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A protetividade do direito de autor em face do acesso da coletividade aos bens culturais no Brasil do século XXI

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Agenda 06/09/2010 às 17:23

RESUMO

Trata-se de artigo que aborda a discussão hodierna em torno da protetividade do direito de autor sob a ótica dos princípios constitucionais que a regem, assim como do marco legal de regência da matéria, e sua configuração como forma de restrição ao acesso da coletividade aos bens culturais, princípio da ordem constitucional da cultura. Ressalta-se o impacto da evolução tecnológica no conflito, ponderando os valores em confronto. Ainda que se considere que os criadores são primordiais e que devam ter seus direitos assegurados, inclusive através de alternativas compensatórias, prevalece a conclusão que o acesso da coletividade aos bens culturais em circunstâncias definidas deve preponderar, tendo em conta a função social da propriedade como princípio constitucional fundamental do qual não pode o direito de autor se isentar no Brasil deste início de século XXI.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento: 2.1. Abordagem constitucional; 2.2. A protetividade do autor no âmbito da Lei de Direito Autoral - Lei 9610/98; 2.3. O acesso da coletividade às obras autorais e sua relevância na atualidade; 2.4. A aplicabilidade do princípio constitucional da função social da propriedade como medida de ponderação para pacificação no meio autoral; 2.5. O alcance da justiça e equidade no âmbito do Direito de Autor no Brasil do século XXI. 3. Considerações finais. Referências.


1.INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva apresentar o conflito atual com que o Direito Autoral se depara: a protetividade do Direito de Autor face ao acesso da coletividade aos bens intelectuais produzidos no seu seio, sob o prisma dos princípios constitucionais inerentes a cada corrente – a liberdade de expressão e o direito de propriedade especial do direito autoral enquanto direitos e garantias individuais consagrados no plano dos direitos fundamentais e o exercício pela coletividade dos direitos culturais esculpidos na ordem constitucional da Cultura através do acesso às fontes da cultura nacional, tendo em conta não só a evolução da noção de preponderância do coletivo sobre o individual, mas também a realidade tecnológica experimentada no Brasil no começo de um novo século.

A proteção que o Direito de Autor confere aos criadores intelectuais encontra-se estabelecida na Constituição e na lei de regência da matéria, e decorre da evolução histórica nacional e internacional do instituto do Direito Autoral. A necessidade de estímulo à criação intelectual resultou na configuração de um direito híbrido, composto de um aspecto moral – o direito moral à paternidade da obra - e outro patrimonial – o direito de exploração econômica - a fim de o Estado salvaguardar o bem-estar psicológico e material do criador, para que este continuasse gestando e gerando suas obras. Tais circunstâncias resultam em diversas proibições de uso ou reprodução de obras autorais calcadas no direito fundamental da liberdade de expressão e do exercício do direito individual de propriedade.

Por outro lado, a importância dos direitos coletivos adquire destaque à medida que o desenvolvimento material da humanidade ao longo do século XX resultou num aumento populacional generalizado, tal como se verifica neste início do século XXI no Brasil. Em decorrência desse entendimento, procura-se promover o desenvolvimento sócio-econômico do país a partir de novas construções doutrinárias e legais, entre elas a ordem constitucional da cultura, que ultima a democratização do acesso da sociedade à informação e à cultura. Mister se faz ressaltar que tal movimento ganha extraordinário impulso com o surgimento da rede mundial de computadores e das novas mídias digitais, que possibilitam rápida e fácil acessibilidade aos bens culturais, colocando em questão o atual modus-operandi do instituto do Direito de Autor.

Com base na necessária ponderação de valores vigente no direito constitucional contemporâneo, procura-se estabelecer neste trabalho o direito que deverá prevalecer, preservando, no entanto, ao máximo, os interesses daquele aparentemente preterido. É neste diapasão que se constata que o interesse coletivo não pode estar subjugado aos interesses individuais enquanto bem maior que revela ser, tal como defendido por alguns segmentos doutrinários, em especial no âmbito acadêmico. Sob o fundamento do princípio da função social da propriedade, entende-se necessária a mitigação da protetividade do instituto autoral em circunstâncias que operem em prol do acesso das pessoas ao bens intelectuais produzidos no meio da sociedade que integram. E para que se cumpra o fim último do Direito como realização da Justiça, referenciam-se formas compensatórias para os autores, a fim de que vejam sua dignidade preservada.

O presente artigo revela-se relevante do ponto de vista social e jurídico na medida em que procura vislumbrar uma solução no sentido de usufruir-se de forma legal das obras artísticas e científicas como exercício do direito coletivo à cultura para alcance do pleno desenvolvimento da sociedade brasileira. Não obstante a realidade fática do imperativo tecnológico demonstre que o acesso às obras artísticas e científicas ocorre de forma ampla no país, é inegável que tal acessibilidade está em discrepância com o normativo legal esculpido na Lei de Direito Autoral atualmente em vigor. Essa problemática interessa à Ciência Jurídica, pois o Direito deve estar em consonância com o tempo e a realidade que se vive.

Cumpre destacar que a metodologia utilizada assenta em pesquisa bibliográfica, a partir da qual se buscou evidenciar conceitos, ideias e posicionamentos de diferentes doutrinadores e estudiosos a fim de analisar o arcabouço teórico do tema consoante sua inserção na atual Constituição.

Ademais, optou-se por fazer uma pesquisa descritiva de jurisprudências pertinentes à temática abordada a fim de se identificar entendimentos e tendências a serem seguidas pelos operadores do Direito na atualidade.


