4 O CONTRATO NO DIREITO ROMANO
Assim como os demais institutos oriundos do Direito Romano que chegaram até os nossos dias, o conceito de contrato passou por diversas transformações, inclusive considerando os diversos períodos de sua vigência estudados anteriormente.
Antes de entendermos o sentido da palavra contrato no Direito Romano, é preciso entender os conceitos de "pacto" e "convenção".
No pacto, existe um acordo de vontades entre duas pessoas; o mesmo vale para convenção, pois são sinônimos. Em ambos os casos não temos uma obrigação propriamente dita, portanto não temos a geração de efeitos jurídicos para as partes (direitos e obrigações mútuas). No Digesto temos que "o pacto nu não gera obrigação, mas sim exceção" [43]. [44]
Neste diapasão, verifica-se que no Direito Romano os conceitos de pacto/convenção e contrato se diferenciam, pois somente neste último temos a presença de um elemento objetivo, em regra a observância de alguma formalidade, que faz nascer a obrigação. Nos afastamos, aqui, do conceito moderno de contrato, no qual todo acordo de vontade lícito, ainda que não se encaixe em um dos modelos apresentados na legislação como contratos, a este se assemelha, podendo produzir efeitos jurídicos de natureza obrigacional.
No direito romano clássico, os juristas vislumbravam a existência de um determinado número de contratos – a venda, a locação, o mandato e a sociedade. A partir do direito justinianeu, o sistema contratual romano passou por profundas alterações, notadamente com relação à ampliação do número de acordos de vontade a que a ordem jurídica passa a conferir eficácia de gerar obrigações. Esta alteração se funda basicamente no foco, que se desloca do elemento objetivo, basicamente a forma, para o elemento subjetivo – o acordo de vontade; tal modificação, paulatina, passa a admitir a existência de contratos inominados, ou seja, não previstos na legislação, mas que passam a pro, produzir efeitos jurídicos pelo simples fato de existirem e manifestarem a vontade das partes.
4.1 O formalismo nos contratos – stipulatio e mancipatio
Veremos, a partir de agora, que o Direito Romano é por excelência um direito fortemente apegado à forma. Trata-se, em verdade, de um reflexo da vida em sociedade, que sempre respeitou significativo número de rituais, sejam eles domésticos, religiosos ou sociais.
Como dissemos, a forma promove a transformação do pacto ou convenção em contrato, gerando então obrigações e efeitos jurídicos às partes envolvidas.
Existiram três espécies de formalidades no Direito Romano – o per aes et libram (bronze e balança), verba (palavras) e litterae (letras).
Pelo bronze e pela balança, concretiza-se o nexum, considerado o mais antigo dos contratos solenes do Direito Romano. Nele, em síntese, temos um contrato de mútuo com força executiva, em que o devedor, sozinho ou com sua família, vendia-se ou dava-se em garantia do cumprimento de uma obrigação; o credor passava a ter poder sobre o devedor, que se assemelhava ao escravo [45].
Na verba, as palavras trocadas entre as partes constituem a obrigação, mediante a prolação das palavras certas, de caráter solene [46]. A principal é a stipulatio, considerado o mais importante dos contratos no Direito Romano. Abstrato por natureza, se estabelece a partir de perguntas e respostas, proferidas oral e solenemente, entre os futuros credor, denominado stipulator, e o devedor, promissor. Empregava-se o verbo spondere: Spondes? (prometes?) – Spondeo! (prometo!). Assim, a stipulatio se considerava sponsio, ou seja, "prometida". Na esteira desta fórmula, surgiram outras, específicas para cada tipo de contrato verbal: dabis? dabo!; promittis? Promitto; fidepromittis? Fidepromitto!; fideiubes? Fideiubeo!; fácies? Faciam!.
A sipulatio tem como requisitos: a oralidade, a presença das partes, a unidade do ato (unitas actus) e a conformidade rigorosa entre pergunta e resposta. [47]
Nas Institutas, encontramos as chamadas "estipulações inúteis", que podem estar relacionadas com o sujeito (por exemplo, pessoa supostamente viva, mas que se encontra morta, ou ao mudo, o surdo e o louco) ou com o objeto (juridicamente impossível, inexistente, sagrada ou de uso comum do povo, como um monumento ou uma praça). Também não tinha efeito a estipulação se fosse contraída sob condição impossível, ou seja, algo que não fosse possível de se realizar [48]
A partir dos últimos anos da República, a stipulatio passa por uma transformação muito significativa, passando a utilizar-se do documento escrito (em latim, scriptura, e em grego chirographum) como meio de prova de existência e conteúdo. Este documento servia como meio probatório e não constitutivo da obrigação; assim, cabia prova em contrário de sua existência, por meio de testemunhas, por exemplo. [49]
O fim da solenidade na stipulatio se dá em 472, quando a constituição imperial de Leão, o filósofo, permite que esta poderia ser celebrada sob o uso de quaisquer palavras e sem a observância da forma de perguntas e respostas, mantida apenas a intenção mútua das partes. Tal alteração, ainda que substancial, não retira da stipulatio seu caráter verbal; o elemento gerador da obrigação se transfere das palavras solenes para o consensus.
Nova alteração significativa na stipulatio se dá em 531, por meio da constituição imperial de Justiniano – a presença das partes ao ato, como requisito de validade, pode ser ilidida frente à prova de que ao menos uma delas se encontrava ausente da cidade durante todo o dia em que o ato teria ocorrido.
No campo processual, o stipulator, uma vez não cumprida a obrigação no prazo, poderia lançar mão da Actio per iudicis postulationem; posteriormente, foram criadas a Condictio certae pecuniae (para obrigações de pagar quantia certa) e a Condictio de Omni certa re (dar coisa certa), mais específicas.
