4. ABSOLUTISMO FILOSÓFICO E AUTOCRACIA X RELATIVISMO FILOSÓFICO E DEMOCRACIA
Antes de iniciarmos o empreendimento final do artigo, no qual será demonstrado como Kelsen viu nas democracias uma relação com a filosofia relativista e nas autocracias uma relação com as filosofias de cunho absolutista, cumpre salientar que ao desenvolver sua teoria o autor tinha em mente um sujeito verdadeiramente emancipado e capaz de lidar de modo razoavelmente harmônico com as necessárias não respostas que o próprio ato de existir acarreta. Assim, é para um sujeito emancipado e responsável que a teoria kelseniana como um todo é escrita e não para aqueles que ainda necessitam projetar na figura do pai ou do grande irmão um meio de lidar com a instabilidade e a impermanência existencial. Para um sujeito que de modo racional procura justificar seu comportamento e suas escolhas, impelido pelo temor ou pelo desejo, mas conhecedor dos limites que tal justificação sofre (KELSEN, 2001, p.09).
Deste modo, Kelsen parte do princípio que um sujeito emancipado não precisa projetar suas inseguranças em um pretenso Estado transcendente, ao contrário, pressupõe um sujeito capaz de vivenciar sua liberdade por meio de uma efetiva participação na formação da vontade do Estado. Assim, para a questão sobre se existiria ou não alguma verdade absoluta, capaz de calar todas as demais concepções possíveis, o Mestre de Viena responde categoricamente que não e que a ideia de absoluto transcenderia a experiência. E afirma que “à concepção metafísico-absolutista está associada uma atitude autocrática, enquanto à concepção crítico-relativista do mundo associa-se a uma atitude democrática” (KELSEN, 2000, p.105). Sendo assim, afirma Kelsen, quem considera o absoluto inacessível tem obrigação de considerar não apenas suas concepções de mundo, mas de todos que o cerca e afirma que o relativismo é a concepção de mundo que a democracia pressupõe, pois a única capaz de considerar ‘outro’ como igualmente valioso. Em suas palavras:
“A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política cuja expressão, aliás, é a vontade política. Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência. Por isso, o procedimento dialético adotado pela assembleia popular ou pelo parlamento na criação das normas, procedimento esse que se desenvolve através de discursos e réplicas, foi oportunamente reconhecido como democrático” (KELSEN, 2000, p.105/06).
Sustenta Kelsen que a causa democrática não pode ter esperança se pensar na possibilidade de conhecimento Absoluto, pois essência da democracia é exatamente a possibilidade de discordância e, consequentemente, a necessidade de diálogo constante entre maioria e minoria, a fim de se estabelecer um pacto social estável. Tudo, além disto, estaria condenado ao fracasso e a instabilidade da ordem social. Em suas palavras:
“Do ponto de vista do conhecimento racional existem somente interesses humanos e, portanto, conflitos de interesses. Para solucioná-los, existem apenas dois caminhos: ou satisfazer um dos interesses à custa do outro, ou promover um compromisso entre ambos” (KELSEN, 2001, p.23).
A posição de Kelsen para a causa democrática, sem sombra de dúvida, é influenciada por sua epistemologia de cunho positivista que desde sua origem defendeu que o Direito seria um sistema no qual não caberiam juízos de valor, dada sua subjetividade e, consequentemente, irracionalidade. Sgarbi afirma que a teoria democrática kelseniana encontra-se em franca conexão com sua metodologia jurídica, servindo como parâmetro para o tratamento dos valores (SGARBI, 2007, p.151).
Para Kelsen deveria haver uma nítida separação entre a Ciência Jurídica e a Política, a fim de evitar que a Ciência do Direito – objetiva – ofertasse sustentáculo a posições Políticas, muitas das vezes subjetivas. Na Teoria Pura do Direito, Kelsen é categórico ao afirmar que:
...“do ponto de vista do conhecimento científico, se rejeita o suposto de valores absolutos em geral e de um valor moral absoluto em particular – pois um valor absoluto apenas pode ser admitido com base numa crença religiosa na autoridade absoluta e transcendente de uma divindade” (KELSEN, 2006, p.72)
Segundo afirma Matos, na obra de Hans Kelsen não seria correto afirmar que o positivismo jurídico tenha sido a mera repetição da sistematização feita pela clássica Escola Alemã de Direito Público ou continuação das posições ingênuas de Austin e Benthan. A diferença abissal existente entre seus antepassados positivistas e Kelsen reside no fato de em sua teoria haver uma profunda fundamentação filosófica nela envolta (MATOS, 2005, pp.60/61). Assim, o Mestre de Viena mostra-se um pesquisador disposto, não apenas nas questões de ordem social, mas também nas angustias existenciais mais profundas. Nos medos e temores que faziam com que o ser humano tivesse necessidade de projetar em um Estado ou em um monarca, seu primário desejo de segurança e estabilidade.