2. DESENVOLVIMENTO

2.1. ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

Criar – escrever, musicar, pintar, enfim, projetar o espírito numa obra para melhor comunicar-se com o grupo social no qual está inserido, contribuindo para o desenvolvimento de sua qualidade de vida, é uma ânsia da pessoa humana que o Direito amparou através do instituto do Direito de Autor, o qual envolve aspectos morais e patrimoniais dos autores – objeto de lei específica: a Lei 9610/98, atualmente em vigor, além do agasalho constitucional, e através dos direitos da coletividade, também expressos na Magna Lei.

Neste início de século XXI no Brasil, um século que já é e continuará sendo cada vez mais digital-virtual, os interesses em torno da criação autoral e sua acessibilidade revelam-se especialmente conflitantes, tendo em conta que a lei de regência da matéria, em consonância com os direitos e garantias individuais, faz prevalecer a protetividade do autor/titular das obras, não obstante a realidade fática que a contraria. No entanto, este é um tempo em que a interatividade reforça a globalização e o sentimento de pertença a uma coletividade que clama pelo exercício dos seus direitos sociais constitucionalmente previstos, implicando tal exercício no fácil acesso legal aos bens culturais, numa relação direta obra-usuário, sem a intermediação do autor ou titular.

Assim, torna-se fundamental a adequação do entendimento jurídico da questão sob seu enfoque constitucional, tal como estabelece o Direito pós-moderno, no qual vigora o neoconstitucionalismo e sua missão de fazer prevalecer a força normativa da Constituição como ponto nodal de uma vivência democrática e justa. Nas palavras de Luís Roberto Barroso: "(...) toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados" [01]. É a chamada filtragem constitucional que condiciona a interpretação do ordenamento jurídico na atualidade.

Percebe-se nesse novo momento da história constitucional que, para além da necessidade das questões legais deverem ser encaradas sob a ótica da Constituição, esta também tem que ser abordada à luz dos princípios que regem sua construção e aplicação, pois "Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios." [02]

Uma vez que princípios constitucionais apresentam carga valorativa e fundamento ético, não é de se estranhar que possam entrar em conflito, já que a colisão de princípios "não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso, a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância." [03] A partir dessa constatação, torna-se imperativo e necessário ponderar valores com base nos princípios constitucionais inerentes a cada corrente do conflito abordado neste artigo, a fim de que se alcance a melhor solução, sendo certo que tal solução, que também deverá estar ao abrigo da Magna Lei, somente é alcançada com o esforço pessoal do intérprete-operador do Direito. O Direito de Autor e o arcabouço protetivo que ele estabelece em torno dos criadores têm por base os princípios constitucionais da liberdade e da igualdade, ambos na sua dimensão individual, identificada no art.5º da Constituição da República: o princípio da liberdade na vertente específica do direito à liberdade de expressão intelectual, artística e científica que se consubstancia no direito moral do autor, e o princípio constitucional da igualdade na vertente isonomia material com o exercício do direito de propriedade do autor – o direito patrimonial relativo às criações que identifica sua exploração econômica.

No que se refere aos direitos sociais da coletividade (esse grupo social que ganha expressão e representa mais do que a simples soma dos indivíduos que o compõe) – e em especial aos direitos culturais, deve-se considerar os princípios constitucionais da solidariedade e da universalidade, materializados nos direitos à educação, à informação e à cultura dispostos no art.6º e no art. 215 da Magna Lei, entre outros.

Mister se faz ressaltar que a aplicabilidade dos direitos relativos à cultura é condicionada pelos princípios norteadores da Ordem Constitucional da Cultura, instituída a partir da vigência da atual Lei Maior. Segundo José Afonso da Silva, "a Constituição de 1988 deu relevante importância à cultura, (...) formando aquilo que se denomina ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural, estruturada a partir do conjunto de normas que contêm referências culturais e disposições consubstanciadoras dos direitos sociais relativos à educação e à cultura." [04]

Embora a Ordem Constitucional da Cultura encontre-se refletida em direitos fundamentais individuais e coletivos tais como a liberdade de expressão intelectual, a manutenção e proteção do patrimônio cultural brasileiro e a garantia do pleno exercício dos direitos culturais, optou-se neste artigo por abordá-la no que tange ao acesso aos bens culturais – as obras autorais, tendo, portanto, como foco, os direitos culturais enquanto direitos coletivos.

Impõe a dialética constitucional, a partir da ponderação de interesses, que sejam feitas concessões a fim de que se alcance um resultado socialmente aceite com o menor sacrifício possível de cada uma das correntes e direitos em oposição. E é com base nessa dinâmica constitucional que atualmente se discute alcançar um equilíbrio de interesses expressos na lei de regência da matéria, no sentido da coletividade alcançar obras autorais atualmente inacessíveis para que a cultura cumpra sua missão de expressão da identidade, ação e memória do povo brasileiro.

Portanto, a partir da filtragem constitucional presente em toda a sistemática deste trabalho e que assenta na dignidade da pessoa humana, na razoabilidade, na solidariedade e na inafastável discricionariedade do intérprete, aborda-se o princípio constitucional da função social da propriedade – do direito patrimonial do autor em concreto – como fundamento e argumentação justificadora de uma flexibilização da protetividade do autor em prol do desenvolvimento social pleiteada por alguns segmentos da sociedade. Relativamente à propriedade privada, refere José Afonso da Silva que "(...) ela não mais poderá ser considerada pura direito individual (...) especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social." [05]

2.2. A protetividade do autor no âmbito da Lei de Direito Autoral - Lei 9610/98

A Lei de Direito Autoral brasileira regula o Direito de Autor e os direitos a ele conexos, assim entendidos como os direitos dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão. Cabe ressaltar que tal ramo do direito integra, juntamente com o Direito da Propriedade Industrial, o chamado Direito da Propriedade Intelectual, que no seu todo cumpre finalidades estéticas (de deleite ou aperfeiçoamento técnico como no ramo autoral) ou atende a necessidades de cunho prático do cotidiano dos cidadãos (como os modelos de utilidades e patentes do ramo industrial).