Os contratos literais, ou seja, aqueles cujas obrigações decorrem de forma escrita, são mal conhecidos, ante a escassez de fontes a respeito. A partir da Lei das XII Tábuas o Império Romano passa dar maior valor à escrita como forma de transmissão de informações e mesmo de obrigações, criando-se uma presunção absoluta de que o que está escrito é correto e aceito pelas partes.
O contrato literal romano, ou nomen transcripticium, nasce das obrigações de transcrição de livros caixa (conta corrente e patrimônio). Podia ser transcriptio a persona in personam, ou seja, de pessoa a pessoa, e transcriptio a re in persona, de coisa a pessoa. Tais utilizações caem em desuso no período do principado, mas resiste, com outro formato, no direito justinianeu.
Outra forma importante utilizada pelos romanos é a mancipatio. Trata-se de negócio jurídico bilateral e formal, por meio do qual ocorre a transmissão da propriedade de res mancipi [50] (tudo que fosse rec nec mancipi se transferia pela simples tradictio, ou seja, a entrega física da coisa, sem maiores formalismos). Era praticada na presença de pelo menos cinco testemunhas, as partes e o libiprens (o portador da libra, a balança). O adquirente, denominado mancipio accipiens, pousa sua mão sobre a coisa ou pessoa a adquirir [51], devendo recitar a fórmula hunc ego hominem ex iure quiritum meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra [52]. Ao mesmo tempo, o adquirente pesa o cobre na balança, que representa certa quantia em dinheiro, e o libripens bate com o metal na balança, confirmando sua qualidade, e o entrega ao alienante.
Toda esta formalidade justificava-se pelo valor dos bens transmitidos,bem como a necessidade de publicidade do ato, permitindo que terceiros pudessem exercer eventuais direitos sobre a coisa – por exemplo, usucapião, tal como fazemos hoje nas escrituras públicas de compra e venda de bens imóveis.
A mancipatio fazia lei entre as partes, e permitia liberdade de convenções; o alienante poderia, por exemplo, reservar usufruto durante certo período, ou mesmo instituir servidão incidente sobre a res.
Com a utilização de moedas cunhadas em larga escala, temos uma significativa ampliação da utilização da mancipatio. Atos jurídicos como a doação, a emancipação de filhos, testamento, dentre outros, passam a fazer uso desta formalidade.
4.2 Divisão dos contratos
Para os romanos, o contrato é a convenção tornada obrigatória mediante a utilização da forma que a acompanha, gerando obrigações recíprocas aos contratantes, um vinculum juris entre as partes.
4.2.1 Contratos reais
Os contratos ditos "reais" são aqueles que necessitam, para sua validade, da existência de um acordo de vontade entre as partes contratantes, denominada conuentio, e da efetiva entrega da res (coisa). A evolução deste conceito permite que a res seja entregue sem que ocorra a transferência da propriedade, estabelecendo-se condição de posse ou mera detenção, como ocorre atualmente na locação.
Nas Institutas, encontramos cinco espécies de contratos reais – o mútuo, a fidúcia, o comodato, o depósito e o penhor. Examinaremos cada contrato individualmente.
4.2.1.1 Mútuo
O mutuum, ou mutui datio, é o contrato unilateral no qual uma parte (mutuo dans, ou mutuante) transfere a propriedade de coisa fungível à outra parte, denominada mutuo accipiens ou mutuário. Este último obriga-se a restituir outra coisa da mesma espécie.
O mútuo exige, para a sua formação, a entrega material da coisa (traditio) do mutuante ao mutuário. O mutuante deve ser proprietário da coisa emprestada, podendo, portanto, aliená-la. Importante ressaltar o caráter estrito do contrato, ou seja, o mutuante somente está obrigado a restituir coisa igual em espécie, quantidade e qualidade à que recebeu, e não mais, tampouco menos [53]. Assim, nos casos em que se convencionasse o pagamento de juros, era necessária a celebração de uma stipulatio específica, denominada stipulatio usurarum, imprescindível à possibilidade de discussão judicial futura, pois o mero pactum usurarum não era reconhecido. [54]
Em caso de não devolução da coisa, o mutuante poderia lançar mão da ação denominada Actio Certae Creditae Pecuniae, nos casos em que o objeto do mútuo é dinheiro, ou da Condictio Certae Rei, também denominada Condictio Triticaria no direito justinianeu, quando o objeto não é dinheiro.
Uma subespécie de contrato de mútuo era a foemus nauticum ou pecunia traiecticia, um contrato por meio do qual alguém emprestava a um capitão de navio certa quantia em dinheiro para que este, no porto de destino, negociasse operações comerciais. O risco era todo do mutuante, e em face da precariedade das embarcações de então permitia-se a celebração de um pactum usurarum, não permitido nos contratos usuais de mútuo.
4.2.1.2 Fidúcia
Trata-se de contrato em que o fiduciário recebe do fiduciante a propriedade de coisa infungível, detendo-lhe a posse até o incremento de uma condição, que podia ser a devolução da coisa ou uma destinação específica. Este compromisso se caracterizava como um nudum pactum, ou "pacto nu", ou seja, desprovido de actio (força coercitiva) – assim, o fiduciante tinha que confiar (fides) no fiduciário, pois inexistia ação cabível para coagi-lo a cumprir o pactum.
A evolução do ius civile romano permitiu o reconhecimento da fidúcia como um contrato, criando-se com isso instrumentos processuais necessários ao seu cumprimento coercitivo – a Actio Fiduciae Directa, concedida ao fiduciante quando o fiduciário não restituía a coisa ou não lhe dava o destino inicialmente pactuado, e a Actio Fiduciae Contraria, que permitia ao fiduciário exigir do fiduciante o cumprimento das obrigações que porventura existissem entre um e outro, podendo, inclusive, exercer direito de retenção (ius retentionis) da coisa até o cumprimento.
