CAPÍTULO 2
Na vigência do jusnaturalismo e do positivismo jurídico os princípios não ostentavam o status de "coração das Constituições" que hoje apresentam. A grande importância atribuída aos mesmos deveu-se principalmente a consolidação do seu caráter normativo. [72]
Neste sentido, Luís Roberto Barroso assevera que "Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempenham papéis variados. O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconhecimento de sua normatividade." [73]
O fato de a nossa Constituição se fundar em um sistema aberto de normas, composto não só por regras, mas também por princípios, é ponto de partida para análise da adoção por pares homossexuais:
[...] o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto. [74]
Para uma melhor compreensão dos princípios constitucionais que garantem a adoção por casais homossexuais, se faz necessário tecer as distinções entre regras e princípios, espécies do gênero norma jurídica.
Observa-se que as formas utilizadas para se fazer tal diferenciação são variadas. Fábio de Oliveira informa que as propostas classificatórias podem ser agrupadas em dois grandes critérios: o gradualista e o qualitativo. [75]
O critério gradualista, como o próprio nome revela, enuncia que entre princípios e regras há uma diferença de grau. Canotilho elenca cinco recursos gradualistas, são eles:
a) Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida; b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa; c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito); d) Proximidade da ideia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados na exigência de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘ideia de direito’ (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) Natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamental. [76]
O critério qualitativo, por seu turno, complementa e não exclui o gradualista. Luís Afonso Heck, citando Dworkin, aduz que para referido autor as regras, ao contrário dos princípios, são aplicáveis por completo ou não são aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada, ou seja, ou a regra é válida, e, por conseguinte, deve ser aplicada em face da concretização da situação fática prevista, ou é inválida e nada contribui para a decisão. [77]
Essa primeira parte da teoria de Dworkin implica numa segunda: a dimensão do peso ou importância. Logo, diante de um conflito entre princípios, deve ser levado em conta o peso relativo de cada um deles, sem que isso implique a invalidade do princípio de menor peso. Esse juízo de ponderação não se aplica as regras. Havendo conflito entre elas, instrumentos clássicos de interpretação deverão ser aplicados, tais como o de que a "lei posterior revoga lei anterior", "lei especial revoga lei geral", entre outros. [78]
George e Glauco Salomão asseveram que para Robert Alexy os princípios são mandamentos de otimização, pois determinam que algo seja realizado em uma medida tão alta quanto possível. Os princípios podem ser cumpridos em diversos graus, a depender das possibilidades jurídicas [79] e fáticas existentes. [80]
Feitas tais considerações, é oportuno destacar que o tratamento da adoção homossexual não será analisado unicamente sob o prisma das normas infraconstitucionais visto que uma das principais atribuições dos princípios é a de conferir unidade ao sistema jurídico e condicionar a atividade do intérprete. Este, por sua vez, não pode olvidar que as regras do sistema encontram seu fundamento nos princípios.
Sendo assim, o estudo dos princípios constitucionais torna-se imprescindível para o deslinde das questões mais polêmicas e complexas que se apresentam ao Direito.
Neste capítulo serão abordados os princípios da Igualdade, do Melhor Interesse da Criança, da Afetividade e da Dignidade da Pessoa Humana enquanto aportes teóricos que legitimam a adoção entre casais homossexuais. Ressalte-se que a análise dos princípios constitucionais será feita sob o viés jurídico, afastando quaisquer aprofundamentos filosóficos sobre o tema.
2.2.Princípio da Igualdade
A ideia jurídica de igualdade, formalizada inicialmente no artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, significou um decisivo avanço histórico. Em uma época na qual predominava a ótica contratualista liberal e que os direitos humanos reduziam-se aos direitos à liberdade, segurança e propriedade, o princípio da igualdade, também conhecido como princípio da isonomia, surge, juntamente com outros direitos humanos, para tentar frear os abusos do poder absolutista e impor limites à atuação do Estado. [81]
Merece registro a assertiva de Ricardo Lobo Torres para quem "O princípio da igualdade, consistindo na proibição de arbitrariedade, desproporção ou excesso, significará vedação da desigualdade consubstanciada na injustiça, na insegurança e na opressão da liberdade." [82] Ressalte-se que a Constituição brasileira acolheu expressamente referido princípio em vários de seus dispositivos. [83]
Sob a ótica contemporânea, a implementação do direito à igualdade implica na promoção da igualdade e na concretização do combate à discriminação. Discriminação seria
"[...] toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo." [84]
Neste sentido, o artigo 3º, inciso IV da CF/88 veda qualquer tipo de discriminação com base na origem, cor da pele ou gênero. Certamente, a orientação sexual está implícita nesta última categoria.