Encontra-se no artigo 22 [06] da Lei 9610/98 a identificação da natureza híbrida do Direito de Autor, objeto de estudo do presente artigo: de um lado, a vertente moral – a autoria da criação intelectual enquanto vínculo à própria personalidade do autor, e de outro a vertente patrimonial: a exploração econômica da criação, que embora inicialmente pertença ao autor, poderá ser da titularidade de terceiros.

Os direitos morais dos autores encontram-se elencados no artigo 24 da LDA, e vão além da mera identificação de autoria (embora se considere o direito à paternidade como o núcleo do direito moral por excelência), pois permitem aos autores manterem a obra inédita, retirá-la de circulação ou proibir qualquer uso, entre outros direitos. Trata-se de direitos personalíssimos com suas características inerentes de oponibilidade erga omnes, irrenunciabillidade, intransmissibilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, entre outras. Alcança-se, assim, o plano constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana em decorrência da proteção da sua personalidade nas relações jurídicas autorais, de natureza inter-subjetiva.

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Já os direitos patrimoniais constantes do Capítulo III refletem o direito exclusivo de dispor da criação, pois é necessária a autorização prévia e expressa do autor/titular para utilização da obra por quaisquer modalidades (arts.28 e 29), tais como a reprodução (cópia) total ou parcial, a adaptação (de livro para roteiro de cinema, por exemplo), a tradução, entre outras, devendo-se interpretar restritivamente quaisquer negociações/contratações nesse âmbito. Tais direitos assentam na argumentação da necessidade do retorno econômico-financeiro que serve de estímulo à criação intelectual, viabilizando-na através da sua difusão. Em decorrência de tal necessidade, a titularidade do direito patrimonial pode ser originária ou derivada, à medida que transmissível a terceiros.

Argumenta José Carlos Costa Netto que o direito de utilização exclusiva da obra intelectual pelo autor encontra-se corroborado no regime constitucional vigente enquanto cláusula pétrea, e portanto, imutável no sentido da sua diminuição de alcance ou supressão. [07]

Ao longo dos seus dispositivos, a lei de regência da matéria realça a proteção que confere ao autor/titular, e que em tudo se coaduna com os princípios esculpidos no art.5º da Constituição Federal, tais como: a liberdade de expressão intelectual, artística e científica (inciso IX), o direito de propriedade (inciso XXII) e o direito ao exclusivo – direito de propriedade especial do direito autoral (inciso XXVII). Para José Carlos Costa Netto "é nítida a necessidade de que as regras constitucionais sejam consideradas de forma harmoniosa." [08] Trata-se de harmonizar o direito ao exclusivo que o direito de propriedade intelectual impõe com a liberdade de manifestação do pensamento e expressão intelectual, sem esquecer o direito de imagem, inviolabilidade da intimidade, vida privada e honra afetos diretamente ao direito autoral.

As origens da proteção autoral remontam a convenções e tratados internacionais, em especial a Convenção de Berna, que estabelece a prevalência de um sistema legislativo assente na figura da pessoa humana criadora. Ressalta-se que a Convenção Internacional para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas celebrada em Berna (Suíça) em 1886 integrou o normativo legal brasileiro através do Decreto 75.699/75 e do Decreto Legislativo 94/74 [09]. Como menciona Carlos Alberto Bittar: "o sistema individual (europeu ou francês) é o da Convenção de Berna, de caráter subjetivo, dirigido à proteção do autor e consubstanciado na exclusividade que se lhe outorga, permitindo-lhe a participação em todos os diversos meios de utilização econômica." [10] Vige no Brasil, portanto, o entendimento francês do droit d’auter, pois a visão anglo-saxônica privilegia a exploração comercial das obras através do instituto do copyright, tornando secundários os aspectos inerentes ao direito moral.

O Direito de Autor surge no século XVI na Europa, fruto da invenção da prensa por Gutenberg [11] e do intuito de controle da produção/difusão das ideias a partir da atribuição pelo governo inglês do monopólio da exploração comercial aos editores ingleses em 1557 [12]. O foco de tal direito, portanto, era exclusivamente patrimonial em relação a terceiros, e não se voltava para os criadores. Somente com a Revolução Francesa surge a perspectiva de proteção dos interesses dos autores propriamente ditos, evoluindo a proteção patrimonial para a consideração de outros aspectos ligados à paternidade da obra, o que resultaria no droit d’auter e sua duplicidade de conteúdo aqui abordada.

Importa referir que o Direito de Autor não protege qualquer criação. Nas palavras precisas de João Willington e Jaury N.de Oliveira: "A doutrina do direito autoral qualifica como obra intelectual toda aquela criação do espírito humano (leia-se intelecto), revestindo-se de originalidade, inventividade e caráter único e plasmada sobre um suporte material qualquer." [13] Portanto, as obras protegíveis são-no em virtude de serem consideradas fruto de um esforço intelectual de cunho criativo, voltado para o deleite estético ou aprimoramento técnico que as torna originais e únicas na sua forma, pois "(...) quando se passa da criação para a descrição, quando há descoberta e não inovação, quando é o objeto que comanda em vez de o papel predominante ser o da visão da autor, saímos do âmbito da tutela" [14]. Ainda no entendimento do autoralista José de Oliveira Ascensão, "(...) a criação do espírito não pode permanecer no foro íntimo. Tem de se exteriorizar ou manifestar. (...) A idéia, para se comunicar, tem pois de descer da sua imaterialidade para encarnar numa determinada maneira de expressão. Essa maneira de expressão pode ser designada a forma (...)" [15] Essas formas encontram-se elencadas no artigo 7º da Lei 9610/98, e são identificadas como textos literários, obras audiovisuais, músicas, desenhos, ilustrações, entre outras.

