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A violência nas praças de desporto e a responsabilização penal do torcedor-infrator.

A norma do art. 39 da Lei nº 10.671/03

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Agenda 13/01/2010 às 00:00

3.A INFRAÇÃO PENAL PREVISTA NO ART. 39 DO ESTATUTO DO TORCEDOR

Com o objetivo de neutralizar a ação de "torcedores" problemáticos, o legislador brasileiro adotou medida semelhante à utilizada em nações européias. Fez-se inserir o art. 39 ao Estatuto do Torcedor, pelo qual não se exacerbou a punição aos "baderneiros" de recintos desportivos ao ponto de se prever pena privativa de liberdade. A medida salomônica se concentrou na previsão legal de se impedir o infrator de permanecer nas proximidades de local onde esteja sendo realizado evento desportivo.

Antes de se adentrar à análise do tipo, destaca-se o texto normativo, abaixo reproduzido:

Art. 39. O torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores ficará impedido de comparecer às proximidades, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de três meses a um ano, de acordo com a gravidade da conduta, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

§ 1º Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de cinco mil metros ao redor do local de realização do evento esportivo.

§ 2º A verificação do mau torcedor deverá ser feita pela sua conduta no evento esportivo ou por Boletins de Ocorrências Policiais lavrados.

§ 3º A apenação se dará por sentença dos juizados especiais criminais e deverá ser provocada pelo Ministério Público, pela polícia judiciária, por qualquer autoridade, pelo mando do evento esportivo ou por qualquer torcedor partícipe, mediante representação.

O teor normativo do caput do art. 39 transparece que a norma encontra-se alocada em diploma legal estranho às questões criminais. A redação difere do padrão dos tipos penais, em que se descreve primeiramente a conduta humana desvalorada, para posteriormente lhe cominar pena em abstrato.

A propósito, em homenagem à correta utilização das terminologias, seria possível classificar a conduta de promover tumultos, praticar ou incitar a violência ou invadir recintos privativos dos desportistas como crime?

Tomando-se por base que o direito criminal brasileiro se filia à teoria bipartida, vale relembrar a lição de Damásio de JESUS para quem a distinção entre crimes e contravenções não mora na sua natureza, mas sim em "realidades que se diversificam pela sua maior ou menor gravidade" (1977, p. 173). De acordo com a definição legalista, prevista no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, crime é a "infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa", ao passo que a contravenção é "a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente".

Neste sentido, pode-se afirmar que embora seja elevada a gravidade da conduta, a tímida penalidade imposta se alinha ao conceito de contravenção. Entretanto, tendo em vista que a conduta em análise se poderia considerar contravenção prevista em lei especial, a pouca utilidade desta classificação traria mais problemas que soluções, motivo pelo qual se opta pela simples ação do termo amplo ‘infração penal’.

Assim sendo, tal infração penal tem como sujeito ativo, ou seja, o praticante da norma penal incriminadora, o torcedor. Este encontra-se definido no mesmo Estatuto do Torcedor, em seu art. 2º, in verbis:

Art. 2º Torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva.

Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de que trata o caput deste artigo.

Ao contrário do que se possa parecer após a análise do conceito legal de torcedor, o enquadramento deste à norma do art. 39 do Estatuto não exige investigação quanto ao seu efetivo apoio ou apreciação de qualquer clube ou modalidade que seja. Uma vez inserido no contexto de determinado espetáculo desportivo, configurada está a subsunção do fato à norma. Inexistindo qualquer liame que vincule o sujeito ativo à condição de torcedor, caberá tão somente a capitulação na regra do art. 40 da Lei das Contravenções Penais [10].