Ao fazer referencia a doutrina kelseniana Silvio de Macedo afirma que:
“Sua Teoria do Direito Puro é, na verdade, um gesto heróico, de separar o joio do trigo, despojar o direito de sua ganga política, desligar a ciência da ideologia, a inteligência do interesse e da paixão. E com ela a Ciência jurídica muito progrediu. O que não pode, entretanto, é desconhecer que há outras zonas da realidade e que não se contradizem com as da Ciência Jurídica e especialmente há fronteiras entre elas, cabendo à Filosofia do Direito outras tarefas da Dogmática jurídica” (1982, p.132).
A depuração que Kelsen opera em sua Teoria Pura, na teoria democrática tem um valor a mais: aqui a relatividade dos valores representa uma necessária abertura ao diálogo entre maioria e minoria e não propriamente o cinismo que as vezes é atribuído ao autor, de considerar como legítimo todo e qualquer valor. Afirma Matos que até mesmo Recaséns Siches, que se opunha a axiologia relativista kelseniana, afirmava que o relativismo de Kelsen não se resolvia em um ceticismo cínico, pois nele havia um elevado valor humanista. Do mesmo modo, afirma Matos, o relativismo kelseniano também não se resolve em um utilitarismo decisionista, no sentido de que para o Mestre de Viena qualquer valor serviria ao Direito e que o importante seria somente a forma e não o conteúdo das normas. Na verdade o que Kelsen propõe é que a tarefa de valorar não seja dada a um cientista do direito, mas sim a outros estudiosos como sociólogos, psicólogos, etc, o que é muito diverso do que aceitar qualquer valor como correto (MATOS, 2005, pp.129/30).
Luiz Fernando Bazotto afirma que no mundo contemporâneo não há mais valores que possam ser considerados objetivos e que “recebam a adesão generalizada”. Em razão disto, afirma o autor, o apelo à justiça, em Kelsen apresentada como uma virtude ético-política, que faz com que os destinatários obedeçam as normas por trazerem consigo uma pretensão de correção, não pode ser invocado, eis que é fator de “insegurança na identificação do jurídico, na medida em que os valores, formadores do âmbito moral da vida social, carecem de conteúdo objetivo”(1999, p.13/14). A partir disto, seria possível afirmar que o que pretende o positivismo jurídico, ao defender a relatividade dos valores, é exatamente permitir que em uma sociedade heterogênea e alicerçada em valores diversos, seja possível a convivência social por meio do debate democraticamente estabelecido, assentada em consensos para sempre mantidos em aberto.
Citando Norberto Bobbio, Matos afirma que o positivismo jurídico não é somente uma teoria do direito, mas também uma metodologia e uma ideologia que se bifurca em duas versões: uma de cunho extremado (absolutista) e outra de cunho moderado (relativista). E continua afirmando que as críticas que se fazem a Kelsen acabam por confundir a primeira versão, absolutista, com a versão de Kelsen para o positivismo, pois ao adotar uma concepção ética relativista, que tem como alicerce os valores da ordem, da igualdade formal e da certeza jurídica, Kelsen se opõe frontalmente contra qualquer espécie de totalitarismo (MATOS, 2005. p.131)
Para Kelsen, se a democracia pretendesse estabelecer um conteúdo material para sua ordem normativa, perdendo o caráter procedimental, correr-se-ia o risco de haver confusão entre um governo “do povo” e um governo “para o povo”. Apenas no primeiro caso haverá uma democracia autentica, ainda que não tenham sido poucas as vezes na história em que a confusão ocorreu, como é o caso do da doutrina soviética, muito bem examinada por Kelsen em seu livro A Democracia, para quem os soviéticos perverteram o conceito de democracia (KELSEN, 2000, p.148). Afirma Matos que a acusação surgida no pós-guerra de que o positivismo jurídico e o relativismo filosófico, ao se desvencilharem da ética e da justiça, teriam contribuído para as experiências totalitárias, não é verdadeira (MATOS, 2005, p.130), pelo menos no que se refere ao positivismo jurídico de orientação moderada preconizado por Kelsen.