Enfatizando a proteção dada ao autor – tanto no que se refere ao aspecto moral quanto ao patrimonial, estabelece a Lei 9610/98 que a obra é protegida desde o momento da sua criação, independentemente de registro. Este possui natureza meramente declaratória – e não constitutiva de direitos, podendo ser realizado em diferentes instituições, consoante a natureza da obra. A título exemplificativo, identifica-se a Biblioteca Nacional para as de cunho literário, a Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro para as obras de artes plásticas ou o Conselho Federal de Engenharia Arquitetura e Agronomia para projetos concernentes à engenharia ou arquitetura. [16]

Apesar de ser suficiente a comunicação ao público com indicação da autoria, local e data, entendem João Willington e Jaury N.de Oliveira que "não devemos nos esquecer que o Brasil é um país de tradição cartorária (...) Além disso, o registro inverte o ônus da prova, numa proposição judicial, isto é, a parte contrária deverá provar que o nome constante do registro não é autor." [17]

A questão da proteção autoral na sua vertente patrimonial está diretamente relacionada à entrada da obra em domínio público, fato que se dá após setenta anos a contar do ano subsequente ao da morte do autor. Para as obras em coautoria, considera-se da morte do último autor. Em inexistindo herdeiros/sucessores, esta transferência é imediata, assim como no caso das obras de autoria desconhecida ou afetas ao folclore.

O domínio público representa o fim da proteção patrimonial, já que restam desnecessárias as autorizações até então imprescindíveis. Representa uma espécie de retorno à coletividade de um bem que somente se gestou em decorrência da inserção do seu criador naquele meio social. Evidencia-se, assim, através da reintegração da teoria da propriedade intelectual, a harmonização do Direito de Autor e das normas fundamentais constitucionais relativas a interesses sociais de ordem pública, abordados no item 2.3 deste artigo.

São de resto tais interesses sociais, em especial o interesse público quanto à disseminação do conhecimento, que consubstanciam as chamadas derrogações do artigo 46 da Lei 9610/98, pois afastam seu caráter eminentemente protetivo em circunstâncias específicas. No referido artigo encontram-se elencadas as hipóteses de uso livre das obras, ou seja, o uso sem necessidade de sua autorização pelos autores/titulares. Afirma Eliane Y. Abrão que "o rol das obras que independem de prévia autorização do autor para seu uso público é taxativo, porque a limitação é uma exceção à regra geral, e no dia que o legislador deixar de considerá-la como tal, passará automaticamente a demandar a autorização prévia para seu uso." [18]

Vale ressaltar que "não se pode deixar de lamentar a ganância dos inspiradores da lei na limitação destas faculdades, esquecendo finalidades sociais, culturais, humanitárias e outras que mereciam ser acariciadas. Fica assim a lei brasileira muito aquém de leis estrangeiras. Tudo proíbe, com a preocupação de evitar fraudes ou diminuição de lucros." [19]

De acordo com o permissivo legal anteriormente referido, é facultada a citação de trechos de obras em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação com o intuito de estudo, crítica ou polêmica; a compilação das lições ministradas em estabelecimentos de ensino por quem as recebeu para uso pessoal; a veiculação de obras em estabelecimentos comerciais a título de demonstração dos produtos ali vendidos bem como para uso familiar ou para fins didáticos, entre outras licenças.

Aquilo que o autor hoje produz advém do seu contexto sócio-cultural, juntamente com o que ele consegue acessar da produção intelectual de um mundo globalizado e virtual, em muito diferente da ocasião do surgimento dos diferentes marcos legais internacionais e nacionais afetos ao Direito de Autor, ainda que em menor proporção no que se refere à atual lei autoral brasileira, a qual em 1998 já previa a fixação da obra em suporte tangível ou intangível como forma de ir ao encontro da nova realidade digital.

No entanto, era e continua sendo a coletividade a origem e o destino da produção intelectual, a qual, em última análise, visa justamente à evolução da sociedade no sentido do seu bem-estar psicológico e material. Para Alessandra Tridente, a ratio hodierna do direito autoral – as premissas ideológicas que o fundamentam e justificam "é a crença da sociedade moderna no valor do aperfeiçoamento humano constante, mediante o progresso contínuo das ciências e das artes." [20] E para que tal aconteça, impõe-se que a protetividade autoral não se torne um empecilho, configurando até mesmo abuso de direito.

2.3 O acesso da coletividade às obras autorais e sua relevância na atualidade

O progresso social, acelerado pelo desenvolvimento tecnológico e pelo crescimento demográfico no Brasil e no mundo a partir da segunda metade do século XX, colocou em evidência que os direitos de segunda geração – direitos econômicos, sociais e culturais, calcados no princípio constitucional da isonomia, necessitavam atender com maior abrangência uma coletividade ansiosa por exercer plenamente sua cidadania. Surgem os direitos de terceira geração para reforçar a noção do coletivo a partir dos direitos da solidariedade – direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente, baseados no princípio da fraternidade; inclusive os direitos de quarta geração, como o direito à democracia, à informação e ao pluralismo ganham preponderância na atualidade.