A despeito das possibilidades de actio surgidas posteriormente, o contrato de fidúcia vai caindo em desuso progressivamente, vindo a desaparecer no direito justinianeu. Temos, todavia, no direito atual, um resquício deste instituto – a fiança.
4.2.1.3 Comodato
No comodato, temos a entrega de uma coisa inconsumível, que pode ser móvel ou imóvel, do comodante ao comodatário, para que este último faça uso dela por algum tempo e depois a restitua ao comodante com todos os seus frutos, no tempo e lugar convencionados. É contrato de natureza essencialmente gratuita, que dá ao comodatário o direito de usar da coisa em conformidade com a sua destinação (quando o uso se dá de forma irregular, temos o chamado furtum usus, ou "furto de uso", permitindo a cumulação judicial da Actio Furti, com vistas a condenar o comodatário ao pagamento de uma Poena). [55]
No período pré-clássico, o comodato sequer era entendido como um contrato, pois, assim como na fidúcia, inexistia uma actio que pudesse compelir judicialmente o comodatário a restituir a coisa. Nos casos dolosos, todavia, o pretor podia agir in factum contra o comodatário.
Somente após o Século I d.C. temos o reconhecimento do comodato pelo ius civile como um contrato real, e seus descumprimento passa a ser sancionado por ações in ius ex fide bona ("em justiça de boa fé"), persistindo em paralelo as ações in factum. Nos mesmos moldes das ações dos contratos de fidúcia, temos a Actio Commodati Directa, do comodante contra o comodatário para que este último cumpra a obrigação de restituir a coisa, e a Actio Commodati Contraria, nos casos em que o comodante se recusar a cumprir suas obrigações de natureza eventual – ressarcir despesas necessárias à conservação da coisa e indenizar prejuízos sofridos pelo comodatário em decorrência de dolo do comodante, com direito a ius retentionis.
4.2.1.4 Depósito
O depositum é o contrato pelo qual o deponens (depositante) entrega ao depositarius (depositário) coisa móvel infungível para que este a guarde e restitua quando requerido. Nasce originalmente como contrato gratuito, evoluindo, no direito justinianeu, para um contrato oneroso [56]. Deve o depositário responder pela perda ou dano à coisa – no direito clássico, se houver dolo, e no direito justinianeu, se houver culpa lata, que absorve o dolo. É considerado nulo o pacto de exclusão de responsabilidade do depositário em caso de dolo, e o uso da coisa de forma não convencionada se caracteriza como furtum usus.
Assim como a fidúcia e o comodato, era originalmente um ato sem valor jurídico, e portanto sem efeitos. A partir da Lei das XII Tábuas temos o depositário infiel sancionado em dobro do valor da coisa dada em depósito (Actio in Duplum). Na república, havia a Actio in Simplum, estipulada pelo pretor, e que condenava o depositário infiel a restituir ao depositante o valor simples da coisa, e no principado o depósito, agora elevado à categoria de contrato, permite a Actio Depositi Directa, que acarretava a infamia do depositário, e a Actio Depositi Contraria.
Além do denominado "depósito regular", descrito acima, o direito romano ainda previa o "depósito necessário" (ou miserável), o "depósito irregular" e o "sequestro".
No depósito necessário, alguém é constrangido a se tornar depositário em face de situação excepcional, como uma calamidade pública ou mesmo privada. [57] O não cumprimento da obrigação permitia a Actio in Duplum.
O depósito irregular é o contrato através do qual o depositante transfere a propriedade de coisa fungível ao depositário, que se obriga a restituir, quando requerido, coisa da mesma espécie, quantidade e qualidade da que lhe foi entregue. O principal exemplo é o depósito bancário, no qual o banqueiro se obriga a restituir o dinheiro depositado, com o acréscimo dos juros convencionados.
O sequestro se dá quando duas ou mais pessoas entregam uma coisa em depósito a outrem, de nome sequester, que deverá restitui-la a quem alcance uma determinada condição – por exemplo, o vencedor de um litígio sobre a própria coisa. Diferencia-se do depósito, pois o sequester apenas detém a posse da coisa, e somente pode restituir a coisa àquele que provar a condição que lhe permite recebê-la.
4.2.1.5 Penhor
O penhor é o contrato pelo qual ocorre a transmissão da posse de coisa móvel ou imóvel com vistas a garantir uma obrigação preexistente assumida pelo devedor. O direito de crédito passa a ter uma garantia, o pignus, e o credor pignoratício se obriga a restituir a coisa ao devedor quando da extinção da obrigação [58]. Deve o credor pignoratício conservar a coisa sem usá-la, exceto se houver convenção em contrário, e restituir a coisa, assim que a obrigação se extinguir.
A convenção de penhor nasce com o pretor, que pode sancionar uma Actio in Factum caso o credor pignoratício se recusasse a restituir a coisa ao devedor, após o cumprimento da obrigação. Posteriormente sugem a Actio Pignereticia Direta e a Contraria.
4.2.2 Contratos Consensuais
Os contratos consensuais são os que exigem o consensus das partes para a geração de obrigações. Representam o afastamento gradativo do formalismo, pois dão maior ênfase ao consenso das partes em detrimento da forma.
O direito romano conheceu quatro espécies de contratos consensuais – a compra e venda, o mandato, a sociedade e a locação.
4.2.1 Compra e Venda
A compra e venda – emptio uendito – é o contrato por meio do qual o uenditor (vendedor) obriga-se a transmitir a posse de uma coisa ao emptor (comprador); em troca, este último deve entregar ao primeiro uma soma de dinheiro.
