar casamento.
O Deputado Federal Ricardo Fiúza (PTB-PE) apresentou para aprovação o projeto de lei que altera o artigo 1.641, II do Código Civil (PL 6.960/02) [33], na sessão plenária da Câmara dos Deputados de 12/06/2002. Nele, é defendido que o regime da separação obrigatória seja imposto ao maior de 70 (setenta) anos. A justificativa do projeto se baseia no aumento da expectativa de vida do brasileiro.
Projeto de lei idêntico (PL 108/2007) [34] foi apresentado pela Deputada Federal Solange Amaral (PFL, atual DEM-RJ). Nele, também é pretendido que a imposição do regime da separação seja afeto apenas ao maior de 70 (setenta) anos. A parlamentar justifica o projeto na maior longevidade do brasileiro, que acaba sendo traduzida numa expectativa média de vida caracterizada pela higidez física e mental superior a 70 (setenta) anos. Assim, aumentando a idade para 70 (setenta) anos, estar-se-ia adequando o artigo 1.641, II, à nova realidade da sociedade brasileira.
Com o devido respeito aos projetos, aumentar a idade de 60 (sessenta) para 70 (setenta) anos não irá sanar a inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do C.C/2002. Isso porque o citado preceito continuará sendo atentatório à dignidade, igualdade e liberdade dos cônjuges.
Nada impede que uma pessoa com idade igual ou superior a 70 (setenta) anos esteja em plena atividade física e intelectual, com pleno discernimento para tomada de decisões em sua vida, especialmente, em relação à administração do seu patrimônio e escolha do regime de bens.
Vale registro o projeto de lei apresentado pelo Deputado Sergio Barradas Carneiro (PT-BA), elaborado a partir de estudos do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. O PL 2285/2007 [35] propõe a criação do chamado "Estatuto das Famílias", que representará a revogação de dispositivos do Código Civil, Código de Processo Civil, Lei do Divórcio, Lei de Registros Públicos, entre outros diplomas.
O projeto representa revogação completa do artigo 1.641 do C.C/2002, o que significa dizer que a legislação não mais contará com o regime da separação obrigatória de bens. A proposição é justificada com base no caráter discriminatório e atentatório à dignidade dos cônjuges, realidade que já vem sendo observada pela aplicação da Súmula 377 do STF.
Em outro projeto de lei (PL 507/2007) [36], também de autoria do Deputado Sergio Barradas, mais uma vez é proposta a revogação do artigo 1.641, II, do Código Civil, pelos mesmos motivos alinhavados acima.
Através da I Jornada de Direito Civil, foi apresentada a proposta de modificação do Código Civil nº. 125, segundo a qual o artigo 1.641, II deve ser revogado. A justificativa é a seguinte:
"Justificativa: A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses". [37]
Conforme visto, vale a torcida para que os projetos sejam discutidos e aprovados pelo Congresso Nacional, especialmente aqueles que propõem a revogação do artigo 1.641, II, do C.C/2002, providência que será adequada à interpretação moderna do Direito Civil, privilegiando a dignidade e a liberdade do idoso.
8. EXCEÇÃO À REGRA DO ARTIGO 1.641, II, DO CÓDIGO CIVIL: IDOSO QUE CONTRAI CASAMENTO SEGUIDO DE RECONHECIDA UNIÃO ESTÁVEL
A lei n. 6.515/77 traz em seu artigo 45 a seguinte regra: "Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil".
O dispositivo faz referência ao regime da separação obrigatória do Código de 1.916. Com a entrada em vigor da lei do divórcio, foi apresentada esta regra de transição, visando não prejudicar o casal que vinha de uma união estável (ainda não era utilizado este termo).
Está claro que a regra acima foi transitória, já que serviu apenas àqueles casamentos que seguiram a uniões existentes antes de 28/06/77. Contudo, atualmente se discute se o princípio interpretativo desta regra ainda seria aplicável, ou seja, se o casamento do idoso for precedido de uma reconhecida união estável, justificaria impor a restrição da escolha do regime de bens?
