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A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo).

Uma tentativa de reversão da jurisprudência

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Agenda 11/05/2010 às 00:00

5.

Houve quem defendesse que o fornecimento de energia elétrica não poderia ser suspenso, por falta de pagamento, ao argumento de que a energia elétrica é um bem jurídico que se afigura como indispensável à manutenção e desenvolvimento da dignidade da pessoa humana. Invocava-se, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no inc. III do art. 1º. da CF, como obstáculo ao corte de energia do usuário inadimplente. A idéia era de que, como o Estado deve garantir recursos materiais mínimos para a sobrevivência de todo indivíduo, não poderia deixar faltar o fornecimento de energia elétrica, pois sem essa provisão a própria dignidade da pessoa humana ficaria comprometida.

Essa concepção foi rejeitada desde cedo, a partir do momento em que as cortes judiciárias admitiram o corte de energia por inadimplemento; além disso, ela também errava ao enxergar no vínculo da concessionária com o consumidor uma relação regida pelo direito público (e não de natureza contratual, regulada pelo direito privado), desconsiderando a contraprestação pecuniária a cargo deste último como condição para o recebimento do serviço. De qualquer maneira, e tendo em visto o caráter acadêmico do presente trabalho, reputamos interessante retomar a discussão apenas para demonstrar a inviabilidade dessa teoria.

O princípio da dignidade da pessoa humana, implantado na Constituição, assegura um mínimo de segurança social. Aqui assoma a ideia do chamado mínimo existencial, no sentido de que o Estado deve garantir a todo indivíduo os recursos materiais mínimos, pois sem essa garantia é a própria dignidade da pessoa humana que fica comprometida. "A garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e obrigações" [57].

O comprometimento da dignidade da pessoa humana, por falta de condições materiais mínimas, justificaria inclusive a intervenção do Poder Judiciário, definindo políticas públicas, nos casos de omissão do Poder Executivo. Em doutrina já se admitia que o plexo de garantias constitucionais imputadas à responsabilidade estatal necessita advir de políticas públicas concretizadoras, as quais, se não implantadas diretamente pelo Executivo, justifica a intervenção judicial. Como explica Rogério Gesta Leal, em caráter excepcional e tendo em vista situações "condizentes a direitos indisponíveis e da mais alta importância e emergência comunitárias", o que faria exigir "imediata materialização ao máximo possível" dos direitos sociais, "sob pena de comprometer a dignidade humana e o mínimo existencial dos seus carecedores", o Judiciário pode ser chamado a intervir [58].

Em julgamento proferido no ano de 2006, da relatoria do Min. Celso de Mello, a Corte Suprema brasileira chegou a reconhecer essa possibilidade de ação judiciária para implementação de políticas públicas exigidas como implementação de direitos sociais básicos:

"A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. (...) Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam sesta implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade dos direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional" [59].

O mínimo existencial, portanto, serve como um dos parâmetros de dosimetria e densificação material da pessoa humana, autorizando inclusive a intervenção judicial para sua preservação na hipótese de omissão do Poder Executivo. Não se pode descurar, todavia, que as prestações positivas a cargo do Estado estão sujeitas à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. Essa teoria impossibilita exigências acima de certo limite básico social [60], porquanto tem que se levar em conta "não somente o direito individual ou coletivo propriamente dito, mas sua contextualização em face dos demais sujeitos de direitos potencialmente impactados pelo atendimento do seu interesse, notadamente sob a perspectiva do mínimo fisiológico, aqui entendido como as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção contra necessidades de caráter existencial básico" [61]. "Um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental em nível de mínimo existencial quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte, ou sofrimento grave, ou toca o núcleo essencial da autonomia" [62].

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O reconhecimento de que a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana redunda na obrigação estatal de garantir um mínimo de condições materiais ao indivíduo não implica necessariamente na exigência à empresa concessionária de fornecer energia elétrica sem que haja a respectiva contraprestação remuneratória pelo serviço. Isso porque não existe qualquer norma constitucional ou infraconstitucional obrigando o prestador privado (concessionário de serviço de energia elétrica) a garantir o fornecimento independentemente de pagamento do preço do serviço. Não existe um direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e sem qualquer custo ao fornecimento de energia elétrica.