Esta transação nasce da simples troca de mercadorias, sem envolver valores em dinheiro. Com a utilização em larga escala de moedas, surge a possibilidade da "troca" de uma coisa por seu equivalente em dinheiro (seu "valor"), e mesmo a obtenção da propriedade com pagamento a prazo.
A coisa (em latim, res, em grego, merx), objeto do contrato de compra e venda, pode ser corpórea ou incorpórea, já existindo quando da contratação ou com existência futura – a Emptio Rei Speratae, ou "compra de coisa esperada", firmada sob a condição suspensiva de que a coisa virá a existir [59]; e a Emptio Spei, ou "compra de esperança", na qual o comprador se obriga a pagar o pretium (preço) ainda que a coisa não venha a existir [60].
Quanto ao preço, este em regra deve se converter em dinheiro [61]; deve ser certo [62], ou seja, determinado no ato da formação do contrato ou determinável em momento preestabelecido (por exemplo, o maior preço alcançável pela coisa em um determinado dia) – a partir do direito justinianeu temos o arbitrum, que pode fixar o pretium. O preço deve também ser verdadeiro, ou seja, não simulado – caso fosse fictício, ou mesmo irrisório, a compra e venda não se aperfeiçoava, configurando-se situação de "doação indireta", válida somente se seus requisitos fossem atingidos. O preço irrisório foi debatido pelo direito justinianeu, que entendia a necessidade da fixação do preço "justo" - se o preço da venda fosse inferior à metade do justo, o vendedor poderia pleitear ao juiz a rescisão da venda, exceto se o comprador promovesse a complementação do valor, evitando-se com isso a laesio enormis, ou "lesão enorme", termo cunhado na Idade Média.
No campo das obrigações, temos que o vendedor devia conservar a coisa até o momento de sua entrega ao comprador, transferindo a posse de forma pacífica, e respondendo pelo perecimento ou deterioração quando agisse com dolo ou culpa; ocorrendo caso fortuito, o comprador assumia o prejuízo. O vendedor devia ainda responder pela evicção [63] – neste caso, o comprador não dispunha de ação específica contra o vendedor, exceto se se tratasse de res mancipi cuja propriedade tivesse sido transmitida pela mancipatio, situação em que o comprador poderia buscar, pela via da Actio Autoritatis, a condenação do vendedor em pagar-lhe o dobro do valor da coisa. Nas vendas em que não se utilizava da mancipatio, notadamente quando se tratava de res nec mancipi, celebrava-se uma stipulatio entre vendedor e comprador, por meio da qual o primeiro comprometia-se a pagar ao segundo, em caso de evicção, o dobro do valor da coisa (stipulatio duplae) ou o valor do prejuízo sofrido com a evicção (stipulatio habere licere). O vendedor devia ainda responder pelos vícios redibitórios da coisa, podendo o comprador pleitear devolução do preço mediante a restituição da coisa ou simples abatimento do preço.
As partes podiam também, no ato da constituição do contrato de compra e venda (in continenti), firmar pactos que resultavam em direitos e obrigações acessórias, com eficácia obrigatória – os chamados "pactos adjetos".
Os principais pactos adjetos utilizados no Direito Romano eram a lex comissoria, que permitia ao vendedor a anulação do negócio caso o comprador não pagasse o preço no prazo estipulado em contrato [64]; a in diem addictio, que reservava ao vendedor a possibilidade de vender a coisa a um terceiro que, num determinado prazo, apresentasse oferta melhor que a do promitente comprador, podendo este último "cobrir" a oferta do terceiro, pois tinha preferência; a pactum displicentiae, que dava ao comprador a faculdade de rescindir a compra, até certo prazo, caso não se agradasse da coisa [65]; e a pactum de retrouendendo,, por meio da qual o vendedor pode reaver a coisa vendida, em prazo determinado, mediante a restituição do valor pago [66].
4.2.2.2 Mandato
É o contrato no qual o mandamus (mandante) encarrega alguém (is qui mandatum accepit, ou mandatário) de cumprir voluntária [67] e gratuitamente [68] uma atividade em seu favor ou de terceiro. Tem como origem a procuratio, cujo cumpridor, denominado procurator, é em síntese o administrador permanente dos negócios de outrem. [69]
No mandato, as partes firmam um acordo de vontades por meio de uma declaração expressa ou mesmo tácita, pessoalmente, por meio do nuntius (mensageiro) ou por carta. O objeto do mandato deve ser lícito, possível e determinado, e deve consistir na prática de um negócio jurídico, um ato ou conjunto de atos materiais. O ato deve ser gratuito [70], pois assim se distingue o mandato de outros institutos jurídicos, como a gestão de negócios.
O mandatário deve cumprir fielmente o mandato, respondendo pelos atos dolosos que praticar causando lesão; deve prestar contas ao mandante, devendo comprovar o cumprimento fiel do mandato – havendo descumprimento parcial ou total, o mandante poderia lançar mão da Actio mandati directa, em em sentido inverso (do mandatário em relação ao mandante) havia a Actio mandati contraria.
4.2.2.3 Sociedade
No contrato de sociedade (societas), duas ou mais pessoas (socii) obrigam-se a empreender bens ou esforços (operae) em comum, visando o resultado financeiro favorável a todos. É contrato celebrado intuitu personae, ou seja, "em razão das pessoas", e assim deve subsistir enquanto houver interesse mútuo.
São espécies de sociedade no mundo romano:
a) Societas Omnium Bonorum: os bens presentes e futuros da sociedade permanecem em condomínio;
b) Societas Uniuersorum quae ex questu Ueniunt: os sócios colocam em comum na sociedade o produto do trabalho e os rendimentos dos bens, preservando os patrimônios individuais [71];
c) .Societas Unius Rei: sociedade criada para um negócio jurídico único;
d) Societas Alicuius negotiationis: nesta espécie de sociedade, seus participantes tem como objetivo a consecução de diversos negócios jurídicos.
