SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Direitos Fundamentais (Acepção Lata); 3. Garantias Fundamentais; 4. Acesso à Justiça ou Inafastabilidade da Jurisdição; 5. Proteção Judicial. Efetividade; 6. Conclusão; 7. Bibliografia.
RESUMO: Este trabalho visa analisar a topologia do princípio do Acesso à Justiça e, a sua última extensão como forma de efetivação da proteção judicial. Para demonstrar que o Judiciário está compelido a dizer o direito ao caso concreto, apresentando soluções jurídicas materiais de acordo com as exigências mínimas de satisfação dos direitos fundamentais.
1. Introdução
O presente estudo tem por finalidade analisar o princípio do acesso à Justiça, conhecido, também, como inafastabilidade da jurisdição, um dos princípios processuais constitucionais, consagrado como uma garantia fundamental, do gênero direitos fundamentais. O assunto não é novo, mas será visto sob o enfoque de efetivação da proteção jurisdicional.
Antes da investigação doutrinária a respeito do tema proposto, é interessante a verificação da divisão estrutural interna da Constituição da República Federativa do Brasil. Dos nove títulos que a compõem, o segundo é denominado Dos Direitos e Garantias Fundamentais, dividido em cinco capítulos, a saber: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Dos Direitos Sociais, Da Nacionalidade, Dos Direitos Políticos e Dos Partidos Políticos.
A atual constituição "foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado, em manifesta homenagem ao especial significado e função destes, na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais" [01].
O primeiro capítulo (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) traz em seu bojo o festejado artigo 5º, que de forma minudente elenca 78 incisos e quatro parágrafos, demonstrando a preocupação do poder político constituinte – que marcava a saída de um período de ditadura militar – em fixar pontos inquestionáveis de liberdades. Alguns entendem que há excesso legislativo, em razão da quantidade de normas pertinentes aos direitos e garantias fundamentais [02].
No referido artigo constitucional encontram-se, dentre outros, os princípios constitucionais processuais, entendidos como os que traçam os padrões da teoria geral do processo, vale dizer, o conjunto das normas de Direito Processual que se encontra na Constituição Federal. São eles: 1º - garantia do acesso à justiça (art. 5º, XXXV); 2º - contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV); 3º - juiz e do promotor natural (art. 5º, XXXVII e LIII); 4º - independência, como forma de exercício do poder, da função jurisdicional (art. 2º); 5º - inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI); 6º - exigibilidade de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX); e, 7º - publicidade dos atos judiciais (art. 5º, LX).
Para que não haja confusão, ressalta-se que o Direito Constitucional Processual é tratado nos dois parágrafos supra e traça linhas gerais do processo e o Direito Processual Constitucional rege as ações constitucionais, com previsão expressa na Carta Magna. Apontam-se as seguintes: mandado de segurança (art. 5º, LXXI e LXX); ação popular (art. 5º, LXXIII); dissídio coletivo (art. 114, § 2º); habeas corpus (art. 5º, LXVII); mandado de injunção (art. 5º, LXXI); habeas data (art. 5º, LXXII); ação civil pública (art. 125, III); e ações diretas declaratórias de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade das leis (art. 102, I, a).
Para dimensionar o tema, faz-se mister a verificação epistemológica entre direitos e garantias fundamentais.
2. Direitos Fundamentais (Acepção Lata)
Como já assentado no tópico supra, o segundo título da Carta Manga é denominado: Dos Direitos e Garantias Fundamentais; e, as principais normas a respeito do tema dele serão extraídas, para os fins deste estudo.
Direitos fundamentais são os concernentes à pessoa humana e ao cidadão, que em um primeiro momento tinham como finalidade quebrar o paradigma absolutista em razão dos ideais liberais, contra os abusos do Estado [03]. Não se restringem às letras constitucionais, tendo como suporte a consciência mundial e as bases de um estado democrático de direito, entendimento constante do § 2º, do mencionado art. 5º, ao consagrar a integração de outros direitos e garantias não escritos, mas decorrentes do regime e dos princípios adotados na Carta ou, originários de tratados internacionais [04].
Na lição de HESSE, são caracterizados como direitos subjetivos, fundamentadores do status; são direitos básicos jurídico-constitucionais do particular, como ser humano e como cidadão. Ganham seu peso material especial por eles estarem na tradição dos direitos do homem e do cidadão, na qual seus conteúdos, nos Estados constitucionais ocidentais, converteram-se em princípios de direito supra-positivos e elementos fundamentais da consciência jurídica; diante do seu foro, nenhuma ordem pode pretender legitimidade, que não incorpore em si liberdades e direitos de igualdade garantidos pelos direitos fundamentais [05].