Segundo Matos, o positivismo de Kelsen é um método de se fazer ciência jurídica e não uma ideologia panfletária. Em sua obra Teoria Pura do Direito, afirma Matos, Kelsen nos adverte que o fato de não advogar em favor de nenhum valor não implica que eles não existam, pois negar a existência de valores humanos que possam fundamentar o Direito é, em última análise, justificá-lo irracionalmente (MATOS, 2005, p.138). Em razão disto é que Kelsen compreende que somente em uma democracia procedimental seria possível conciliar os valores heterogêneos e plurais. Assim, seria na democracia procedimental, por meio da tolerância, dos direitos das minorias, da liberdade de política, de expressão e de pensamento, da igualdade, da responsabilidade para consigo e com o outro, que seria possível a construção de uma sociedade pacífica.
Kelsen afirma que inúmeros foram os modelos que, sob a máscara de uma terminologia democrática, foram verdadeiros adversários da democracia. Usando o argumento de que eram governos “para o povo” promoveram verdadeiras autocracias, sob os auspícios de uma denominação democrática. O Mestre de Viena deixa claro que em uma democracia o governo é exercido “pelo” povo e não “para” o povo. Essência do conceito de democracia é a participação efetiva e responsável dos governados no processo de formação da vontade do Estado e não o conteúdo específico desta ordem. Em suas palavras:
“Portanto, a participação no governo, ou seja, na criação e aplicação das normas gerais e individuais da ordem social que constitui a comunidade, deve ser vista como a característica essencial da democracia. Se esta participação se dá por via direta ou indireta, isto é, se existe uma democracia direta ou representativa, trata-se, em ambos os casos, de um ‘processo’, um método específico de criar e aplicar a ordem social que constitui a comunidade, que é o critério do sistema político apropriadamente chamado democracia. Não é um conteúdo específico da ordem social na medida em que o processo em questão não constitui em si um conteúdo desta ordem, isto é, não é regido por esta ordem” (KELSEN, 2000, p.142)
Assim, assevera Kelsen que o conteúdo processual fica em primeiro plano na caracterização da democracia. E que o elemento liberal, entendido enquanto conteúdo específico da ordem social tem apenas importância secundária (KELSEN, 2000, p.143). Sobre o conteúdo desta ordem e o caráter procedimental da democracia, o Mestre de Viena não deixa de observar que:
“Se definirmos democracia como um sistema político através do qual a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos à ordem, de tal modo de liberdade política, no sentido de autodeterminação, esteja assegurada, então a democracia, necessariamente, em todas as circunstâncias e em toda parte estará a serviço deste ideal de liberdade política” (KELSEN, 2000, p.144).
Assim, afirma Kelsen, a ordem social democrática deve também garantir certos direitos e garantias fundamentais, especialmente para proteção da minoria, esta última essencial também ao conceito de democracia, o que o leva a concluir que a ordem social que não atender aos ideais democráticos assim apresentados não será democrática, ainda que se autodenomine de tal modo. Para Kelsen, enquanto sistema ou processo, a democracia é uma forma de governo e não há “melhor maneira de impedir o avanço da democracia, de preparar o caminho da autocracia e dissuadir o povo de seu desejo de participação no governo do que depreciar a definição de democracia” (KELSEN, 2000, p.145), dando a entender que governo “para o povo” e “do povo” seriam expressões sinônimas.