São requisitos do contrato de sociedade a vontade das partes, ressaltando-se a natureza consensual do instrumento, em que cada um coloca na sociedade algo de si, seja em dinheiro ou em trabalho; a affectio societatis, ou "a intenção de ser sócio", e o equilíbrio na divisão de lucros, evitando-se a formação de societas leonina.
Os sócios têm entre si algumas obrigações que decorrem do contrato de sociedade, dentre elas a divisão dos lucros e das perdas (communicatio lucri et damni) [72]e a garantia mútua contra vícios redibitórios ou evicção. Deve o sócio cuidar do patrimônio da sociedade como cuidaria se seus bens próprios, conduzindo-se como um bonus pater famílias; caso contrário, responderia pelo prejuízo.
No direito romano, diferentemente do direito moderno, não temos no contrato de sociedade a formação de uma "terceira pessoa", a pessoa jurídica, que cria personalidade própria, distinta de seus sócios, e que responde em regra pelas obrigações contraídas. No terreno das obrigações, notadamente entre sócios e terceiros, todos respondem solidariamente, na medida da participação de cada um na sociedade.
O contrato de sociedade pode ser extinto [73] com a morte de um dos sócios, não podendo haver sucessão; pela redução drástica do capital (capitis diminutio); com a falência de um dos sócios; perecimento do patrimônio da sociedade; em razão da vontade dos sócios; pela conclusão do negócio; ou mesmo a liquidação pela via judicial provocada por credor(es), através da Actio pro socio [74]. Havendo a necessidade de divisão de bens entre os sócios, utilizava-se a Actio Communi Diuiundo.
4.2.2.4 Locação
No contrato de locação, o locator (locador) obriga-se a proporcionar o gozo de uma coisa, a prestação de serviços ou a execução de uma obra determinada a outrem, denominado conductor ou locatário, mediante o pagamento de um valor predeterminado, geralmente em dinheiro.
Temos três espécies de locação no Direito Romano – a locação de coisa (locatio conductio rei), a locação de serviços (locatio conductio operarum) e a locação de obra (locatio operis faciendi).
Na locação de coisa, o locador proporciona ao locatário o uso e gozo da coisa; em contrapartida, este último paga ao primeiro um merces (aluguel). Tal relação jurídica não faz nascer direito real do locatário sobre a coisa locada, pois não há transferência de propriedade, mas mera detenção (possessio naturalis).
Temos três elementos essenciais à natureza da locação, a saber – a res, que pode ser qualquer coisa corpórea, tanto móvel quanto imóvel, desde que inconsumível; a merces, via de regra paga em dinheiro, cujo valor deve ser determinado desde o momento da formação do contrato; e por fim o consensus das partes contratantes.
No campo das obrigações, temos um contrato sinalagmático, que portanto gera obrigações recíprocas. O locador deve entregar a coisa ao locatário sem maiores formalidades (traditio); deve ainda permitir que o locatário possa usar e fruir a coisa durante a vigência do contrato, respondendo por vícios redibitórios e evicção [75], e não pode promover alteração na coisa que a torne imprópria ao uso convencionado. Deve reembolsar o locatário das despesas necessárias e úteis incidentes sobre a coisa locada, e pagar os impostos. O locatário deve pagar a merces fixada em contrato, salvo se, em face de algum acontecimento, como um terremoto ou uma inundação, fique impossibilitado de usar e fruir a coisa locada; havendo redução do uso e gozo, o aluguel deve ser proporcionalmente reduzido [76]; o uso da coisa deve respeitar o previsto em contrato; responde o locatário por danos causados à coisa, tanto por dolo quanto por culpa; e por fim, deve devolver a coisa ao locador ao término da locação. [77]
A locatio conductio rei se extingue, essencialmente, ao término do prazo da locação, fixado em contrato [78]; sendo a coisa destruída, sem possibilidade de restituição; quando o locador necessitar da coisa para uso próprio ou para reformá-la; não havendo pagamento da merces por prazo de dois anos; quanto ao locatário, quando a coisa apresenta algum defeito que impeça, limite ou dificulte seu pleno uso e gozo, ou quando há perigo na continuidade do uso e gozo. Nos casos de falecimento de um dos contratantes, o contrato se estende a herdeiros e sucessores; no caso de venda, deve o locador indenizar o locatário pelos danos que decorram da privação do uso da coisa caso o comprador não deseje dar continuidade à locação.
Na locação de serviços – locatio conductio operarum – o locador deve prestar serviços ao locatário, em caráter pessoal, durante um tempo determinado, recebendo, em contrapartida, uma quantia em dinheiro (merces). O objeto do contrato é a operae, trabalho desempenhado por homens livres não especializados [79], em geral remunerados por dia. Os riscos decorrentes da locação de serviços correm exclusivamente por conta do locator, que não possui garantias, exceto por motivo de força maior, situação em que faz jus ao recebimento da merces mesmo sem prestação do serviço.
Cabe observar, por oportuno, que o contrato de locação de serviços do direito romano deu origem ao contrato de trabalho moderno, originalmente disciplinado no Art. 1216 do Código Civil de 1916 e posteriormente regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho. No Código Civil vigente, temos o Art. 593 e seguintes regulando a matéria, nos casos em que não se aplique a legislação trabalhista.
Temos, ainda, a locação de obra ou empreitada – locatio operis faciendi – pela qual um prestador de serviço é contratado para a execução de uma obra determinada, como por exemplo a construção de uma casa, em prazo determinado e mediante o pagamento de determinada soma em dinheiro. O conductor deve observar as normas técnicas necessárias com vistas ao cumprimento da obrigação contratada, respondendo, inclusive, pelos danos decorrentes de imperícia profissional, tendo como foco o resultado final; assim, pode ele contratar terceiros para a execução, exceto se tratar-se de contrato intuitu personae.