No entanto, o combate à discriminação, por si só, não é suficiente para concretizar a igualdade. Faz-se necessário promover estratégias indispensáveis a inserção e inclusão das minorias, vulneráveis nos espaços sociais, pois "[...] a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão". [85]
Importa destacar que a doutrina costuma fazer uma distinção entre igualdade material e formal. Esta importa um tratamento uniforme perante a lei e garante a todo cidadão só ser desigualado por determinação do ordenamento constitucional. Aquela, também conhecida como igualdade substancial ou substantiva, envolve questões mais complexas por estar ligada à ideia de justiça social e distributiva. Preconiza uma igualdade real e efetiva de todos na vida e não apenas na lei ou perante a lei. [86]
Deixando de lado todas as dificuldades teóricas e práticas inerentes a concretização da igualdade material, Luís Roberto Barroso defende que a questão dos homossexuais resolve-se no plano da igualdade puramente formal.
Os órgãos e agentes públicos não podem desequiparar os cidadãos quando não haja uma razão legítima e um motivo relevante.
A noção de igualdade formal projeta-se tanto para o âmbito da igualdade na lei – comando dirigido ao legislador – quanto para a igualdade perante a lei, mandamento voltado para o intérprete do Direito. A lei não deve dar tratamento diferenciado a pessoas e situações substancialmente iguais, sendo inconstitucionais as distinções caprichosas e injustificadas. Já os intérpretes – doutrinários administrativos ou judiciais – devem atribuir sentido e alcance às leis de modo a evitar que produzam, concretamente, efeitos inequalitários. Em certas situações, respeitado o limite semântico dos enunciados normativos, deverão proceder de forma corretiva, realizando a interpretação das leis conforme a Constituição. (grifos do autor) [87]
Não se pode afirmar que todo tratamento desigual é inválido. Desde que atenda aos ditames do princípio da igualdade ou isonomia, quais sejam, uma justificativa razoável e um fim justo, a desequiparação é perfeitamente possível. A própria Constituição estabelece distinções com base em fatores como sexo, renda, nacionalidade. [88] Desse modo, seria razoável a negação de direitos com base unicamente na orientação sexual dos indivíduos?
Aqueles que defendem a impossibilidade das uniões homossexuais constituírem entidades familiares [89] fundamentam suas teses em três questões, especialmente. De início alegam não ser possível a procriação. Esta, entretanto, não é a única função da família que hoje elege a afetividade como pressuposto básico. Sustentam que tais uniões escapariam dos padrões de normalidade moral. Em uma sociedade pluralista, contudo, faz-se mister reconhecer identidades que fujam ao arquétipo majoritário. Por fim, enaltecem a incompatibilidade com os valores cristãos. Ora, considerando a laicização do Estado, referida discussão não deve prevalecer no ambiente público. [90]
Sendo assim, não há como reconhecer a legitimidade da discriminação com base na orientação sexual. Acrescente-se que os filhos também têm o direito à igualdade de tratamento independentemente da orientação sexual de seus pais. [91]
Desta maneira, outra ilação não se pode chegar senão a de que a lei deve promover o tratamento equitativo de todos os cidadãos e jamais ser fonte de privilégios ou de perseguições fundadas na orientação sexual dos indivíduos.
O princípio da igualdade, portanto, é suficiente para afastar qualquer forma de discriminação quanto aos homossexuais.
No entanto, deve ser destacado que a questão da adoção é mais complexa pois não leva em conta apenas os interesses do adotantes (casal homossexual) mas também ingressa no campo de interesse das crianças e adolescentes.