Para o Mestre de Viena o modo mais seguro de evitar confusões sobre o conceito de democracia seria assumir a noção de que os valores são relativos e que a eleição daqueles valores considerados dominantes em um determinado momento histórico seria da responsabilidade de todos os cidadãos livres pertencentes ao Estado, não cabendo ao Estado – como ente divinizado – a eleição do melhor para o povo – este último, conceito impossível de ser dimensionado e, portanto, irracional. Assim, afirma Kelsen:
“Pretendo mostrar que, de fato, não existe apenas um paralelismo externo, mas uma relação interna entre o antagonismo autocracia/democracia, por um lado e absolutismo filosófico/relativismo filosófico, por outro: que a autocracia como absolutismo político está coordenada com o absolutismo filosófico, enquanto a democracia, como relativismo filosófico, está coordenada com o relativismo filosófico” (KELSEN, 2000, p.161)
Segundo Kelsen é na esfera epistemológica e da teoria dos valores que é possível verificar o antagonismo entre o absolutismo e o relativismo filosófico, que em sua opinião, é análogo ao antagonismo existente entre autocracia e democracia, enquanto representantes respectivamente do absolutismo e do relativismo político (KELSEN, 2000, p.162). Sob forte influência das teorias psicanalíticas, principalmente as de cunho freudiano, Kelsen afirma que “a raiz comum do credo político e da convicção filosófica é sempre a mentalidade do político e do filósofo, a natureza de seu ego, ou seja, o modo como esse ego experimenta a si mesmo e sua relação com o outro, que também reivindica a condição de ego” (KELSEN, 2000, p.162).
Deste modo, afirma o autor que é preciso reconhecer que a formação dos sistemas políticos e filosóficos em última instancia é determinada pelas singularidades da mente humana, mas que mesmo assim, seria possível demonstrar que ao longo da história a análise de várias obras de filosofia e política deixa antever a estreita ligação que há entre as teorias filosóficas e políticas. Em suas palavras:
“Me reporto ao fato histórico de que quase todos os representantes mais destacados de uma filosofia relativista eram politicamente favoráveis à democracia, ao passo que os seguidores do absolutismo filosófico, os grandes metafísicos, eram favoráveis ao absolutismo político e contrários a democracia” (KELSEN, 2000, p.195).
Afirma Matos que a história é um amplo repositório de fatos que estão a confirmar a teoria kelseniana sobre a relação entre absolutismo e autocracia e democracia e relativismo. Todavia, o autor nos adverte que obviamente Kelsen não deixou de ver que tal correlação não seria necessária, pois se tratava de uma analogia que comportava temperamentos. Isto porque a formação teórica dos sistemas políticos ocorre na mente humana – dotada de inúmeras peculiaridades – não se comportando em todos os momentos como seria o previsível. A tal indeterminação ainda é possível acrescer, segundo Matos, as circunstâncias históricas, sociais, econômicas, etc. (MATOS, 2005, pp.124/25). Nas palavras de Kelsen:
“Mas, exatamente pelo fato de ser na alma do ser humano empírico, e não em uma esfera da razão que se originam a política e a filosofia, não devemos esperar que uma visão política definida esteja sempre, e em toda parte, associada ao sistema filosófico que por lógica lhe corresponde (KELSEN, 2000, p.196).
Fazendo clara vinculação entre o jusnaturalismo e os regimes autocráticos, Kelsen dedicou muitos escritos a demonstrar como sob um pretenso véu de magnanimidade o jusnaturalismo – e seus correlatos métodos antidemocráticos - foi capaz de perpetrar os mais variados modos de subjugação de povos, principalmente ao eleger como ‘natural’ o que de fato não passava de imposição arbitrária. Para Kelsen:
“Logo que a teoria do Direito Natural intenta determinar o conteúdo das normas imantes à natureza, deduzidas da natureza, enreda-se nas mais insuperáveis contradições. Os seus representantes não proclamam um único direito natural, mas vários direito naturais, muito diversos entre si e contraditórios uns com os outros. [...] Segundo uma doutrina do Direito natural só é ‘natural’ , isto é, justa, a propriedade individual, segundo outra, só o é a propriedade coletiva; segundo uma só é ‘natural’, isto é, justa, a democracia, segundo outra, só o é a autocracia. [...] A doutrina do Direito natural, tal como efetivamente tem sido desenvolvida – e não pode ser desenvolvida de outra maneira – está muito longe de fornecer o critério firme que dela se espera” (KELSEN, 2006, p.245).