4.2.3 Contratos Inominados
Como vimos anteriormente, os contratos no direito romano nascem do mero pacto nu, ou nuda pacta, que em regra não têm o condão de fazer nascer um vínculo de natureza jurídica entre as partes.
A evolução da sociedade em Roma é acompanhada pelo Direito, que aos poucos incorpora novos institutos surgidos das novas necessidades negociais.
Neste contexto, nascem os chamados "contratos inominados", derivados das convenções cumpridas unilateralmente que buscam a contraprestação para se configurar o sinalagma [80].
Cumpre ressaltar que o termo "contratos inominados" não está associado à inexistência de nome próprio a identificar cada instituto, mas sim pelo fato de não serem reconhecidos, à primeira vista, como "contratos", haja vista a origem na nuda pacta. A natureza contratual somente se configura a partir de uma prestação unilateral que requer uma contraprestação equivalente.
Não obstante a inexistência jurídica da contraprestação, no direito clássico encontramos alguns instrumentos processuais que tinham como objetivo proteger o cumpridor da obrigação, dentre elas a Condictio ob rem dati, visando a restituição da coisa entregue, e a Actio de Dolo, que objetivava a obtenção de uma indenização nos casos de impossibilidade de restituição da coisa. Temos, nestes institutos, uma forma "alternativa" de resolução, pois não se podia exigir o cumprimento do pactum, mas apenas a restituição da coisa ou seu valor pecuniário.
A partir do direito justinianeu surge a estrutura, tal qual se nos apresenta hoje, dos contratos inominados, classificados em quatro espécies, a saber:
a)"dou para que dês", ou ut des – tanto a prestação quanto a contraprestação estão vinculadas à entrega de uma coisa pela outra, ou seja, uma "troca";
b)"dou para que faças", ou ut facias - a prestação se vincula à entrega de uma coisa, e a contraprestação a um comportamento, uma "doação com encargo";
c)"faço para que dês", ou facio ut des – situação inversa da ut facias, isto é, a prestação está vinculada a um comportamento, e a contraprestação à entrega da coisa;
d)"faço para que faças", ou facio ut facias – nesta modalidade de contrato inominado, ambas obrigações se vinculam a um comportamento.
Os contratos inominados têm como requisitos o acordo de vontades quanto à prestação e a contraprestação equivalente, e a execução unilateral do acordo, que faz gerar a pretensão quanto à execução da contraprestação.
4.2.3.1 A permutatio (compra ou permuta)
Na permuta, temos em síntese a entrega de uma coisa em troca de outra coisa. Trata-se do principal contrato inominado da espécie ut des, que muito se aproxima da compra e venda, diferenciando-se desta apenas por não possuir o elemento preço, pois ocorre apenas a troca de uma coisa pela outra sem complementação financeira, e por nascer de uma prestação unilateral e não de um contrato.
4.2.3.2 Contrato Estimatório
No Aestimatum, uma das partes entrega à outra uma mercadoria para vender; ocorrendo a venda, o vendedor paga o preço previamente convencionado ("estimado", daí a origem do termo), e em caso contrário a coisa deve ser devolvida. O vendedor lucra na diferença entre o preço estimado e o que obtiver na venda.
4.2.3.3 Precário
O precarium é a convenção em que uma parte (precario dans) cede à outra (precario accipiens) o pleno uso e gozo de uma coisa, a título gratuito, obrigando-se este último a restituí-la, quando requerido.
No período clássico, se caracteriza como simples relação de fato, não criando obrigações entre as partes. Assim, para obter de volta a coisa, o precario dans deveria fazer uso da ação de reivindicação, pois inexistia ação de restituição por descumprimento contratual. A partir de um Edito do pretor, surge um interdito em favor do precario dans, o Interdictum de precario, nos casos em que pairassem dúvidas quanto à propriedade da coisa.
4.2.3.4 Transação
Na transactio, temos uma relação jurídica preexistente e controversa que, por meio de concessões recíprocas, será alterada, mediante a elaboração de uma stipulatio. As partes abrem mão simultaneamente de parte de seus direitos em prol de uma composição.
4.2.3.6 Pactos "nus" e "vestidos"
Anteriormente, observamos que os "pactos nus" não geram, diferentemente dos contratos, obrigações unilaterais ou bilaterais, pois são desprovidos de força obrigatória e eficácia jurídica, sendo facultado à parte prejudicada apenas a via da exceção, ou exceptio. Tal situação gerava insegurança jurídica, notadamente quando uma parte dolosamente descumpria o pacto.
Outrossim, nem todos os pactos eram nus – por conta da jurisprudência, dos Editos e das constituições imperiais, surgem algumas actiones a defender interesses decorrentes de obrigações inadimplidas. Surgem então as pacta uestita, ou "pactos vestidos", cujas espécies são os pacta adiecta (pactos adjetos), pacta praetoriana (pactos pretorianos) e pacta legitima (pactos legítimos).
Os pactos adjetos, ou acrescentados, são acordos que modificam certas condições presentes num contrato preexistente, que podem tanto reduzir quanto ampliar as obrigações do devedor [81]. Podiam ser firmados no ato da celebração do instrumento principal (in continenti) ou após (ex intervallo) – tal diferenciação se justificava nos casos de aumento de obrigações, pois quando o pacto adjeto era firmado in continenti e de boa fé, cabia ação; sendo ex intervallo, restava a via da exceção.
Os pactos pretorianos são convenções unilaterais, sancionadas pelo pretor a partir de provocação da parte prejudicada, em atenção à sua promessa, ao assumir a pretura, de que faria respeitar todos os pactos, desde que não eivados de dolo, ilegalidade ou fraude.