Os óbices de cunho social e psicológico já foram tratados no primeiro capítulo restando a análise do princípio constitucional específico do Melhor Interesse da Criança que será objeto do próximo tópico.
2.3.Princípio do Melhor Interesse da Criança
A maior parte dos trabalhos que cuidam da adoção homossexual tratam a temática sob a ótica dos adotantes. Porém, para que o estudo seja feito de modo satisfatório, imprescindível se faz analisar a questão também sob o viés do menor. É neste ponto que merece ser destacado o princípio do Melhor Interesse da Criança.
Consoante Tânia da Silva Pereira, a ideia de melhor interesse da criança teve origem no instituto parens patriae, utilizado na Inglaterra e que tinha como objetivo a proteção do Rei e da Coroa às pessoas que não podiam se defender sozinhas. [92]
A necessidade de proteção especial à criança foi enaltecida, internacionalmente, com a Convenção de Genebra de 1924.
Em 1959, a Declaração Universal dos Direitos da Criança já determinava que referido princípio fosse consideração fundamental da lei, porém, somente em 1989 foi aprovada, pelas Nações Unidas, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança que deu maior abrangência ao princípio do Melhor Interesse. Este deve estar presente não só na legislação como também em todos os atos concernentes aos menores. Referida Convenção foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710/90, incorporando tal princípio ao ordenamento jurídico brasileiro. [93]
[...] A criança deixou, portanto, de ocupar o papel de parte integrante do complexo familiar, passando a ser mais um membro individualizado da família humana que, pela ausência de maturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive da proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento. [94]
Flávia Piovesan e Wilson Ricardo Buquetti Pirotta destacam que a Constituição de 1988 introduziu uma profunda modificação na situação jurídica das crianças e adolescentes já que incorporou vários dispositivos que seguem as diretrizes internacionais de direitos humanos e os padrões democráticos de organização do Estado e da sociedade. Aduzem que a configuração dos direitos das crianças e adolescentes como direitos humanos enaltece a inalienabilidade desses direitos e "[...] compromete o Estado, tanto no âmbito interno quanto no internacional, a respeitá-los, defendê-los e promovê-los." [95]
O caráter normativo do princípio do melhor interesse do menor pode ser constatado no artigo 227, caput, da Constituição Federal [96] e no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. [97] Estas previsões vinculam tanto o Poder Legislativo na elaboração de normas protetivas as crianças quanto o Judiciário que deve ter uma interpretação responsável e comprometida com o menor.
Patrícia Melo Messias alerta que a concepção de melhor interesse do menor trata-se de cláusula geral devido à variedade de seu conteúdo e que, portanto, cabe ao magistrado interpretá-lo diante do caso concreto.
O fato de a aplicação basear-se estritamente na subjetividade de cada juiz reflete um problema enfrentado na prática: o magistrado traz suas experiências e valores éticos e muitas vezes a homossexualidade é tida como um qualificador negativo.
Todavia, o que deve importar são fatores como as características pessoais dos candidatos à adoção, sua capacitação, habilidade nos âmbitos emocional e patrimonial. [98] Não obstante o elevado grau de abstração do princípio em análise, o compromisso do magistrado com o menor deve estar sempre presente.
[...] é mister que os aplicadores do direito adotem uma linha coerente de interpretação a fim de que o melhor interesse do menor seja considerado em todos os âmbitos de proteção. Devem os intérpretes, por outro lado, procurar sempre uma orientação objetiva que possa por em prática dois importantes paradigmas: a) assumir a criança e o adolescente como sujeitos de direito e b) promover a implementação do princípio do melhor interesse. [99]
Luiz Edson Fachin elenca alguns fatores que merecem ser observados na questão do melhor interesse, quando se aprovam adoções e guardas. São eles:
- o amor e os laços afetivos entre o titular da guarda e a criança; - a habitualidade do titular da guarda de dar à criança amor e orientação; - a habilidade do titular da guarda de prover a criança com comida, abrigo, vestuário e assistência médica (os chamados alimentos necessários); - qualquer padrão de vida estabelecido; - a saúde do titular da guarda; - o lar da criança, a escola, a comunidade e os laços religiosos; - a preferência da criança, se ela tem idade suficiente para ter opinião. [100]
Como visto, a sexualidade do adotante não foi considerada pois não impede que o indivíduo exerça, satisfatoriamente, o papel de pai ou mãe nem inibe o seu potencial de prover a criança com recursos de ordem material e pessoal.