A Escola de Direito natural, tanto de cunho metafísico quanto racionalista, teve predomínio nos séculos XVII e XVIII e foi quase que totalmente abandonada no século XIX (KELSEN, 2001, p.21), retomada no século XX, com fortes defensores ainda nos dias de hoje. Para os jusnaturalistas há uma regulação absolutamente justa das relações humanas por parte da ‘natureza’. Para tais teóricos a ‘natureza’ é detentora de autoridade normativa, capaz de fornecer ao sujeito leis heterônomas diretivas de seu comportamento social e individual. Assim, segundo Kelsen, os defensores do Direito natural afirmam que “por meio de uma análise cuidadosa da natureza, podemos encontrar as normas a ela imanentes, que prescrevem a conduta humana correta” (KELSEN, 2001, p.22).
Entretanto, segundo Matos, no pensamento jurídico, foi exatamente sob a égide da doutrina jusnaturalista que os regimes sociais excludentes, opressores e autocráticos ganharam guarida. Foi Aristóteles quem legitimou e deu verniz filosófico à escravidão grega. Platão, com seu dualismo, deu forte sustentação a uma sociedade completamente dividida entre pobres e ricos. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, com base em um direito natural, puderam pregar filosoficamente a sujeição total do poder secular ao poder espiritual. Bodin e sua tese de “direito divino dos reis”, buscou legitimar a ordem imposta. Hobbes em seu Estado Leviatã advogou firmemente que o homem, devido à sua natureza gananciosa, tola, egoísta e fratricida deve obediência incondicional às ordens estatais. Para Matos só é possível vislumbrar duas oportunidades históricas em que o absolutismo filosófico do jusnaturalismo foi verdadeira causa de mudança social: na Revolução Francesa de 1789 e na Revolução Americana de 1776. Todavia, tais acontecimentos ligados ao jusnaturalismo não foram a regra, mas sim a exceção (MATOS, 2005, pp.126/27). [ii]
A junção entre jusnaturalismo e regimes autocráticos em Kelsen se mostra muito clara em virtude dos conceitos que adota. Assim, do ponto de vista científico, que tem como pressuposto a busca pela verdade, o jusnaturalismo, segundo o Mestre de Viena, seria destituído de valor, pois não pode ser racionalmente justificado. Entretanto, afirma o Mestre de Viena, “do ponto de vista da política, como um instrumento intelectual na luta pela realização de interesses, a doutrina do Direito natural pode ser considerada muito útil” (KELSEN, 2001, p.175).
A doutrina kelseniana compreende o absolutismo filosófico como a “concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta, isto é, de uma realidade que independe do conhecimento humano”, que está para além da realidade espaço e tempo – dimensões nas quais, para o autor, o conhecimento científico se restringe. Já o relativismo filosófico seria a doutrina empírica que defende que “a realidade só existe na esfera do conhecimento humano, e que, enquanto objeto do conhecimento, a realidade é relativa ao sujeito cognoscitivo” (KELSEN, 2000, p.164).
Ao lado da ideia do absolutismo filosófico se assenta a noção de possibilidade de verdade absoluta e de valores absolutos, como pregam as doutrinas jusnaturalistas. Ao contrário, o relativismo filosófico só admite uma verdade relativa e, consequentemente, valores relativos. Corroborando tal raciocínio, Matos afirma que de acordo com Kelsen, os valores não podem se pretender absolutos – ou seja, incontrastáveis e imodificáveis – eis que as normas, sejam elas jurídicas, morais, religiosas ou éticas, que os objetivam são criações humanas, portanto, variáveis no tempo e no espaço. Pretender um valor absoluto é afirmar que a norma que o objetiva seria perfeita; e isso só é possível se se admite a premissa da existência de uma autoridade transcendente e inoponível, o que não é possível em uma teoria que se pretenda verdadeiramente científica (MATOS, 2005, p.121). Nas palavras de Kelsen:
“Quando, porém, nós representamos a norma constitutiva de certo valor e que prescreve determinada conduta como procedente de uma autoridade supra humana, de Deus ou da natureza criada por Deus, ela apresenta-se-nos com a pretensão de excluir a possibilidade de vigência (validade) de uma norma que prescreva a conduta oposta [...] Uma teoria científica dos valores apenas toma em consideração, no entanto, as normas estabelecidas por atos de vontade humana e os valores por elas constituídos” (KELSEN, 2006, p.20)
Para Kelsen o absoluto representa necessariamente a perfeição e, assim, a existência do absoluto pressupõe a aceitação de uma autoridade absoluta, capaz de direcionar a liberdade de todos os demais, eis que mensageira da verdade. Assim, afirma Kelsen, “a personificação do absoluto, sua apresentação como o onipresente e absolutamente justo criador do universo, cuja vontade é a lei da natureza e do homem é a consequência inevitável do absolutismo filosófico” (KELSEN, 2000, p.164). De lado outro, afirma Kelsen, o relativismo filosófico, em sua essência empirista antimetafísica, insiste em uma clara separação entre realidade e valor, deixando antever a separação havida entre “proposições sobre a realidade” e “juízos de valor”, estes últimos baseados em juízos irracionais advindos de fatores emocionais, nos desejos e temores do homem (KELSEN, 2000, p.165).