Os pactos legítimos nascem das constituições imperiais, e se subdividem em Compromissum, no qual as partes convencionam a convocação de um árbitro para a solução de um litígio [82]; o pactum dotis, ou "promessa de dote", exigível pelo marido; e o pactum donationis, ou "promessa de doação", sancionada por Justiniano por meio da Condictio ex lege em 530 d.C..
4.2.3.7 Doação
Na doação, temos a entrega voluntária de um bem ou conjunto de bens do doador ao donatário, implicando em redução de patrimônio do primeiro em favor do último. É ato voluntário, no qual ressalta o animus donandi, a intenção efetiva de doar.
O instituto jurídico da doação nasce "puro", ou seja, como ato unilateral e que não comporta condição ou encargo ao donatário, e como uma conseqüência de atos jurídicos que envolvem patrimônio, como a stipulatio e a mancipatio.
A partir de Constantino, em aproximadamente 323 d.C., a doação ganha "status" de negócio jurídico típico, a partir de três requisitos de validade – redação de ato escrito perante testemunhas, entrega física da coisa (corporalis traditio) e a transcrição do ato em registro público (insinuatio). Justiniano alterou a reforma de Constantino, eliminando a corporalis traditio e estabelecendo o registro público somente para bens cujos valores superassem 500 sólidos, unidade de valor da época, através da insinuatio apud acta. Amplia-se o rol de doações, incluindo-se as doações reais, obrigatórias (com encargo) e liberatórias (remissão).
As doações podiam ser feitas entre pessoas vivas (inter uiuos) ou mortis causa, decorrente da morte do doador.
Nas doações inter uiuos, cumpre observar que no direito clássico algumas de suas espécies não são bem toleradas, surgindo, em decorrência disto, algumas restrições, como por exemplo aos advogados (Lex Cincia de Donis et numeribus) no patronato de suas causas [83]. Curiosamente, tal lei não decretava a nulidade do ato de doação tampouco cominava pena ao infrator, restando a via da exceção (Exceptio legis Cinciae).
No período clássico, surge a Donactio Perfecta, que obriga o doador a cumpri-la e não permite seu desfazimento, aplicável somente aos casos em que não existisse proibição expressa na Lex Cincia. Em contraponto, surge a Donatio Imperfecta, ou seja, aquela que não se tornava perfeita em face de restrição legal, e que podia ser anulada por meio de exceção. Em 323 d.C. a Lex Cincia foi revogada por Constantino, sendo a doação convertida em negócio jurídico típico, conforme visto anteriormente – com isso, temos que as exigências para a validade do instituto se concentram na forma; com efeito, a donatio perfecta não é mais a doação por meio da qual o donatário não pode mais se escusar de seu cumprimento, mas aquela que respeita as formalidades legais, ligadas essencialmente à publicidade do ato e possível oposição de terceiros. Com isso, a donatio perfecta pode ser revogada, seja por simples acordo de vontades, ou mesmo quando ocorrer ingratidão do donatário em relação ao doador.
A doação mortis causa requer, como requisito de eficácia jurídica, que o doador pereça antes do donatário, ou pelo menos ao mesmo tempo deste.
O instituto surge, no direito clássico, considerando duas hipóteses – a possibilidade da morte a qualquer tempo, ou quando o doador se expunha a situação de perigo iminente, como por exemplo uma guerra. Em ambos casos, temos uma condição suspensiva, que se firmava através de stipulatio ou pactum fiduciae (convertida em condictio por influência dos sabinianos), permitindo revogação em caso de inocorrência do evento morte.
A doação mortis causa não era firmada por meio de testamento (legado), o que afastava de plano a necessidade de avaliação da capacidade para testar.
Outra espécie de doação prevista pelo direito romano é o chamado "dote". Para entendermos o instituto, é necessário tecer algumas considerações acerca do regime de bens no casamento romano.
Em Roma, regra geral o regime de bens era de separação total, ou seja, os patrimônios do marido e da mulher não se comunicavam, exceto quando se lançava mão do chamado "regime dotal" – neste, é transferido ao marido um patrimônio, denominado "dote" (rex uxoriae) com o objetivo de contribuir para a sustentação dos ônus decorrentes do casamento. Os bens exclusivos da mulher (bona extra dotem) não integram o dote, mas igualmente são administrados pelo pater famílias, (que pode ser o marido ou seu mandatário), devendo prestar-lhe contas e restituí-los em caso de dissolução do vínculo matrimonial. O dote pode incluir qualquer elemento patrimonial – posse, propriedade, direitos reais (exceto os de garantia) e direitos de crédito.
A constituição real do dote (dotis dactio) ocorre quando há a transmissão efetiva dos bens e direitos ao marido; em se tratando de res mancipi, contudo, é necessária a formalização do ato por meio de mancipatio ou in iure cessio, meios utilizados para a transferência da propriedade desta espécie de coisa.
Temos, ainda, situações em que o dote se constitui, mas será transmitido ao pater familias posteriormente; na doctis dictio, a mulher, seu pai ou avô paterno, ou ainda um terceiro, devedor destes, obriga-se, verbalmente,a transferir a propriedade dos bens que formam o dote. Na dotis promissio, qualquer pessoa pode assumir esse encargo, pela via da stipulatio. O valor venal pode ser estipulado quando de sua constituição, para efeito de restituição em caso de dissolução do casamento, ou em caso de perecimento ou deterioração dos bens dotais.