A sociedade como um todo é alvo de preocupação e regulação pelo Estado, já que a própria existência e sobrevivência de cada pessoa humana dependem da manutenção do meio social. Nesse sentido, adquire fundamental importância o papel do Direito, cujo fim é coibir os atos humanos prejudiciais ao convívio social e ao mesmo tempo estimular aqueles socialmente esperados, não esquecendo que ele se adapta às novas exigências sociais, em constante mutação. Exemplo concreto de tais circunstâncias é a trajetória percorrida pelo direito constitucional brasileiro, com destaque para a contribuição da Constituição de 1988 no sentido da redemocratização do país – porque não há pleno acesso sem democracia. Nas palavras de Luis Roberto Barroso: "uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços." [21]

A revolução tecnodigital vivida no Brasil nos últimos vinte anos a partir do surgimento/disseminação da rede mundial de computadores e das novas mídias digitais implica a ampliação da chamada sociedade da informação, reforçando a magnitude do coletivo. Os novos processos de comunicação interferem na produção e fruição dos bens intelectuais, gerando o chamado paradigma digital, que reinicia as discussões em torno da regulamentação jurídica dos direitos autorais tendo como fundo a dicotomia individual–coletivo. Nesse sentido, adquirem relevância os direitos sociais, em especial os culturais estabelecidos na Ordem Constitucional da Cultura: "A Constituição estatui que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, (...)" [22], refletindo o fato de que toda mudança tecnológica implica numa alteração comportamental do grupo social, e consequentemente, jurídica.

Para José Afonso da Silva, "a Constituição de 1988 deu relevante importância à cultura, tomado esse termo em sentido abrangente da formação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do espírito humano (...)" [23] Assente no princípio constitucional da universalidade, os direitos constitucionais culturais elencados no artigo 215 – direito à criação cultural e ao acesso às fontes da cultura nacional, entre outros - são garantidos a todos (mais uma vez o foco repousa sobre a coletividade), fazendo prevalecer o entendimento de que a cultura é fator fundamental para a identidade, ação e memória de um povo. [24] Nesse contexto, o Direito de Autor deve ser encarado como um meio de promoção do incremento cultural, econômico e tecnológico da sociedade, transformando-se em instrumento de política cultural que deve viabilizar a participação do maior número possível de indivíduos no processo cultural, pois não há como pensar em sociedade desenvolvida sem pensar em cultura ou educação, e as obras intelectuais são fundamentais para a disseminação da informação e da cultura.

Malgrado a evolução histórica do Direito de Autor o identifique como direito predominantemente individual – tanto de proteção do criador quanto do investimento dos titulares derivados -, refletido inclusive no largo prazo de proteção da obra até que entre em domínio público (conforme abordado no item 2.2 deste artigo), entende Guilherme Carboni que "a exacerbação da apropriação privada da informação pelo direito de autor (...) pode levar a uma redução das experiências culturais, tornando os recursos culturais artificialmente escassos (...)" [25]. Para aquele autor, o ordenamento jurídico somente poderá cumprir seu objetivo se considerar o ambiente social no qual o indivíduo está inserido, o que pode levar à aplicação de limitações ao direito de autor nas circunstâncias em que o interesse social deva prevalecer. [26] Obviamente que deverão estar previstas alternativas compensatórias para os criadores, sob pena da ponderação de valores afastar-se da razoabilidade e do bom-senso.

É inegável que a rede mundial de computadores e a expansão dos meios tecnológicos (a cópia digital, o compartilhamento de arquivos de diferentes computadores ao mesmo tempo, por exemplo) na educação, na investigação científica, nas empresas e na comunicação pública e privada em geral resultaram na coletivização do saber – o mundo atual vive a era da comunicabilidade de todos para todos. Não só aumentou o acesso dos indivíduos à informação e à cultura e, por conseguinte, o fortalecimento da sua cidadania, mas também a própria maneira de realizar-se a criação intelectual foi alterada: a surgem as chamadas obras multimídia, caracterizadas pela reunião de textos, imagens e sons em suporte informático.

As criações – originalmente digitais (criadas individualmente ou de forma colaborativa [27]) ou não digitais circulam na rede mundial de computadores e são transferidas entre computadores diretamente por pen drives ou similares, levando a uma democratização da criatividade que coloca em causa o modus operandi do direito autoral [28], fazendo recrudescer o debate hodierno sobre sua revisão. Constata Alessandra Tridente que "a cultura contemporânea é marcada pelo aparecimento de uma nova proposta de autor e obra, em que a imagem romântica do escritor solitário (autor) e dos romances que produzia (obra) progressivamente cede à imagem de DJs de clubes noturnos (novo autor) e das músicas eletronicamente remixadas que produzem (nova obra)." [29]

A nova realidade virtual é identificada com uma interatividade extrema entre os indivíduos, e a tal ponto, que gerou um novo conceito: o da exclusão digital. O indivíduo que não tem acesso a computadores e à rede mundial é analfabeto digital, o que prejudica a comunicação e o exercício da inteligência coletiva, e é essa a motivação que fomenta as ações governamentais concretizadas com intuito da capacitação de escolas e comunidades carentes. Para Guilherme Carboni, a exclusão digital não está somente relacionada à questão da dificuldade de reduzir a exclusão social, mas à "(...) necessidade de maior liberdade de criação e fruição de bens intelectuais, o que remete à questão da rigidez na estruturação do direito de autor." [30]

Não é mais possível na atualidade tratar-se as questões públicas em torno do direito autoral sem abordar sua rigidez. Nas palavras de Ronaldo Lemos, "(...) se alguém pretende utilizar aquela obra, tem de pedir autorização prévia (...) os custos de transação envolvidos na obtenção dessa autorização prévia restringem de forma brutal a quantidade de cultura que uma determinada sociedade tem disponível para acesso em um determinado tempo." [31]

Um novo modelo de licenças jurídicas - o Creative Commons [32]- surgiu no meio norte-americano e disseminou-se no mundo, inclusive no Brasil. Este projeto é voltado para a superação das dificuldades de acesso e utilização das obras intelectuais determinadas pelo arcabouço jurídico autoral tradicional e foi concebido a título de reforço da importância da livre circulação dos bens culturais na sociedade. Iniciativa do Prof.Lawrence Lessig sediada na Universidade de Stanford, seu escopo volta-se para a propositura de licenças públicas fundamentadas nas prerrogativas legalmente instituídas que o autor possui no sentido de permitir o acesso às suas obras, autorizando o uso não só no sentido da reprodução mas também da adaptação, o que resutará em novas criações. Essas licenças têm diferentes alcances, que podem ser basicamente resumidos na possibilidade de cópia e utilização das obras por terceiros sem maiores entraves burocráticos ou legais.