Segundo o doutrinador alemão antes citado, a Constituição Alemã conceitua o que seja direito fundamental: "direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica de direitos fundamentais" [06]. Mas, acrescenta que, considerando a existência de outros direitos fundamentais o significado material impõe a inconsistência da definição formal positivada.
A expressão que melhor se adequaria aos conceitos que se visa resguardar é direitos fundamentais do homem, por se referir aos princípios que resumem a concepção de mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico. Fundamentais porque tratam de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, nem mesmo sobrevive; do homem porque direcionados direta e materialmente à pessoa humana, como gênero, indistintamente [07].
Não têm origem jusnatural, dependem da opção político-ideológica de determinada sociedade, ao eleger determinadas situações jurídicas como aptas a produzir efeitos, com as garantias inerentes [08].
Referidos direitos fundamentais tem um caráter duplo, sendo subjetivos e objetivos. Os primeiros são pertinentes ao homem e ao cidadão; assegurando uma situação jurídica; e, os segundos são elementos fundamentais da ordem objetiva da coletividade, quando garantem um instituto jurídico ou a liberdade de um âmbito de vida, realizando os primeiros [09]. Vale dizer, não basta a declaração dos direitos, necessária a sua concretização, com garantias assecuratórias.
O caráter dúplice é decomposto em: direitos fundamentais stricto sensu e garantias fundamentais.
3. Garantias Fundamentais
Enquanto os direitos fundamentais são bens e vantagens conferidas pela norma, as garantias fundamentais são meios destinados a fazer valer esses direitos, são instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens [10].
A garantia existe sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar, sendo que a expressão, fora de seu significado técnico, na esfera política e jurídica, toma uma dimensão conceitual, de cunho axiológico, muito clara, por prender-se aos valores da liberdade e da personalidade como instrumento de sua proteção [11].
HESSE entende que as garantias são direitos fundamentais como elementos da ordem objetiva, normalizando princípios da estatalidade jurídica, que determinam, como partes integrantes dessa ordem, o objetivo, os limites e o modo de cumprimento das tarefas estatal-sociais. São vinculativos para todos os poderes estatais [12].
As garantias têm suma importância para a concretização do Estado de Direito, porque devem resguardar os direitos fundamentais, por meios que possibilitem o seu exercício frente aos desmandos do poder público. [13].
As garantias fundamentais podem ser de dois tipos, segundo classificação de Paulo BONAVIDES: numa acepção lata, como garantias da própria Constituição, e em uma acepção estrita, como garantias dos direitos subjetivos expressos ou outorgados na Carta Magna; portanto, remédios jurisdicionais eficazes para a salvaguarda desses direitos [14].
Seguindo nas palavras do referido doutrinador: "Na primeira acepção as garantias são concebidas para manter a eficácia e permanência da ordem constitucional contra fatores desestabilizantes, sendo em geral a reforma da Constituição, nesse caso, um mecanismo primordial e poderoso de segurança e conservação do Estado de Direito, o mesmo se dizendo também do estado de sítio e de outros remédios excepcionais, fadados a manter de pé, em ocasiões de crise e instabilidade, as bases do regime e o sistema das instituições" [15].
"Na segunda acepção já não se trata de obter uma garantia para a Constituição e o direito objetivo na sua totalidade, mas de estabelecer uma proteção direta e imediata aos direitos fundamentais, por meio de remédios jurisdicionais próprios e eficazes, providos pela ordem constitucional mesma. A garantia constitucional nesta última acepção é em geral entendida, não somente como garantia prática do direito subjetivo, garantia que de perto sempre o circunda toda vez que a uma cláusula declaratória do direito corresponde a respectiva cláusula assecuratória, senão também com o próprio instrumento (remédio processual) que faz a eficácia, a segurança e a proteção do direito violado" [16].