Através da III Jornada de Direito Civil, foi aprovado o enunciado 261, que dispõe o seguinte: "A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". [38]
Se o matrimônio a ser contraído é precedido por uma união estável, iniciada antes que um dos nubentes contasse com 60 (sessenta) anos, é bem justo e razoável que prevaleça a interpretação segundo a qual, para este casal, não seja imposto o regime da separação obrigatória, caso haja o interesse em realizar casamento.
Dessa forma, a regra de hermenêutica parece ser apropriada, merecendo ser seguida pelos Tribunais do País.
9. A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA COM BASE NO ARTIGO 1.639, § 2º DO CÓDIGO CIVIL
Já foi visto neste trabalho que o Código Civil de 2002 inovou em matéria de regime de bens, ao possibilitar a alteração do regime inicialmente escolhido pelos nubentes. Na égide do Código de 1.916 vigorava o princípio da imutabilidade, ao passo que pelo novo Código é possível a modificação. A matéria é tratada no artigo 1.639, § 2º, que traça os requisitos para o exercício da pretensão de modificação.
Questão que se coloca em pauta é a possibilidade de alteração do regime da separação obrigatória, por outro disciplinado no Código. Isso porque a separação de bens obrigatória, prevista nos incisos do artigo 1.641 é norma cogente, impositiva, fruto da intenção do legislador em "proteger" determinadas pessoas.
Em relação às hipóteses dos incisos I e III do artigo 1.641 (inobservância de causas suspensivas do casamento e suprimento judicial), partindo de uma interpretação sistemática, especialmente em conjunto com o artigo 1.523, caput, é possível concluir, sem qualquer dificuldade, que pode haver a alteração do regime da separação, desde que superada a causa que motivou a imposição legal. Como as situações previstas no artigo 1.523 podem se modificar com o tempo, ao passo que o caput deste artigo permite ao juiz afastar as causas suspensivas ali indicadas, uma vez superadas, o melhor entendimento é aquele que defende a modificação. Ora, se não há mais causa suspensiva, não há motivo para que se mantenha o regime da separação para o casal.
Em relação ao casamento realizado através de suprimento judicial, havendo manifestação do casal, por exemplo, ratificando a vontade de realizar casamento, depois de completada a maioridade civil de um ou de ambos os nubentes, não há como negar a este casal a possibilidade de alterar o regime de bens. O regime da separação de bens havia sido imposto porque o legislador entende que, em virtude do suprimento judicial, poderia haver vício ou dúvida na manifestação de vontade dos cônjuges. Se esta vontade de realizar casamento é reafirmada posteriormente, deve-se permitir que o casal também possa alterar, se quiserem, o regime de bens.
A controvérsia maior diz respeito ao casamento do sexagenário, quando a lei lhe impõe o regime da separação de bens, com base apenas no fator idade, situação que não desaparecerá com o tempo.
A possibilidade de alteração do regime de bens para o maior de 60 (sessenta) anos se mostra plenamente viável. Trata-se de solução interpretativa, que conjuga direitos fundamentais e a regra geral do artigo 1.639, § 2º. Mesmo que se admita a manutenção do artigo 1.641, II do Código Civil, é possível defender a posterior modificação do regime imposto pela lei.
Na doutrina que dá suporte ao presente trabalho, não foi encontrado defensores desta ideia. Arnaldo Rizzardo [39], por exemplo, não admite a alteração para todas as hipóteses do artigo 1.641, mas apenas para o casamento realizado com inobservância à causa suspensiva. Sílvio Rodrigues [40], também apresenta o mesmo entendimento, lecionando que a modificação se mostra possível apenas em caso de desaparecimento das causas suspensivas.
Noutro rumo, Regina Beatriz Tavares da Silva, ao atualizar a obra de Washington de Barros Monteiro [41], defende que a mutabilidade do regime de bens não alcança a separação obrigatória.
Até mesmo a Professora Potiguar Érica Verícia de Oliveira Canuto [42], que tece enérgicas críticas ao artigo 1.641, II, do C.C/2002, não consegue vislumbrar a possibilidade de alteração do regime, quando se tratar da hipótese do maior de 60 (sessenta) anos. A citada doutrinadora entende que apenas as hipóteses dos incisos I e III do artigo 1.641 convalescem diante do artigo 1.639, § 2º.