O embate entre os interesses coletivos e individuais no campo autoral foi um dos motivos que evidenciou a necessidade de regulação do setor, mote da criação do Fórum Nacional de Direito Autoral em 2007 pelo Ministério da Cultura, voltado para "debates públicos sobre direitos autorais e a criação de um órgão estatal capaz de regular os direitos autorais, atuar na resolução de conflitos na gestão coletiva e garantir o acesso universal aos bens e serviços culturais." [33]

Composto de diversos Seminários ocorridos desde 2008 sob diferentes temas, o fórum foi concebido como um espaço de compilação de subsídios para formulação da política autoral, redefinindo o papel do Estado no setor. Em decorrência dos debates, colocou-se em pauta a necessidade de revisão da legislação autoral com o intuito de "(...) promover o equilíbrio de direitos entre todos envolvidos; ampliar e democratizar o acesso da população aos bens e serviços culturais; sintonizar a legislação com os novos paradigmas estabelecidos pelo ambiente digital" [34], o que tem gerado bastante polêmica no meio autoral. Aliás, a necessidade de revisão da LDA no sentido de possibilitar-se o acesso da coletividade aos bens intelectuais já em 2005 foi discutida através da Carta de São Paulo [35], uma iniciativa de diferentes segmentos da sociedade civil liderada pelos meios acadêmicos focada na disponibilização e acesso digital à literatura científica financiada por recursos públicos direta ou indiretamente.

Destarte a relevante constatação de que o mundo globalizado exige que o interesse da coletividade seja considerado em igualdade jurídica com os direitos individuais, estes últimos não podem ser esquecidos, sob pena da ponderação de valores não ser razoável e proporcional, escapando, portanto, à concretização da justiça e equidade. É por isso que os defensores da revisão da LDA pleiteiam a harmonização dos direitos autorais, e não sua mera flexibilização, conforme apresentado no item 2.4 deste artigo. Ademais, há distintas sugestões de alternativas remuneratórias para os criadores, abordadas no item 2.5 deste artigo.

2.4 A aplicabilidade do princípio constitucional da função social da propriedade como medida de ponderação para pacificação no meio autoral

O conflito de interesses em torno dos direitos autorais no Brasil torna premente rever o funcionamento do sistema normativo respectivo, pois nos termos em que atualmente decorre a utilização das novas tecnologias digitais, há contínua violação da LDA por uma parte significativa da população do país. Declara Alessandra Tridente que "levada a sério a lei, o resultado seria punição e encarceramento de milhares de pessoas. A ilegalidade generalizada impõe à comunidade jurídica o desafio de repensar as normas de direito autoral (...)". [36]

O reequacionar do marco legal autoral deve ser considerado sob o manto do constitucionalismo moderno, tendo em conta que contemporaneamente impera a força normativa da Constituição e a expansão de sua jurisdição, resultando no processo da constitucionalização do Direito, o qual obriga o intérprete a analisar quaisquer colisões de interesses à luz dos princípios constitucionais que os regem.

É no âmbito do neoconstitucionalismo que os princípios – normas que consagram valores - adquirem preponderância, concretizando a reaproximação entre ética e Direito. E como o sistema é dialético, há atribuição de dimensão de peso a cada princípio envolvido sem afastamento de nenhum, efetivando-se a chamada ponderação de valores, fundamental na análise e resolução de um caso concreto. Através dessa técnica, o intérprete: "(i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional." [37]

Os princípios constitucionais regentes do direito de autor e do direito da coletividade foram abordados no item 2.1 deste artigo, resumindo-se em termos gerais: em relação ao direito de autor, à liberdade de expressão e à igualdade na vertente patrimonial expressa pelo direito de propriedade; no que concerne ao direito da coletividade, à solidariedade e à universalidade expressas nos direitos coletivos e nos direitos culturais em específico, assentes na democratização do acesso à informação, à cultura e aos bens culturais.

Partindo-se do princípio instrumental da razoabilidade como conceito-chave na ponderação de valores, à qual deve-se agregar o princípio da proporcionalidade, sem se esquecer a necessidade concessões recíprocas, prospera sob a égide do princípio da função social da propriedade o entendimento de que para que haja livre acesso aos bens culturais deve prevalecer o interesse da coletividade em circunstâncias que configurem justificativas sociais para tal, como educação, ensino e difusão da cultura. Nesse contexto, merece destaque o direito de propriedade, na medida em que nele repousa o maior ou menor grau de acesso da coletividade às obras intelectuais produzidas pelos autores.

A propriedade autoral é uma propriedade especial, na medida em que compreende faculdades morais e patrimoniais, tal como analisado no item 2.2 deste artigo. No entanto, o direito de autor não nasceu como direito de propriedade, e sim como política governamental voltada para uma indústria que tratava os bens intelectuais sob o prisma do domínio político-intelectual e da sua utilidade econômica [38]. Somente com a evolução histórica, o direito de autor foi encarado como um direito natural, o que incluía o exercício do direito de propriedade pelos criadores, na medida em que deveria ser encarado como um fato natural o autor poder dispor daquilo que criou, inclusive como forma de estímulo ao seu labor.