Muitos daqueles que são contra a adoção por casais homossexuais utilizam, igualmente, o princípio do Melhor Interesse da Criança como um de seus argumentos devido justamente a essa discricionariedade na sua interpretação.
Sustentam que a homossexualidade dos adotantes, por si só, representa afronta ao princípio em questão. Porém, a orientação sexual dos indivíduos, como já demonstrado, não pode servir como critério desqualificador para a adoção. Conforme Carlos Pamplona Corte Real:
[...] o interesse superior da criança para exigir, bem pelo contrário, a ampliação e a facilitação de candidaturas de pais adoptivos homossexuais, por forma a obviar pressurosamente, ainda que com um qualquer acompanhamento (acima preconizado para todo o tipo de adoptantes), à situação difícil dos filhos adoptivos. Só um manifesto preconceito lesivo do princípio constitucional da igualdade e da não discriminação em função da orientação sexual (cfr. Art. 13º, nº2, da CRP) pode estar na base, que nunca legitima, da inviabilização do acesso ao instituto da adopção gays e lésbicas. [101]
Não se pode perder de vista que tanto homossexuais quanto heterossexuais podem ter condutas que agridam a formação moral e psicológica do menor. Em tais casos, devem ser investigados indistintamente e comprovando-se a incapacidade, impedir a adoção.
O que não se justifica é que, pelo fato exclusivo de ser homossexual, seja impedido de adotar pois a Constituição assegura o direito à igualdade sem distinção de sexo e de orientação sexual. [102] Repise-se que não há óbices de cunho psicológico ou social suficientes a fundamentar tal posicionamento. Com a justificativa de proteger os menores, acabam tratando-os de forma desigual e privando-os de alguns direitos.
Não se pode olvidar que as necessidades das crianças devem ser reconhecidas em detrimento do interesses dos pais (art. 43 do ECA e 1.625 do CC/02).
De acordo com o artigo 28, §1º da Lei nº 8.069/90 (ECA), o desejo do menor deve ser consultado pelo magistrado e pela equipe interdisciplinar que o assessora sempre que possível. A oitiva das crianças e adolescentes contribui para que as autoridades encarregadas possam decidir em prol dos seus interesses.
Ademais, sabe-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a adoção por uma única pessoa, não fazendo qualquer restrição quanto a sua orientação sexual. Logo, nada impede que um homossexual que mantenha um vínculo afetivo estável com outro adote uma criança isoladamente. Trata-se de um fato social bastante frequente na realidade internacional [103] e, neste caso, o menor estará desamparado com relação ao não adotante em claro desrespeito ao princípio do melhor interesse do menor.
Neste rumo, assevera Maria Berenice Dias: "Ao se arrostar a realidade, é imperioso concluir que, de forma paradoxal, o instituto de resguardar e preservar a criança e adolescente resta por lhe subtrair a possibilidade de usufruir direitos que de fato possui." [104]
A adoção em conjunto pelo par homossexual aumenta a segurança jurídica do menor que verá ampliado seus benefícios como alimentos e patrimônio duplo. As vantagens reais da filiação homossexual plena são facilmente constatadas se confrontadas com a realidade de exclusão a que estará exposto o filho adotado por apenas um dos conviventes quando do fim da relação ou falecimento de um deles.
Toda criança tem o direito a participar de um núcleo familiar. A recusa à adoção de crianças e adolescentes por homossexuais deve estar fundamentada em motivos reais e não em meras suposições.
Sendo assim, consoante o Princípio do Melhor Interesse do Menor, indeferir-se-á a colocação em família substituta caso reste comprovado alguma incompatibilidade ou ambiente familiar inadequado, independentemente da orientação sexual de seus pretendentes.