Ao fazer a distinção entre absolutismo e relativismo, Kelsen afirma que uma epistemologia do conhecimento de base absolutista teria que admitir a existência de leis heterônimas às quais o sujeito do conhecimento é sujeitado, leis estas imanentes à realidade objetiva. Enquanto que uma epistemologia de base relativista:
...“implica que o homem, sujeito do processo cognitivo é – epistemologicamente – o criador do seu mundo, um mundo constituído em e por seu conhecimento. Isso não significa que o processo de conhecimento tem um caráter arbitrário. A constituição do objeto de conhecimento pelo processo cognitivo não significa que o sujeito cria o objeto do mesmo modo que Deus cria o mundo. Há uma correlação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Existem leis normativas que determinam este processo. Ao agir de acordo com essas normas, o conhecimento racional da realidade – em oposição à expressão das emoções subjetivas, a base dos juízos de valor – é objetivo. Essas normas, porém, se originam na mente humana, tendo o sujeito do conhecimento por legislador autônomo” (KELSEN, 2000, pp.165/66)
Assim, no relativismo, em troca de uma falsa sensação de segurança existencial, o sujeito se torna verdadeiramente partícipe do processo cognoscitivo e, conforme ensina Kelsen, há a afirmação de dois dos mais primitivos instintos do homem enquanto ser social: “o desejo de liberdade e o sentimento de igualdade estão em sua base” (KELSEN, 2000, p.167). Para o Mestre de Viena, do ponto de vista psicológico, “a síntese de liberdade e igualdade, característica essencial da democracia, significa que o indivíduo, o ego, deseja liberdade não apenas para si mesmo, mas também para os outros” (KELSEN, 2000, p.180).
Admitir a possibilidade de conhecimento absoluto e, consequentemente do absolutismo político seria, para os governados, a renuncia à sua autodeterminação e, consequentemente, à sua liberdade. Além de ser, ao mesmo tempo, incompatível com a ideia de igualdade, que pressupõe paridade entre governantes e governados, o que modo algum não ocorreria no absolutismo político. Portanto, incompatível com a verdadeira essência de democracia qualquer método de governo que tenha como pressuposto uma filosofia política de cunho absolutista, ou seja, crente na possibilidade do conhecimento da verdade.
Segundo Kelsen, o paralelismo existente entre absolutismo filosófico e político é manifesto, pois o poder ilimitado de um governo absoluto é muito além de qualquer possibilidade de influencia de seus governados, que apenas devem obedecer as leis para quais não contribuíram em seu ato criativo; de modo parecido, afirma Kelsen, o absoluto “está além de nossa experiência, enquanto objeto do conhecimento, na teoria do absolutismo filosófico, é independente do sujeito do conhecimento, totalmente determinado, em seu conhecimento, por leis heterônomas” (KELSEN, 2000, p.181). Assim, o absolutismo filosófico, pode ser caracterizado como absolutismo epistemológico, que mantém uma concepção de universo na qual a criatura não participa do ato criativo.
Para Kelsen é claro que o absolutismo político tende a se utilizar do absolutismo filosófico como instrumento ideológico, com a apresentação do governo como único representante possível da tradução de uma vontade superior e divinizada, autorizado a conduzir uma massa de comuns. Em regimes nos quais não é possível se utilizar de uma religião histórica como recurso para o poder divinizado do governante, afirma Kelsen, como ocorreu no nacional-socialismo e no bolchevismo, o próprio governo assume o caráter mítico-religioso, tornando absolutos valores como a ideia de nação ou de socialismo.