Inicialmente encarada como uma relação de caráter absoluto, natural e imprescritível entre coisa e pessoa, a propriedade e o conjunto de normas que a enformam - em especial as constitucionais - não podem mais ser considerados sob um prisma individualista, já que seu fim é assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Observa José Afonso da Silva a propósito da propriedade: "embora prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado (...)" [39]. Para aquele autor, há que distinguir a estrutura do direito de propriedade do seu exercício (que pode ser limitado, como no caso do poder de polícia inerente à servidão administrativa ou a desapropriação em razão do interesse público). Na primeira encontra-se a função social, "elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens" [40] que não se restringe ao cerceamento de tais modos, mas antes representa uma transformação positiva ao serviço do desenvolvimento social uma vez que impõe comportamentos positivos em benefício do outro.

A função social da propriedade aplicada ao direito de autor deve ser entendida no contexto da quarta dimensão dos direitos fundamentais – direito à informação, ao pluralismo e à democracia, e deve ser utilizada como garantia de um melhor equilíbrio entre os direitos individuais conquistados pelos autores e o direito de acesso da coletividade à cultura e à informação, afirmando-se o instituto autoral como instrumento imprescindível ao desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, tal como entende Guilherme Carboni.

De resto, a função social do direito autoral é regulada nas declarações e tratados internacionais expressamente ou mediante a utilização da chamada Regra dos três passos [41](Fair use),que condiciona o uso de obra protegida ao atendimento de três circunstâncias: "a) que a reprodução em si (...) não constitua a razão de ser da obra nova; b) (...) se alguém desejar comprar um livro sobre Picasso não deixe de comprá-lo para adquirir o de um crítico que reproduz inúmeras telas do pintor (...); c) que não cause a obra nova prejuízo injustificado aos autores (...)". [42]

Considera-se, assim, que o direito autoral deve ser analisado sob a sua dimensão social porque as obras geradas pelo indivíduo criador e que circulam através deste ou do titular investidor ajudam a preservar e fortalecer a própria identidade do grupo social, constituindo seu patrimônio artístico e cultural. Por isso a própria coletividade tem interesse no reconhecimento da autoria dos seus integrantes, mantendo-se, portanto, o núcleo essencial do direito moral – o direito de paternidade da obra. Ademais, se informação equivale à remoção de incertezas, como entende Guilherme Carboni, quanto mais bem informada é a sociedade, maior é o espaço público democrático e maior a concretude da defesa da dignidade da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito como busca ser o Estado brasileiro. Portanto, função social e dignidade humana relacionam-se estreitamente sob o prisma da solidariedade.

As circunstâncias específicas nas quais deverá prevalecer o interesse coletivo no acesso aos bens culturais podem variar consoante os grupos sociais diretamente nelas envolvidos, porém a partir do estudo da Carta de São Paulo e dos pontos da proposta de revisão da LDA elaborada pelo Ministério da Cultura, é possível considerar em termos gerais os seguintes aspectos: cópia integral para uso privado e não comercial, aqui entendido como uso com fins didáticos, informativos, de pesquisa ou como recurso criativo, principalmente em situações de interoperabilidade e esgotamento da obra; reprodução realizada por bibliotecas, arquivos, museus e cinematecas para preservação e arquivamento sem finalidade comercial; licenciamento compulsório de obras relacionadas à educação e cultura em que é impossível identificar ou localizar o autor ou titular (obras órfãs) e de livros esgotados ou em quantidade insuficiente para atender à demanda da coletividade. Esse licenciamento dar-se-á através da criação do instituto da licença não-voluntária, entendido como instrumento para garantir a completa implementação do artigo 215 da Magna Lei.

Cumpre assinalar que a praxe acadêmica de reprodução de capítulos de livros ou artigos científicos para uso privado de estudantes e sem intuito de lucro foi objeto de resolução da Universidade de São Paulo ainda em 2005: a resolução 5213 de 02/06/2005 visou à regulamentação da LDA no âmbito da universidade por entenderem que a aplicação literal da lei autoral perturbava o bom andamento do ensino e da pesquisa naquela universidade.

A penetração do debate autoral hodierno na esfera do judiciário é ainda acentuadamente tímida. A partir da pesquisa jurisprudencial efetuada, constata-se que as decisões são baseadas na interpretação da LDA, o que reforça a afirmação de Guilherme Carboni: "Como a função social do direito é, antes de tudo, uma maneira de interpretar o direito, tendo em vista a obtenção de soluções mais adequadas a situações novas, cabe ao judiciário brasileiro começar a aplicar o princípio da função social da propriedade ao direito de autor, nos casos que o justifiquem (...)". [43]

Em voto proferido no âmbito do Recurso Especial nº 700.240 – RS (2004/0155891-6) tendo como Recorrente o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) e como Recorrido o Município gaúcho de Santo Ângelo, o Ministro Relator Honildo Amaral de Mello Castro referiu que "após a edição da Lei nº 9.610/98, a jurisprudência desta Corte Superior já sedimentou o entendimento de que ainda que os espetáculos musicais tenham sido realizados sem cobrança de ingressos, em caráter cultural popular, são devidos direitos autorais aos titulares das obras musicais. No caso em análise, houve a execução de obras musicais durante o Carnaval de Rua de 1.999, de cunho gratuito, promovido pelo município recorrido." [44]

Na mesma linha, o trecho do voto do eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito no âmbito do Recurso Especial nº 410.734-SP (2002/0014121-7), Recorrente Arthur Lundgren Tecidos SA (Casas Pernambucanas), Recorrido Editora Musical Arlequim Ltda: "É possível ocorrer violação aos direitos morais e não ocorrer violação aos direitos patrimoniais, tal e qual estes podem ser violados e aqueles não. Os patrimoniais estão vinculados ao direito do autor de "utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica", dependendo de sua expressa autorização a utilização por quaisquer das modalidades (...)". [45]