2.4.Princípio da Afetividade
Como fenômeno sócio-cultural regulamentado pelo Direito, a família deve acompanhar as transformações por que passa a sociedade. Nesse processo de evolução, a afetividade surge como o elemento central desse novo paradigma. [105]
Hodiernamente, o núcleo familiar não é mais considerado exclusivamente um meio para procriação, transmissão do nome ou do patrimônio mas sim espaço no qual os indivíduos suprem suas necessidades afetivas e desempenham suas primeiras experiências relacionais e de aprendizagem.
Para José Oliveira "a afetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros - a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social - é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores características da família atual." [106]
O conceito recente de família também ensejou a reformulação da definição de filiação que se desprendeu dos laços biológicos. A partir das disposições do ECA pode-se vislumbrar a valorização do elemento afetivo da filiação como um fator garantidor do melhor interesse da criança em detrimento do critério meramente biológico. Conforme assevera Pietro Perlingieri:
o sangue e os afetos são razões autônomas de justificação para o momento constitutivo da família, mas o perfil consensual e a affectio constante e espontânea exercem cada vez mais o papel de denominador comum de qualquer núcleo familiar. O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas que se traduzem em uma comunhão de vidas. [107]
No Brasil, uma das marcas da evolução do direito de família é a conformação da socioafetividade como um fato jurídico e não apenas um fato social. Paulo Lôbo destaca que a afetividade não se confunde com o fato psicológico do afeto, pois pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações.
O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. [108]
Sendo um dever jurídico deve ser observado por pais e filhos, independentemente de haver entre eles afeto real. [109]
Com o advento da Constituição de 1988 não há que se falar em supremacia da filiação biológica já que a Carta não protege unicamente a família matrimonial e não mais estabelece distinção entre filhos biológicos e adotivos.
Ao investigar o melhor interesse da criança, foi escolhido o elo de afetividade como parâmetro para a definição dos vínculos parentais. A verdade biológica, presumida, legal ou genética deixou de interessar. O fundamental é identificar quem a criança considera pai e quem a ama como pai. [110]
O princípio da afetividade encontra-se implícito na CF/88 e nela podem ser observados vários de seus fundamentos essenciais:
[...] a) todos os filhos são iguais, independentemente da sua origem (art. 227, §6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); d) a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227). [111]
O reconhecimento jurídico da afetividade pode ser vislumbrado na proteção dada às famílias de fato pelo Direito que, por sua vez, vem reconhecendo progressivamente novas modalidades de entidade familiar. Neste diapasão, o casamento não é mais considerado o único legitimador da família e ao lado dele o art. 226 da CF/88 [112] elenca expressamente a união estável entre homem e mulher e a comunidade formada por um dos pais e os seus descendentes. [113]
Paulo Lôbo alerta que referido dispositivo é norma de inclusão e, portanto, sua enumeração é exemplificativa e não taxativa. Isso significa que não se pode negar a natureza de entidade familiar para toda e qualquer entidade que preencha os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensividade. [114] Sendo assim, a proteção estatal deve ser estendida às entidades constituídas por avós e netos, tios e sobrinhos, indivíduos do mesmo sexo ou qualquer outra que satisfaça os pressupostos acima mencionados.
Para Berenice Dias, no entanto, as uniões homossexuais devem ser equiparadas, analogicamente, à união estável. [115]
Seja uma entidade familiar autônoma, seja equiparada por analogia a união estável, o fato é que a união homossexual possui o status constitucional de família e em decorrência disto seus integrantes têm o direito de exercer a paternidade/maternidade através da adoção de crianças e adolescentes.
Negar a possibilidade do reconhecimento da filiação que tem por base a afetividade, quando os pais são do mesmo sexo é uma forma perversa de discriminação que só vem prejudicar quem apenas quer ter alguém para chamar de mãe, alguém para chamar de pai. Se são dois pais ou duas mães, não importa, mais amor irá receber. [116]
É preciso estar atento para a evolução da sociedade e para as mudanças perpetradas nas famílias, que não mais possuem a mesma estrutura de tempos passados. É na afetividade que a família contemporânea encontra o seu principal fundamento.
2.5.Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Conceituar dignidade humana não é tarefa fácil. Tal dificuldade está atrelada ao fato de que se trata de conceito polissêmico, vago e impreciso e, portanto, muitas vezes é mais simples afirmar o que a dignidade não é do que expressar o que ela é.