Para se definir o sujeito passivo da infração, há que se perquirir qual é o titular do interesse cuja ofensa constitui a essência do delito, ou seja, é necessário "indagar qual o interesse tutelado pela lei penal incriminadora" (JESUS, 1977, p. 161). Partindo-se de tal premissa, infere-se que a infração traz uma riqueza de sujeitos passivos, desde os difusos, indetermináveis do ponto de vista individual (coletividade de torcedores-consumidores que tem por lei o direito ao regular desenrolar de uma prova ou partida) e os individualmente determináveis (clube detentor do mando de jogo e/ou entidade que administra a competição).

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A sanção prevista se consubstancia em uma pena restritiva de direitos, imposta por lei. Não se abre a possibilidade de análise quanto à aplicação desta ou daquela pena restritiva, haja vista que o escopo da norma é justamente criar modalidade de sanção criada especificamente para a peculiar conduta nela regrada.

A lei previu que a pena de proibição de comparecer às proximidades de praça de desporto, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, com prazo variável de 3 (três) meses a 1 (hum) ano, deverá ser dosimetrada com base na gravidade da conduta. Trata-se de disparidade para com o sistema dosimétrico pátrio, motivo pelo qual a melhor hermenêutica levará em conta a análise da penalidade imposta à luz das circunstâncias atenuantes previstas no art. 65 do Código Penal. Neste ponto, cumpre destacar que o art. 65, em seu inciso III, alínea ‘e’, prevê como atenuante o fato de a infração ter sido praticada sob a influência de multidão em tumulto, se não o agente não o provocou, pelo que se pode defender a tese pela qual o prazo de privação deve avalizado com a incidência de atenuante, caso a incitação ou a invasão tenha sido praticada em extensão a atos tomados em grandes aglomerações de torcedores, o que comumente acontece.

Vê-se que a legislação cuidou não apenas do torcedor-infrator inserido no interior de uma praça de desportos, mas também daquele que, mesmo nos entornos, promove confusões e tumultos relacionados à ocorrência de determinado evento desportivo. Tal previsão decorre principalmente da freqüência com que são contabilizados danos patrimoniais extramuros, sempre verificados em conflitos envolvendo torcidas nos arredores de estádios e ginásios.

O § 3º do art. 39 deixa claro que a sentença condenatória haverá de ser exarada pelo Juizado Especial Criminal. O próprio quantum da pena não permite dúvidas quanto à verificação do juízo competente para julgar tais infrações [11]. A dúvida que surge da leitura deste parágrafo reside na titularidade da ação penal, dúvida esta decorrente da péssima redação que lhe foi dada.

Seria a ação privada, pública condicionada à representação, ou simplesmente pública, tendo sido intenção o legislador somente ressaltar que as partes descritas no dispositivo poderiam noticiar a prática da infração?

A este respeito, a Procuradoria-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal no dia 28 de maio de 2005. De acordo com o pleito inicial, a dicção do art. 39, § 3º, in fine, estaria a contrariar o preceito constitucional do art. 129, inciso I, da Lei Superior [12], vez que se estaria a possibilitar interpretação pela qual, além do parquet, tanto a polícia judiciária, quanto o mandante do evento desportivo, bem como qualquer autoridade ou torcedor partícipe, pudesse mover representação e instaurar a ação penal. A petição inicial, em sua fl. 02, assim aduz:

O artigo 24 do Código de Processo Penal, a par da normativa constitucional, também prescreve que o crime de ação publica será promovido por denuncia do Ministério Publico. Desse modo, ao possibilitar que a policia judiciária, qualquer autoridade, pelo mando do evento desportivo ou até mesmo torcedor partícipe provoquem o início de procedimento destinado a uma punição de matéria penal, extrapola a parte final do § 3º do art. 39 do Estatuto do Torcedor, recaindo em vício de inconstitucionalidade. [13]

De acordo com parecer emitido pela Advocacia do Senado, não se mostra necessária a declaração de inconstitucionalidade do disposto no § 3º do art. 39 do Estatuto do Torcedor, podendo ser-lhe conferida interpretação conforme para sedimentar o entendimento pelo qual a ação é pública, podendo ser oferecida representação pelos entes ali indicados.