A sua vez, parte do voto do Relator Des.Marcos Alcino de Azevedo Torres do TJRJ em sede do Agravo de Instrumento nº 2007.002.30274, Agravante TV Ômega Ltda, Agravada Globo Comunicações e Participações SA: "Logicamente, as empresas televisivas merecem proteção em sua liberdade de informação e de publicação de notícias e dados do interesse da população. (...) a reprodução de pequenos trechos da obra será admitida desde que não cause prejuízo injustificado aos interesses do autor. [46]

A única decisão favorável à derrogação das faculdades autorais encontrada foi a do Des.Carlos Stroppa do TJSP, em desfecho decisório proferido em sede da Apelação Cível com Revisão nº 480.378-4/SP, Apelante Irmãos Vitale SA, Apelado Sopave SA: "Depreendo do conjunto probatório que os pequenos trechos das composições musicais foram utilizados como fundo e com o intuito de fazer uma paródia, em período carnavalesco. A reprodução das composições musicais não foi o objeto do comercial, não prejudicou sua exploração normal e sequer causou prejuízo à autora (...)" [47]

De acordo com a pesquisa e análise realizadas, o caminhar jurisprudencial em torno da LDA ainda tem um longo caminho a percorrer, porém é inegável que esse caminho tem que levar em consideração a função social do direito autoral.

2.5 O alcance da justiça e equidade no âmbito do Direito de Autor no Brasil do século XXI

O núcleo substancial do regime democrático vigente no Brasil neste início de século XXI é composto do binômio direitos fundamentais-ordem social. E para que tal binômio se concretize o Direito tem um papel fundamental, regulando as relações entre os diferentes grupos sociais, de modo a assegurar a todos uma existência digna. No campo autoral, a garantia da preservação da dignidade da pessoa humana passa por salvaguardar os interesses dos criadores, cerne do patrimônio cultural da coletividade, embora essa proteção não possa resultar em um individualismo exacerbado.

Ressalte-se que hoje a proteção da LDA em relação aos autores em inúmeras ocasiões é letra morta - o modelo instituído é desfavorável ao criador (particularmente o desconhecido ou periférico), pois ele cede seus direitos patrimoniais de forma definitiva e jamais tem outra oportunidade de explorar economicamente sua criação.

É inconteste que a rede mundial de computadores e a tecnologia digital abalaram o modelo de comercialização dos bens culturais impactando diretamente no modelo negocial da indústria cultural e de entretenimento. Porém não se pode negar que essa mesma realidade possibilitou a divulgação de quaisquer criações diretamente do produtor para o consumidor final através das redes sociais.

Pessoas que antes não alcançavam a transposição das barreiras de acesso ao mercado criativo agora conseguem nele ingressar e inclusive obter retorno econômico, o que representa uma alternativa remuneratória - "Quanto mais ouvido e conhecido um artista, maior é o consumo de produtos conexos a ele, nos mais diversos âmbitos." [48] Inúmeros são os relatos de artistas que se tornaram conhecidos do grande público graças à divulgação do seu trabalho em endereços eletrônicos como o YouTube. [49]

Como forma de alcance da justiça e equidade no caso concreto do direito de autor, atendendo-se a criadores, investidores e coletividade, diferentes propostas têm sido relatadas pelos doutrinadores, algumas inclusive refletidas na proposta do governo em relação à revisão da Lei 9610/98. [50]

Ronaldo Lemos, em sua obra, aborda modelos alternativos distintos, ora com o Estado em papel preponderante - "criação de um modelo de incentivo à produção intelectual, inicialmente voltado para música e filmes, gerido pelo Estado, que se encarregaria de coletar os fundos necessários na sociedade e repassá-los aos criadores." [51], ora com a sociedade civil à frente do sistema remuneratório: "criação de "cooperativas" como forma de implementação. Essas cooperativas agregariam autores e produtores de conteúdo, por exemplo, musical, que constituiriam uma relação próxima com seus fãs, a ponto de envolvê-los na própria remuneração e financiamento da produção artística." [52] Refere o autor que qualquer estruturação de sistema de arrecadação deve ser pautada obviamente nas tecnologias digitais disponíveis e baseada no registro das obras.

Outros doutrinadores aventam diferentes hipóteses remuneratórias, a saber: a remuneração coletiva, através da qual as instituições envolvidas pagam um montante global como compensação pela reprografia; a cobrança sobre o usuário final da cópia, taxada de forma unitária; a taxação de hardware e mídias digitais.

Em qualquer circunstância, é cristalino que a presença de um órgão responsável pela política autoral terá um papel relevante na implementação de qualquer uma das opções estudadas, funcionando como fator de regulação e fiscalização de um novo sistema de arrecadação e distribuição de direitos autorais. Aliás, esse entendimento não é novidade, já que é ele o motivador da criação das inúmeras agências reguladoras que atuam nos setores públicos fundamentais. Para tal, é primordial assumir que a cultura é tão importante quanto a energia elétrica, as telecomunicações ou o petróleo, até porque a "economia da cultura no Brasil já responde por cerca de 5% do universo de trabalhadores, apesar da informalidade ainda muito presente." [53] Em busca da concretização dessa noção de cultura como estratégia de desenvolvimento encontra-se na Câmara dos Deputados o projeto de lei 6.722/2010 que cria o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura. [54]

Sobre a autora
Alessandra Silveira de Moraes

Servidora pública da Fundação Biblioteca Nacional lotada no Escritório de Direitos Autorais.bacharelando do curso de Direito na Universidade Estácio de Sá - RJ: Campus Menezes Côrtes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Alessandra Silveira. A protetividade do direito de autor em face do acesso da coletividade aos bens culturais no Brasil do século XXI. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2623, 6 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17334. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

Texto elaborado sob a orientação das professoras Izabel Leventoglu e Angela Barral.

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