A problemática deste preceito decorre não só "[...] dos enraizamentos religiosos, filosóficos e históricos da dignidade da pessoa humana, mas também da dependência da respectiva situação global civilizacional e cultural da sociedade." [117]
A despeito da multiplicidade de sentidos, duas ideias são reconhecidas pela ciência convencional:
(i) ninguém pode ser tratado como meio, devendo cada indivíduo ser considerado um fim em si mesmo; e (ii) todos os projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são dignos de igual respeito e consideração, são merecedores de igual reconhecimento. [118]
Deste modo, a partir do reconhecimento de tal princípio, impõe-se a proibição de que o indivíduo seja tido como "[...] mero objeto em relação ao Estado ou a terceiros, expondo-o a tratamento que comprometa sua qualidade de sujeito de direitos fundamentais." [119]
Ingo Wolfgang Sarlet ensina que a conceituação deste princípio se mantém em um processo permanente de desenvolvimento e construção não podendo ser definido de maneira fixa sob pena de não atender aos ditames do pluralismo das sociedades democráticas contemporâneas. E complementa: "[...] como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado [...]". [120]
Considerado um dos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e conforme leciona Daniel Sarmento é o centro axiológico do sistema jurídico sendo responsável pela unidade de todo o arcabouço normativo. [121] Simboliza, na verdade, um autêntico "superprincípio", a norma maior do ordenamento jurídico brasileiro, dotando-lhe especial sentido, unidade e racionalidade. [122]
A Constituição de 1988 empreendeu significativas mudanças no Direito de Família pois lhe atribuiu caráter publicista na medida em que há forte presença dos princípios de ordem pública em detrimento de interesses meramente privados.
Neste rumo, o ordenamento jurídico brasileiro vislumbra o relevante papel da família na promoção da dignidade humana. Entretanto, esta tutela privilegiada condiciona-se a observância de um pressuposto finalístico: "[...] merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes." [123]
A orientação sexual de cada indivíduo não pode servir como justificativa para se recusar proteção jurídica ao casal homossexual. Muito menos para se entender que tais uniões não seriam aptas a promover a dignidade de seus componentes. Ana Carla Matos defende:
Há de se conhecer a dignidade existente na união homoafetiva. O conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo. A sexualidade está dentro do campo da subjetividade, representando uma fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, e partilhar a cotidianidade da vida e parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da experiência humana. [124]
O direito ao reconhecimento é uma dimensão essencial do princípio da dignidade da pessoa humana já que, por ser um ser social que vive em constante relação com outros seres, cada indivíduo necessita do reconhecimento do seu valor para exercer sua personalidade de forma plena.
Ao negar o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo e consequentemente da adoção por tais indivíduos de modo conjunto
[...] o Estado atenta profundamente contra a identidade dos homossexuais, alimentando e legitimando uma cultura homofóbica na sociedade. De fato, o que caracteriza o homossexual é exatamente o fato de que a sua afetividade e sexualidade são dirigidas às pessoas do mesmo sexo. Assim, rejeitar o valor das relações amorosas entre iguais é o mesmo que desprezar um traço essencial de sua personalidade. [125]
Desta maneira, o princípio em questão é duplamente contrariado: Tanto sob a ótica dos casais homossexuais, quanto sob a dos menores, a quem é negado o ingresso em uma família que lhe proporcione toda a estrutura necessária ao seu pleno desenvolvimento.
Não há sentido, portanto, em proibir a adoção de crianças e adolescentes pelo fato exclusivo dos adotantes serem homossexuais, sob pena de afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e demais princípios abordados. Nas palavras de Camila Guerin:
[...] os princípios não só possibilitam como, de fato, autorizam a concessão da adoção aos casais que vivem em união homoafetiva, salvo se estes não oferecerem ambiente familiar adequado para a criança ou adolescente, fato que não decorrerá da orientação sexual e vale também para os casais heterossexuais. [126]
Negar a possibilidade de adoção entre pares homossexuais é sublinhar o preconceito velado para com os diferentes.