Em suma, inexistindo previsão legal de que a representação seja condição de procedibilidade para a instauração da ação penal, denota-se que de fato se trata de ação penal pública.

Pode-se classificar a infração em análise como infração comum, pois que embora deva ser praticada pelo denominado "torcedor", não se exige do agente uma particular condição ou qualidade pessoal, bastando estar a conduta relacionada com a ocorrência de determinado evento desportivo.

A simples entrada do infrator a local restrito aos desportistas, sem causar qualquer prejuízo, já é o bastante para fazer incidir a norma, motivo pelo qual se pode considerar a infração como sendo, quanto ao resultado, de mera conduta.

Sua consumação pode se dar tanto em atos singulares, como por exemplo, na violação de alambrado ou fosso para se adentrar a gramado, quanto em atos permanentes, como na hipótese de o torcedor dar início às incitações à violência por variados meios, anteriormente à realização de determinada partida ou prova, pelo que se pode classificar como infração via de regra instantânea, mas possivelmente permanente.

Trata-se de infração comissiva de ação múltipla, bastando a incursão em um dos verbos núcleos do tipo para que se tenha por consumada, reunindo todos os elementos de sua definição legal.


4.MECANISMOS DE IDENTIFICAÇÃO DO TORCEDOR INFRATOR

Uma das dificuldades encontradas pelas entidades de prática e administração desportiva, bem como pelos entes de direito público, reside na tarefa de identificar o torcedor infrator e individualizar sua conduta. Tal situação, destaca-se, ocorre muito mais em razão da não-adoção de mecanismos de controle, do que propriamente do grande número de espectadores que se dirigem às praças de desporto.

Com o objetivo de aprimorar a segurança nas praças de desporto, sobretudo quebrar o paradigma do suposto anonimato das multidões nelas inseridas, o Estatuto já havia estabelecido em seu art. 18 que "os estádios com capacidade superior a vinte mil pessoas deverão manter central técnica de informações, com infra-estrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente".

No mesmo sentido, o art. 25 do Estatuto do Torcedor [14] já determinava que as grandes praças de desporto deveriam dispor de circuito de gravação de imagens das catracas, referindo-se à possibilidade de se identificar visualmente cada um dos torcedores, assim facilitando a responsabilização criminal de eventual delinquente.

Neste aspecto, tem se mostrado imperiosa a definitiva instrumentalização de medidas aptas a cadastrar e identificar cada um daqueles que se encontra no interior de uma praça de desporto, haja vista que anos se passaram da vigência do Estatuto do Torcedor e os mesmos problemas ocorrem diuturnamente [15].

Malgrado o caráter impositivo da norma, tal medida não foi adotada amplamente no Brasil, em especial no tocante aos grandes estádios de futebol. Isto, há de se destacar, em virtude principalmente da inexistência de normas expressas cominadoras de penalidades às entidades de prática desportiva que ignorem o comando normativo [16]. Em algumas localidades, movimentações no sentido de regulamentar este dispositivo legal somente ocorreram após o alarde midiático produzido por este ou aquele foco de violência dentro dos estádios. Vale lembrar que, conforme disposição do art. 37, § 2º, do Estatuto do Torcedor, os entes federativos estão legalmente permitidos, se não convidados, a instituir, no âmbito de suas competências, multas em razão do descumprimento do disposto na aludida lei especial.

Na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, foi promulgada em setembro de 2009 a Lei nº 292/09, que dispõe acerca da identificação dos compradores de ingressos para partidas de futebol naquela capital. Na cidade de São Paulo, projeto semelhante foi proposto, atualmente em trâmite na Câmara Legislativa sob nº 762/09. Medida semelhante já havia sido tomada, com sucesso, pelo Internacional, clube de futebol de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Neste embalo, cumpre mencionar, a título exemplificativo, a propositura do projeto de lei municipal nº 005.00268.2009, em trâmite perante a Câmara Municipal de Curitiba, no estado do Paraná. Este projeto de lei municipal se propõe a disciplinar de forma minudente, com o permisso do art. 30, incisos I e II da Constituição Federal, a utilização do sistema de gravação de imagens dentro dos estádios de grande porte, abrangendo a questão da identificação do torcedor e a pena pecuniária às entidades de prática desportiva que não obedecerem aos termos da lei.