Em suma, em Kelsen a democracia não pode se desvincular de seus conceitos essenciais – que não guardam relação com regimes autocráticos – mas sim, ao contrário, uma democracia só é verdadeiramente uma democracia quando pressupõe uma sociedade de iguais, capazes de debater e decidir sobre os rumos de sua liberdade. Nas palavras de Kelsen: ...“democracia é discussão.” (KELSEN, 2000, p.183) e o conteúdo de uma ordem jurídica deve ser necessariamente o resultado de consensos estabelecidos entre maioria e minoria, que deve se utilizar de todos os meios possíveis para o diálogo democrático.
“A vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão contínua entre maioria e minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria. Essa discussão tem lugar não apenas no parlamento, mas também, e em primeiro lugar, em encontros políticos, jornais, livros e outros veículos de opinião” (KELSEN, 2005, p.411).
Assim, a partir da teoria Kelseniana é possível ver que o autor pressupôs um participante capaz de manter sua autonomia política, intelectual e dirigir sua participação a partir da razão. Exatamente em virtude de sua tendência rumo ao compromisso entre partes antagônicas é que é possível afirmar que ela se aproxima do ideal de autodeterminação completa (KELSEN, 2005, p.412).
Portanto, como dito em outro momento, o problema da democracia é, antes de tudo, um problema de educação para a democracia e, consequentemente, o estabelecimento de um governo capaz de garantir a máxima liberdade individual possível e não um problema do estabelecimento de valores prévios à possibilidade de consenso.
Por mais inseguro que possa parecer em um primeiro momento, os consensos viabilizados em uma democracia procedimental como a proposta por Kelsen são preferíveis às verdades pré-estabelecidas de estados autocráticos. Ainda que sob a denominação ‘democrática’ não tenham sido poucos os regimes essencialmente autocráticos é preciso ter em mente que em uma verdadeira democracia a verdade possível é sempre parte de um ‘porvir’ nunca completamente implementado, todavia, aberto à possibilidade de novos consensos e, portanto, aspirado por um conjunto de sujeitos educados para a democracia.
CONCLUSÃO
A democracia kelseniana tem como elementos essenciais a noção de igualdade política formal e liberdade em comunidade que, de modo articulado, garantem que o método político seja capaz de lidar com a diversidade e com a complexidade da atualidade.
A partir dos estudos acima é possível concluir que historicamente democracia e autocracia estão vinculadas respectivamente a relativismo filosófico e absolutismo filosófico.
Por mais que seja mais seguro existencialmente defender a ideia de valores absolutos, capazes de conduzir a sociedade de modo claro e unívoco, tal afirmação é irracional e, portanto, cabível apenas em regimes autocráticos, nos quais há a afirmação de que a relação que deve ser estabelecida entre governantes e governados seja hierarquicamente institucionalizada - uma relação entre diferentes - e não uma relação entre iguais como na democracia. Autocracia e democracia se diferenciam em muitos aspectos – assim como em outros se assemelham – mas a principal diferença está no modo pelo qual o “outro” percebido: como um igual ou como superior/inferior;
A democracia em Kelsen não tem conteúdo, ou seja, é meramente procedimental. Pugna pela observância estrita da forma – efetiva participação dos envolvidos para formação da vontade do Estado – e deixa a responsabilidade pelas escolhas nas mãos de partícipes sociais educados para a democracia – para a liberdade, todavia, tal modelo de democracia pressupõe um cidadão participativo e responsável que não necessita projetar-se metafisicamente em entes divinizados ou superiores.
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Notas
[1] Não se desconhece as críticas que o termo recebe na atualidade, notadamente sobre o alcance do prefixo “pós”. Utiliza-se aqui expressão somente para designar a transição teórica na qual houve um questionamento às pretensões de cunho iluminista sobre o alcance da razão.
[i] Para maiores esclarecimentos, ver Comte, Auguste. Coleção Os Pensadores.
[ii] Ver também KELSEN, Hans. A Democracia na História das Ideias Políticas. In A Democracia.