As interpretações acima, com o devido respeito aos seus autores, são simplistas e apegadas ao texto frio da lei, nítida interpretação literal do Código Civil. Sob essa perspectiva de interpretação, não há dúvida que a alteração do regime não é possível para aquelas pessoas que se enquadram no inciso II do artigo 1.641. Significa dizer que o legislador fixou regra cogente ao sexagenário que queira realizar casamento e este simplesmente deve acatar o comando legal, diante da irrefragável preocupação patrimonial acerca do assunto.
Mas o caso concreto pode trazer elementos aptos a justificar a alteração de regime, mesmo para o sexagenário que tenha contraído casamento, afastando a incidência do regime da separação de bens. Por exemplo, podem os nubentes, através de ação judicial, manifestar, inequivocamente, o desejo pela alteração do regime, reafirmando e demonstrando o discernimento e a capacidade plena para os atos da vida civil, inclusive para realizar casamento e escolher o regime de bens que melhor atender ao casal.
Ora, como fechar os olhos para tal realidade e para a manifestação de vontade conjunta dos cônjuges, sem qualquer vício, que será, então, verificada pelo Poder Judiciário. A mesma autonomia privada que permite aos cônjuges a escolha de qualquer dos regimes de bens também deve socorrer o sexagenário, em seu intento de promover a alteração do regime. Não pode o Judiciário negar tal tutela, ainda mais quando for invocada a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 1.641, que conforme restou demonstrado neste trabalho, ofende os direitos à dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade.
Possibilitar a alteração significa devolver ao idoso esses direitos, que lhe foram arbitrariamente retirados quando da realização do casamento e da imposição do regime da separação de bens.
Em decisão arrojada e paradigmática, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou procedente o pedido de modificação de regime de bens formulado por casal que contraiu casamento adotando o regime da separação de bens devido à incidência do inciso II do artigo 1.641. Ambos os nubentes eram sexagenários, e manifestaram perante o Poder Judiciário desejo em alterar o regime de bens.
O acórdão, que deu provimento ao recurso de apelação apresentado pelo casal, foi relatado pelo Desembargador Ricardo Raupp Ruschel, e seu voto foi acompanhado pelos demais integrantes da Câmara, os Desembargadores Luiz Felipe Brasil Santos e Maria Berenice Dias.
O acórdão, que possui sua íntegra no Anexo deste trabalho, representa um novo modo de pensar sobre este problema e evidencia a preocupação em garantir ao idoso dignidade, liberdade e igualdade. No voto, o relator fundamentou que o casal tinha o direito de postular a alteração do regime, não sendo o pedido juridicamente impossível, ao contrário do que ficou decidido em primeira instância, mesmo porque o artigo 1.641, em seu inciso II, se constitui em norma de caráter genérico, que convalesce diante da manifestação das partes pela alteração.
Além disso, o artigo 1.641, II é duramente criticado pela sua inconstitucionalidade, argumento que também serve para fundamentar a alteração. O que se extrai desta importante decisão é que o direito de família não pode ser analisado sob a perspectiva patrimonialista, tão presente no Código de 1.916 e que se repete em inúmeros dispositivos do Código de 2002. Não é essa a função do direito de família, que traz em seu bojo a preocupação em garantir a necessária dignidade às pessoas, nas mais diversas relações que são por ele disciplinadas.
Acerca da possibilidade de alteração do regime compulsório, Silvio de Salvo Venosa [43] alerta que o direito de família não deve ser interpretado e aplicado de forma fria e fechada, não possuindo em sua essência cunho patrimonial. Assim, defende que a inalterabilidade não é a melhor solução, já que o direito de família rege-se por princípios diversos daqueles presentes no campo obrigacional.
Por isso, merece elogios a coragem dos Desembargadores do TJRS, que diante de um caso concreto, conseguiram visualizar a vontade e a manifestação isenta de vícios do casal sexagenário, que pretendeu alterar o regime compulsório. Espera-se que esta decisão seja acompanhada pelos demais tribunais do País e que sirva também de motivação para que as pessoas ajuízem demandas desta natureza.