José Afonso da SILVA, analisando a questão sob a óptica do direito positivado, assenta que as garantias constitucionais se distinguem em duas classes: 1) gerais – são instituições constitucionais que se inserem no mecanismo de freios e contrapesos dos poderes e, assim, visam impedir o arbítrio, com o que constituem, ao mesmo tempo, técnicas assecuratórias de eficácia das normas conferidoras dos direitos fundamentais. Tais são, p. ex., a existência de constituição rígida que declara os direitos fundamentais e suas garantias e estruture órgãos jurisdicionais dotados de independência e imparcialidade, com capacidade, de fato e de direito, para solucionar conflitos de interesses interindividuais e, especialmente, os que se manifestam entre o indivíduo e o Estado; 2) especiais – são prescrições que conferem, aos titulares dos direitos fundamentais, meios, técnicas, instrumentos ou procedimentos para imporem o respeito e a exigibilidade desses direitos; e, limitando a atuação dos órgãos estatais ou mesmo de particulares, protegem a eficácia, aplicabilidade dos direitos fundamentais de modo especial [17].
As garantias constitucionais especiais, para os fins deste estudo, devem ser entendidas como instrumentos de proteção jurisdicional dos direitos fundamentais. Sob este prisma vislumbra-se o princípio do acesso à justiça.
4. Acesso à Justiça ou Inafastabilidade da Jurisdição
O princípio da inafastabilidade da jurisdição, também conhecido como acesso à Justiça, insculpido no art. 5º, inciso XXXV ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"), por ser uma garantia constitucional ou fundamental, realiza-se juridicamente quando efetiva os direitos.
Com a possibilidade de o homem postular a reversão de situações contrárias ao direito, o Estado estabelece o monopólio da jurisdição. Esta situação é originária da nova acepção do Estado de Direito, onde o primado da lei, como garantia dos direitos humanos, se socorre das instituições públicas para a manutenção da ordem. HESSE ensina que o artigo 19, alínea 4, da Lei Fundamental Alemã prevê que o princípio do acesso à justiça, ao preceituar que "a cada um que é violado em seus direitos pelo poder público está aberta a via judicial" [18].
A garantia constitucional de acesso à justiça [19], como primado de concretização dos direitos fundamentais, tem o Estado como ator principal, vez que é o destinatário da norma, quem está investido no poder de reverter a violação do direito em favor do indivíduo.
O direito de ação consolida-se na compreensão de que todas as pessoas têm de obter a tutela efetiva por meio dos juízes e tribunais. O acesso à justiça, como forma de proteção da situação jurídica concretiza-se através de um instrumento essencial que é o próprio processo, consagrado na constituição [20].
BARACHO leciona: "O processo, como garantia constitucional, consolida-se nas constituições do século XX, através da consagração de princípios de direito processual, com o reconhecimento e a enumeração de direitos da pessoa humana, sendo que esses se consolidam pelas garantias que os torna efetivos e exeqüíveis" [21].
O princípio da inafastabilidade da jurisdição se divide em dois aspectos: primeiro, na proibição direcionada ao legislador de vedar o acesso ao Judiciário, proibindo-o de consignar no direito positivado qualquer restrição à possibilidade de o prejudicado pleitear a reparação, pela via judicial, de uma lesão; por segundo, utilizar-se do processo judicial como o meio, o instrumento, de instigar o poder público a dizer qual o direito aplicável à espécie. Portanto, a efetiva possibilidade de o cidadão acionar o judiciário para ver conhecida sua pretensão, desdobra-se em: formal (vedação jurídica) e material (meios para a concretização).
Este trabalho se ocupará desta última acepção, o processo judicial como concretização do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Isto em razão da efetivação das decisões, pois é senso comum que o Judiciário necessita reestudar suas funções, que estão ficando defasadas com o passar do tempo.
5. Proteção Judicial. Efetividade
O direito ao processo, ou o direito de agir em juízo, para obter proteção da situação jurídica em que se encontra, concretiza-se através de um instrumento essencial que é o próprio processo. O direito ao processo ou à tutela jurisdicional é garantia consagrada na Constituição, que se completa com o direito à decisão de mérito da demanda. A finalidade da ação, de conformidade com os dados constitucionais, é o pronunciamento que se faz de uma decisão de mérito da demanda [22].
Cabe ao Judiciário o enfrentamento da questão de fundo. Não basta que diga qual o "direito não é aplicável à espécie", a sociedade precisa de uma decisão que diga qual o "direito é aplicável à espécie", atendendo a uma das principais finalidades do processo, que é a pacificação social.
O país tem grande déficit operacional, com vários municípios sem a existência de órgãos judiciais, meios, instrumentos, procedimentos, pois com os quais contamos não estão condizentes com a realidade social, judicial nacional e a judicialização dos conflitos. Sem esquecer da utilização frequente de justificativas processuais para encerrar as ações sem resolução do mérito, como é o caso das condições da ação.