No caso de divórcio, o marido não se via legalmente obrigado a restituir o dote à ex-mulher. Tal situação prejudicava a mulher, que em muitos casos saía do casamento sem bens; passou-se então a firmar stipulatio que obrigava a restituição do dote; nos casos em que tal condição não era firmada, a lançava-se mão da Actio Rei Exoriae, que permitia à mulher buscar em juízo a devolução, ainda que parcial, quando houvesse retemptio propter impensas (retenção por despesas necessárias ou úteis), retempito propter líberos (retenção em favor dos filhos, equivalente a 1/6 dos bens dotais por filho, limitado à metade do dote) e retemptio propter mores (em caso de adultério, 1/6 dos bens dotais, e 1/8 nas faltas consideradas mais leves). Esta ação é abolida no direito justinianeu, sendo fixada, em qualquer situação de dissolução, a Actio ex stipulatu, que não mais se reveste de caráter personalíssimo contra o pater famílias, transmitindo-se aos herdeiros. Esta ação obriga o marido a devolver imediatamente os imóveis, e concede prazo de 1 ano para restituição dos bens móveis.
Uma espécie do gênero é a "doação com encargo"; trata-se de contrato inominado da espécie ut facias, no qual o doador impõe ao donatário uma obrigação (encargo) para que a propriedade da coisa seja efetivamente transferida. Uma vez aceita a doação, o donatário deve cumprir a obrigação (por exemplo, a construção de um hospital sobre o terreno doado) para que a doação se aperfeiçoe. É conhecida atualmente como doação "modal".
4.2.4 Os "quase contratos"
A maioria das obrigações, como vimos, nasce do acordo de vontades, produzindo efeitos jurídicos – do pacto surge a obrigação, e dela o contrato.
Porém, nem todas as obrigações seguem essa ordem; por exemplo, se uma pessoa paga um valor a outra crendo ser esta credora, e posteriormente vem a saber que não era credora, qual o vínculo existente entre eles que permita ao que pagou exigir a devolução? Neste caso, temos uma obrigação de restituir que não exsurge de um contrato, mas sim do princípio de que a ninguém é dado o direito de enriquecer à custa alheia.
Assim, na definição de CRETELLA, temos que o "quase contrato" é " o ato lícito e voluntário que torna seu autor credor de outra pessoa, sem que tenha havido prévio acordo de vontades entre ambas". [84] Não está contido no Corpus Iuris Civilis, que se refere ao termo Obligatio ex quase contractu, e seu equivalente Obligatio ex quase delictu, no caso do "quase delito".
As Institutas de Justiniano apontam para a existência de cinco espécies de "quase contratos" – a gestão de negócios, a tutela, a Communio Incidens, e o pagamento indevido.
4.2.4.1 Gestão de Negócios
Trata-se da administração de negócios feita pelo negotiorum gestor (gestor de negócios) em favor do dominus negotii (gerido), ato voluntário que tem como objetivo evitar um dano. Entre o gestor e o gerido forma-se um vínculo jurídico que obriga o gerido a ressarcir o gestor das despesas contraídas em seu benefício, devendo necessariamente inexistir obrigação originária, como por exemplo um mandato, ainda que tácito. [85] O gestor deve prestar contas [86] ao gerido quando solicitado, restituindo a coisa que estiver em seu poder, incluindo eventuais frutos decorrentes da gestão.
No plano processual, temos a Actio Negotiorum Gestorum Directa, em favor do gerido, e a Actio Negotiarum Gestorum Contraria em favor do gestor.
4.2.4.2 Tutela
A tutela é um encargo (munus), em geral inescusável, que visa a administração dos bens de um incapaz por fato normal (menores de idade e mulheres). Em sua origem, no direito clássico, contemplava este instituto de Direito Privado um verdadeiro poder (potestas) sobre o tutelado e seu patrimônio, muito mais voltado aos herdeiros do incapaz do que a ele próprio [87].
A partir do direito pós clássico o instituto vem a sofrer alterações, voltando-se mais para a proteção do incapaz. O tutor passa a agir tanto como um gestor de negócios quanto como um representante da vontade do tutelado (auctoritatis interpositio). Os poderes do tutor, inicialmente ilimitados, sofrem restrições, inicialmente com relação aos atos gratuitos, passando pela alienação onerosa de bens, aplicação de capitais, pagamento e recebimento de créditos, sempre supervisionados pelo magistrado.
As obrigações do tutor se iniciam antes do exercício da tutela, devendo promover um arrolamento dos bens, sob pena de ser considerado seu comportamento como doloso. O tutor deve prometer, mediante stipulatio garantida por caução, que irá administrar com todo o zelo o patrimônio que lhe fora estipulado.
No exercício da tutela, o tutor se obriga a gerir da melhor forma o patrimônio do tutelado, como um bonus pater familias em relação a seus próprios bens, respondendo por todos os atos, ativos ou omissivos, que provoquem danos ao patrimônio do tutelado.
Ao término do munus, deve o tutor prestar contas ao ex-tutelado, devendo restituir todos os bens e direitos que estavam sob sua administração, incluindo os frutos.
4.2.4.3 Communio Incidens
O instituto refere à formação de um domínio comum de coisa móvel ou imóvel, que não decorre de uma convenção, como no contrato de sociedade; por exemplo, quando um bem é doado a mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
As regras básicas da communio incidens derivam do contrato de sociedade, tais como a divisão de lucros e prejuízos, reembolso de despesas, dissolução.
4.2.4.4 Pagamento Indevido
Quando alguém paga a alguém algo que não lhe era devido, este último se locupleta em detrimento de outrem – nasce, assim, o "enriquecimento sem causa", ou seja, sem estar lastreado em um ato jurídico válido, como uma doação,por exemplo.
O enriquecimento sem causa obriga o recebedor a restituir o que recebeu indevidamente; o direito justinianeu firmou um gênero de ação pretoriana abstrata denominada condictio, de caráter genérico e que servia para combater situações injustas que não dispunham de mecanismo específico.