Com essas atitudes, quem sabe o Congresso Nacional se mobiliza pela aprovação dos projetos de lei que defendem a revogação do malsinado e inconstitucional inciso II, do artigo 1.641 do Código Civil.
10.CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo procurou apresentar uma abordagem simplificada e didática sobre os fundamentos que permeiam o instituto do regime de bens no casamento. Inicialmente, foram apresentadas ao leitor as principais questões relacionadas à escolha do regime de bens, principalmente sobre a liberdade de escolha, a forma em que se dá esta escolha e quais as hipóteses em que a lei extirpa esta liberdade.
Foi discutida a principal alteração do Código Civil de 2002 em relação ao Código de 1.916 em matéria de regime de bens, que é justamente a possibilidade de alteração do regime após a realização do casamento, além da regra de transição do artigo 2.039 do C.C. Além disso, pôde-se concluir que a Súmula 377 do STF, segundo a opinião majoritária da doutrina, ainda encontra-se vigente, o que implica em dizer que, no Brasil, não existe regime da separação obrigatória de bens, tendo em vista que a Súmula atenua os efeitos do regime da separação, transformando-o em comunhão parcial.
A partir dos estudos realizados, verificou-se que vedar ao idoso a possibilidade de escolha do regime de bens no casamento implica ofensa a direitos constitucionais básicos, como dignidade, liberdade e igualdade, além de significar impedimento ao pleno exercício da autonomia privada.
Isso porque a limitação de liberdade ao idoso não se justifica nos dias atuais, já que estas pessoas contam com pleno discernimento para a realização de todos os atos da vida civil, não sendo plausível que o legislador pretenda proteger o idoso de um casamento por interesse. A escolha do regime de bens é reflexo da autonomia privada do casal e deve prevalecer, mesmo em caso de idade avançada de algum dos cônjuges.
A Constituição traz como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, podendo esta ser entendida como a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Se o idoso deseja realizar casamento e não pode escolher o regime de bens que melhor lhe atenda, fica evidenciado que a dignidade desta pessoa não é respeitada.
Em complemento, pode-se dizer que a regra do artigo 1.641, II se mostra ofensiva aos direitos constitucionais à liberdade, igualdade e isonomia. Ora, o maior de 60 (sessenta) anos sofre restrição que não existe para as pessoas mais jovens e que não é prevista para os casos de caracterização de união estável. Foi visto que tramitam no Congresso Nacional vários projetos de lei, alguns que defendem o aumento da idade de 60 (sessenta) para 70 (setenta) anos, outros que lutam pela revogação do artigo 1.641 do Código Civil.
Por isso, no caso do idoso que contrai casamento, mesmo diante da imposição legal do regime da separação obrigatória, existe a possibilidade do casal pretender judicialmente a alteração do regime, com base na regra geral do artigo 1.639, § 2º, do Código Civil, a partir dos fundamentos apresentados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme visto, pedido motivado e isento de vícios de ambos os cônjuges e também pelo fato do artigo 1.641, II estar envolto em flagrante inconstitucionalidade.
Compartilhando da opinião majoritária da doutrina, pode-se emitir conclusão pela total ausência de justificativa para se impor ao idoso, que queira realizar casamento, o regime da separação de bens, principalmente quando dados estatísticos mostram que a população brasileira conta com maior expectativa de vida, ou seja, a cada dia o País conta com mais idosos, e estas pessoas não podem sofrer restrição arbitrária no exercício pleno de suas faculdades.
Não se sustenta a opção patrimonialista do legislador do Código Civil de 2002, que manteve o regime da separação obrigatória, a exemplo do que já ocorria no Diploma de 1.916, quando o moderno Direito Civil defende a interpretação e leitura constitucional das relações civis, principalmente no direito de família.
Espera-se que os projetos de lei que lutam pela revogação do regime da separação legal sejam apreciados, discutidos e aprovados pelo Congresso Nacional, e até que isso ocorra, que o Poder Judiciário tenha sensibilidade e ousadia, a exemplo do Tribunal Gaúcho, para autorizar a modificação do regime da separação obrigatória, quando os cônjuges apresentarem tal pretensão de forma idônea e isenta de vícios.