Os legisladores levaram isso em consideração, no momento de definir as políticas públicas pertinentes à definição dos agentes provedores, a forma de fazer a distribuição, com que custos e pagos por quem. Por isso que a Lei de concessões e permissões vigentes no país (Lei n. 8.987/95) prevê a existência de uma política de tarifa pública remuneratória à prestação dos serviços. A Lei 9.427/96 (que disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), por sua vez, estabelece que o regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço (art. 14, I).

Portanto, o regime econômico e financeiro da concessão do serviço de energia elétrica previu a contraprestação do usuário, representada em termos do pagamento de um preço pelo consumo. Para garantia do equilíbrio econômico-financeiro das concessões, as leis específicas (Lei 8.987/95 e Lei 9.427/92) previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira [63]. Em assim sendo, uma política pública de caráter social no setor elétrico pode ser viabilizada no sentido de prever tarifas mais baixas para determinadas categorias de usuários, mas nunca isentando completamente (e sem qualquer critério) o usuário do pagamento de sua contraprestação.

A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que é um bem destinado a toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Por isso, todos os que consomem esse bem escasso devem pagar por ele, nos termos das previsões legais. As parcelas mais pobres da sociedade, ou seja, os consumidores de baixa renda, são beneficiados através de desconto na tarifa da energia elétrica. Com efeito, a "Lei da Tarifa Social de Energia Elétrica" (Lei 12.212/10) beneficia todas as famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), com renda mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo, através de desconto de tarifa na conta de luz [64]. A Lei teve uma preocupação especial em relação às famílias que tenham entre seus membros portador de doença ou patologia cujo tratamento ou procedimento médico pertinente requeira o uso continuado de aparelhos, equipamentos ou instrumentos que, para o seu funcionamento, demandem consumo de energia elétrica, prevendo que, nesse caso, o limite da renda mensal familiar se estende até 3 (três) salários mínimos (§ 1º. do art. 2º.).

Como se observa, já existe lei estabelecendo as bases da política social para o setor de distribuição de energia elétrica, fincada na previsão de tarifas reduzidas para os consumidores de baixa renda, sem desmantelar o regime constitucional da concessão desse serviço, que prevê a contraprestação do usuário mediante pagamento do preço. O que não se admite é uma intervenção judicial que desconsidere todo o sistema integrado de normas para dispensar um consumidor qualquer de sua contrapartida remuneratória, sem exigência de qualquer ordem e sem levar em conta sua classe social e capacidade econômica [65].


6. Relação obrigacional regida pelo direito privado

Na verdade, a invocação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana pode ter sido incentivada a partir de uma visão distorcida da relação entre o fornecedor e o consumidor de energia elétrica. É que alguns enxergaram nessa relação um vínculo regido exclusivamente pelo direito público, o que impediria a concessionária (fornecedor) de suspender unilateralmente a prestação do serviço, já que não teria a seu dispor a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) [66].

Todavia, o contrato que o consumidor assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. Sem a satisfação de sua própria e específica obrigação, prevista em lei e assumida em negócio jurídico contratual, consistente na prestação positiva de realizar o pagamento do preço, o usuário não pode pretender a execução da prestação da outra parte. Em outras palavras, a empresa distribuidora de energia não pode ser compelida a continuar fornecendo o serviço se não recebe a compensação prestacional da outra parte.

Como se sabe, as concessionárias de serviço público podem ser de direito público ou de direito privado [67]. Adquirem o direito à prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica quando vencem licitação aberta pela Administração para o fim de outorga desse serviço. O vencedor da licitação celebra com o Poder público um contrato de concessão de serviço público. Esse contrato de concessão tem a natureza de contrato tipicamente administrativo, regido, portanto, pelas normas do Direito Público. Mas, paralelamente a ele, o concessionário estabelece, por força da execução dos serviços concedidos, outros contratos com os usuários finais dos serviços (consumidores), estes de natureza privada [68]. Assim, o serviço prestado em forma de concessão pública dá lugar a duas relações contratuais distintas: de um lado, a que envolve o próprio contrato de concessão, em que são partes o Poder concedente e a concessionária, relação esta submetida ao regime de direito público, e, de outro, o liame contratual que se estabelece entre o usuário e a concessionária, sujeito ao direito privado.