A propósito, verifique-se o teor da proposta encaminhada àquele colegiado legislativo municipal:

Art. 1º Os estádios de futebol localizados no Município de Curitiba, com capacidade para mais de quinze mil pessoas, deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas e são obrigados a instalar equipamento de gravação fotográfica do rosto e de documentos, a fim de identificar seus torcedores.

§ 1º O equipamento mencionado no "caput" deste artigo é dotado de mecanismo que grava a imagem do documento de identidade, registrando o nome, a foto, o dia e a hora de acesso dos torcedores.

§ 2º Não será permitida a entrada de pessoas sem a devida apresentação de documento oficial de identidade, contendo foto.

§ 3º As informações gravadas deverão ser preservadas pelo prazo de 30 (trinta) dias , a fim de instruírem eventual inquérito policial, administrativo ou ação judicial.

(...)

Art. 2º Todos os funcionários, próprios ou terceirizados, que desempenhem alguma atividade nos estádios, deverão portar identificação que permita a visualização do seu nome, função e foto.

Art. 3º Os estabelecimentos que descumprirem o disposto nesta lei ficam sujeitos às seguintes penalidades, sem prejuízo, conforme o caso, das sanções de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas:

I - Advertência, por escrito, da autoridade competente, esclarecendo que, em caso de reincidência, o infrator estará sujeito à multa;

II - Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), na segunda infração;

III - Multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) , na terceira infração;

IV - Cassação do alvará de licença do estabelecimento.

Em que pese as boas intenções dos legislativos municipais, tais iniciativas não surtirão o efeito universal desejado, posto que adotadas isoladamente. Não se pode deixar de destacar que o art. 87, inciso II, da Constituição Federal, concede aos Ministros de Estado a prerrogativa de editar instruções normativas visando a execução de leis federais, de forma que pensamos ser absolutamente viável a edição de ato normativo pelo Ministério da Justiça ou dos Esportes, uniformizando o procedimento de controle de entrada de torcedores nos estádios.

Igualmente, merece destaque o fato de que a correta e eficaz identificação do torcedor autor de arremesso de objetos em uma praça de desportos pode livrar a entidade mandante de arcar com pesada pena pecuniária perante a Justiça Desportiva. Isto pelo fato de que a norma do art. 213 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê tal excludente de forma expressa, fazendo-o em seu § 3º, cujo teor aduz que "a comprovação da identificação e detenção do infrator com apresentação à autoridade policial competente e registro de boletim de ocorrência, na hipótese de lançamento de objeto, exime a entidade de responsabilidade".

Sobre o autor
Julian Henrique Dias Rodrigues

Advogado em exercício no Brasil, em Portugal e na União Europeia. Licenciado pela Faculdade de Direito de Curitiba desde 2008, é pós-graduado em Direito Constitucional pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná, em Direito do Desporto pela Universidade Castelo Branco, e em Direito da Medicina pela Universidade de Lisboa. Mestrando em Direito pela Universidade Nova de Lisboa. Integrou a Comissão de Direito do Desporto da Ordem dos Advogados do Brasil (PR), e diversos Tribunais de Justiça Desportiva. Atuou como assessor de magistrado junto ao Tribunal de Justiça do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Julian Henrique Dias. A violência nas praças de desporto e a responsabilização penal do torcedor-infrator.: A norma do art. 39 da Lei nº 10.671/03. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2387, 13 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14181. Acesso em: 22 dez. 2024.

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