As pretensas amarras judiciais ou legais, assentadas pelo Judiciário de forma a justificar a morosidade, e até mesmo a omissão em decidir determinadas demandas, já não se justificam, em razão dos compromissos dos poderes públicos com a cidadania. No Estado contemporâneo os poderes públicos têm uma função material e não apenas formal, com o intuito primeiro de desenvolver políticas para a satisfação das necessidades prementes da sociedade. E a brasileira, cultural e socialmente, tem sede de justiça.
HESSE adverte para esta nova exigência levada ao Judiciário. Assenta o doutrinador alemão: "Embora o artigo 19, alínea 4, da Lei Fundamental, não se restrinja à proteção dos direitos fundamentais, serve ela, contudo, em uma parte essencial, ao seu asseguramento. A ‘via judicial’, que ela garante, é a via para um tribunal. A organização mais pormenorizada fica, nisso, a cargo da ordenação processual respectiva; contudo, a recorrência à via judicial não deve ser dificultada em uma forma não-exigível que não mais pode ser justificada por razões de fundo: o artigo 19, alínea 4, da Lei Fundamental, garante também a efetividade da proteção jurídica no sentido de uma direito a um controle judicial eficaz em todas as instâncias existentes.
... o Tribunal Constitucional Federal, nomeadamente em sua jurisprudência recente, infere de direitos fundamentais materiais um direito imediato à proteção jurídica efetiva. Nisso aparece o significado crescente dos procedimentos para a realização dos direitos fundamentais. Porque pode prejudicar a validez efetiva mesma dos direitos fundamentais, cada vez, afetados se, ou são estabelecidos obstáculos procedimentais muito altos ou, se uma decisão judicial vem muito tarde para poder eliminar ainda eficazmente a infração de direitos fundamentais" [23].
Segundo este ensinamento, qualquer procedimento judicial que implique em postergação ou negação de apreciação do mérito da causa fere o dispositivo constitucional. Tal pensamento constrói a ruptura do Estado Liberal, fortalecendo o paradigma jurídico do Estado Social. O estado deixa de ser absenteísta, onde o indivíduo tudo pode, e passa para a intervenção que exige uma estruturação (legal e material) para conceder ao indivíduo, por exemplo, a igualdade ou a liberdade.
Esse entendimento que estrutura as regras sobre jurisdição; o Estado deve prover os meios para a satisfação do direito garantido constitucionalmente; este é o primeiro valor que o magistrado deve ter em conta, deve satisfazer, ao se defrontar com ações, quaisquer delas. Ao contrário do que é realizado diariamente com a extinção dos feitos, sem resolução do mérito, porque não satisfeita uma das condições da ação (interesse, legitimidade e possibilidade jurídica do pedido).
Essa postura deve ser oposta à que muitos pregam, inclusive na mídia, de que o Judiciário não deve exercer a jurisdição neste, naquele e em determinados pontos. Dizem eles: as forças do mercado devem ajustar os fatos; a intromissão estatal só pode causar estragos e não benefícios.
A cultura do Estado Democrático de Direito visa, justamente, a ativação estatal para implementar as condições de vida, saúde, liberdade, etc., dos homens.
A vertente a ser realizada pelo princípio do acesso à justiça é justamente a de que a proteção judicial seja efetiva. P propiciar a mera possibilidade de acionar o judiciário, sem que este dê respaldo ao direito violado, é negar o primado das garantias fundamentais especiais.
Considerando a morosidade no deslinde das questões, a doutrina tem se preocupado com a efetividade da prestação jurisdicional. Rui BARBOSA já dizia que justiça tardia não é justiça, mas injustiça; sendo certo que há necessidade de uma completa entrega da jurisdição, cabendo ao próprio Poder a resolução dos problemas que hoje se lhe afligem. Aqueles tópicos tão lembrados nos discursos e nas cartas de intenção já não fazem sentido; a proteção judicial efetiva é tarefa a ser desempenhada pelos próprios tribunais, e não fazem parte da pauta do legislativo ou do executivo.
BARACHO fala da "aplicação concreta do direito", como resposta do Judiciário às pendências, indagações e questionamentos que lhe são encaminhados a por via de múltiplas provocações [24].
O Supremo Tribunal Federal assenta que a proteção judicial efetiva é elemento essencial para a realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica, impedindo que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais [25].