A própria Lei das Concessões (Lei 8.987/95) deixa entrever que, à exceção da relação direta entre o Poder concedente e o concessionário (contrato administrativo), todas as demais relações contratuais que este termine envolvido por conta da execução do contrato de concessão são regidas pelo direito privado. Com efeito, prescreve o parágrafo único do seu artigo 31:

"As contratações, inclusive de mão-de-obra, feitas pela concessionária serão regidas pelas disposições de direito privado e pela legislação trabalhista, não se estabelecendo qualquer relação entre os terceiros contratados pela concessionária e o poder concedente".

O contrato de fornecimento de energia elétrica, já que se estabelece entre o concessionário e outro particular (usuário final), é essencialmente privado, apenas com os condicionamentos decorrentes do poder regulamentar que Administração exerce sobre a atividade transferida. O poder regulamentar da Administração fica revelado pela circunstância de que: a) os reajustes e revisões das tarifas dos serviços obedecem a prescrições legais e parâmetros e diretrizes específicas determinadas pelo órgão fiscalizador e regulador competente; b) o Poder concedente pode fiscalizar permanentemente a prestação do serviço concedido, aplicar penalidades ao concessionário e intervir na prestação do serviço, dentre outros poderes (art. 29 da Lei 8.987/95).

A presença de uma regulamentação do Poder Público sobre a prestação do serviço concedido não implica em desnaturar a relação contratual do concessionário com o usuário. Mesmo quando privados, estabelecidos entre particulares, certos contratos sofrem, em diferentes graus, a influência do poder regulamentar estatal, limitando a liberdade contratual das partes. Assim ocorre em função do interesse social que acompanha esses contratos, dos quais são exemplos marcantes os contratos de trabalho, os contratos de locação e os contratos de consumo em geral (contratos de planos de saúde, de prestação de serviços educacionais, de serviços de telefonia), só para citar alguns, que recebem uma estrita regulamentação legal, limitando a liberdade dos contraentes a um campo bastante reduzido. Tal fenômeno, apropriadamente chamado de dirigismo contratual, surgiu em contraposição ao princípio clássico da plena autonomia da vontade dos contratantes, que já não oferecia respostas satisfatórias à nova realidade social pós-revolução industrial.

Ainda, é importante registrar que a eventual presença de uma pessoa jurídica de direito público, na condição de usuário dos serviços de fornecimento de energia elétrica, também não desnatura a natureza privada do contrato. Nessa hipótese, ela assume posição de simples consumidor, destinatário final dos serviços contratados em relação (privada) de consumo [69]. Como se sabe, nem sempre uma pessoa jurídica de direito público celebra contratos tipicamente administrativos. Em boa parte de suas relações contratuais, vincula-se despida da potestade estatal, do poder de império que caracteriza a sua atuação, igualando-se ao particular. É o que ocorre quando adquire bens e serviços de consumo, a exemplo de energia elétrica, posicionando-se em relação ao concessionário (fornecedor) como simples consumidor.

Em sendo privada a relação entre o concessionário e o usuário, é admissível por aquele o recurso a faculdades próprias das partes em contratos regidos pelo direito privado, especificamente a da exceção de contrato não cumprido (art. 476 do C.C.), que permite a um dos contraentes deixar de cumprir com sua obrigação quando haja descumprimento da do outro [70].

A suspensão do fornecimento de energia, em razão do inadimplemento do usuário, é ato de mera gestão negocial. O direito do concessionário ao corte (suspensão do serviço), nessa hipótese, não decorre do poder de polícia que lhe é transferido pelo Estado, mas tem origem no contrato (privado) que assina com o particular (consumidor), por força da exceptio non adimpleti contractus, que autoriza a qualquer contratante deixar de adimplir sua obrigação quando o outro deixa de cumprir com a sua própria prestação. Não é ato que decorra do poder de polícia público. O ato do corte no fornecimento de energia, em razão do inadimplemento do usuário, não corresponde a uma ação administrativa de efetuar condicionamentos à propriedade da pessoa (o consumidor final dos serviços delegados). Não se confunde com um ato de fiscalização ou ato repressivo e nem muito menos é um ato jurídico expressivo de poder público [71]. Cobranças de débito (aos consumidores) e todos os atos que o concessionário esteja legitimado a fazer, não porque imbuído do poder de polícia, mas por decorrência de direitos originados de contratos celebrados com terceiros, estranhos à relação contratual de concessão (do serviço público), configuram apenas atos de gestão da sua atividade, regidos pelo direito privado.

Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo).: Uma tentativa de reversão da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2505, 11 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14832. Acesso em: 22 nov. 2024.

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