3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente artigo buscou-se evidenciar o conflito atual entre o marco legal autoral em vigor e a necessidade de acesso aos bens culturais pela coletividade com base nos princípios constitucionais inerentes a cada corrente, ponderando valores e definindo a prevalência da coletividade a partir da aplicação do princípio da função social da propriedade em circunstâncias específicas que resultem no estímulo ao desenvolvimento sócio-econômico da população brasileira em geral.
Não se pode esquecer que a obra autoral representa mais que apenas os interesses individuais dos seus criadores, pois ela reflete os pensamentos, comportamentos, expressividades do grupo social do qual emerge, incorporando-se de tal forma àquela sociedade, que ajuda a construir sua própria identidade, tornando-se símbolo de expressão coletiva.
Alessandra Tridente considera o direito autoral paradoxal, pois é, ao mesmo tempo, um direito-incentivo e um direito-custo para a atividade criativa. Se dois artistas desconhecidos decidirem criar algo a partir de uma obra de um terceiro que não se encontra em domínio público terão que transpor barreiras que representam embaraço ao progresso das ciências e das artes.
As discrepâncias entre as classes sociais antes encaradas como herança histórica refletida na ordem normativa brasileira – a noção do direito de propriedade como direito absoluto – tem um novo foco: a prevalência do interesse coletivo sobre o individual para que se atinja maior pacificação social, objetivo último da Ciência do Direito. Demonstra-se, assim, que nenhum direito é perpétuo, assim como nenhuma circunstância social é estática. Emerge a noção da função social da propriedade como princípio constitucional fundamental que deve regular as relações dos indivíduos e instituições.
Certamente, a evolução tecnodigital vivida no final do século XX e início deste século, em especial o aprimoramento da rede mundial de computadores, contribuiu para a percepção da importância da coletividade enquanto organismo autônomo. No entanto, o impacto da inovação tecnológica sobre o direito de autor não é propriamente uma novidade, podendo-se mesmo considerar que a tecnologia está na gênese daquele direito, já que a prensa de Gutenberg possibilitou a reprodução de obras escritas em escala.
Ao reiterar-se o entendimento da prevalência do acesso da coletividade aos bens culturais com base na função social da propriedade autoral, tem-se a demonstração da própria evolução da sociedade brasileira ao longo do século XX, quando os direitos sociais adquiriram relevância. Apesar da crescente eficácia, é patente que a proteção aos direitos sociais ainda é frágil numa sociedade como a brasileira, e, portanto, é imprescindível rever as circunstâncias que a afastam da busca do pleno desenvolvimento. De resto, este é um entendimento presente nos mais diferentes países, restando inequívoca que na atual Sociedade da Informação deve prevalecer o acesso à informação e à cultura, inclusive no que se refere ao direito de autor, desde que respeitadas as circunstâncias peculiares de cada caso.
Por conta das considerações expostas, conclui-se que se deve aplicar ao direito de autor a função social da propriedade e dos contratos, assumindo regras concretas para acessibilidade da coletividade a fim de esta possa fruir dos bens culturais, sem, no entanto, esquecer alternativas compensatórias para os criadores, tais como aquelas expostas no item 2.5 deste artigo. O direito de autor não pode fugir aos novos modos de interação cultural e difusão do conhecimento representados pelas novas tecnologias, que, ao democratizarem o acesso à informação e à cultura, contribuem em última análise para uma sociedade mais desenvolvida e, consequentemente, mais próxima da justiça e equidade.
REFERÊNCIAS
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Notas
- BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, p.27, (xérox).
- Ibidem, p. 6.
- Idem. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito ConstitucionalBrasileiro in Revista Diálogo Jurídico, Salvador, Ano I-Vol.I-nº6, 2001, p.21 (xérox).
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 311
- Ibidem, p. 270.
- O art.22 refere taxativamente que os direitos morais e patrimoniais sobre a obra pertencem ao criador.
- COSTA NETTO, José Carlos. Direito Autoral no Brasil. São Paulo: FTD, 2008, p.172.
- Ibidem, p.173
- ABRÃO, Eliane Y. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002, p.43-44.
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p.9.
- A invenção da prensa tornou possível a reprodução de textos impressos em escala muito maior do que até então ocorria na Europa medieval, facilitando a difusão das ideias e criações intelectuais.
- TRIDENTE, Alessandra. Direito Autoral: paradoxos e contribuições para a revisão da tecnologia jurídica no século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p.3-7.
- WILLINGTON, João; OLIVEIRA, Jaury N. de. A Nova Lei Brasileira de Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.8.
- ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.18.
- Ibidem, p.12.
- Cf. art.19, L.9610/98 c/c art.17, L5988/73.
- WILLINGTON; OLIVEIRA, op. cit., p.19.
- ABRÃO, op. cit., p.146.
- ASCENSÃO, José de Oliveira apud TRIDENTE, op. cit., p.71.
- TRIDENTE, op. cit., p.15.
- BARROSO, Luis Roberto. op. cit.,p.4, (xérox).
- SILVA, José Afonso da. op.cit., p.845
- Ibidem, p.311.
- A eficácia da efetivação dos direitos culturais constitucionais se dá através da implementação do Plano Nacional de Cultura, previsto no §3º do art.215, e que procura, em última análise, a preservação do patrimônio cultural brasileiro – do qual as obras autorais fazem parte - para que se atinja o pleno desenvolvimento social.
- CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p.85.
- Ibidem, p.65.
- O software GNU/Linux e a enciclopédia eletrônica Wikipedia são exemplos de obras colaborativas, pois resultam na intervenção em rede de diferentes indivíduos para os quais a remuneração ou os direitos autorais têm um caráter secundário diante do interesse coletivo.
- A questão central da cópia (e portanto reprodução da obra) no direito autoral é revista: a cópia digital é absolutamente igual ao original – não há perda de qualidade como nos modos de reprodução anteriores, tornando difícil distinguir original de cópia. Entende Guilherme Carboni que, diante dessa realidade, acaba a cópia – somente há original. Desenvolve-se então um novo modelo de socialização – a chamada gift economy: um livro não é mais emprestado, tornando-se temporariamente inacessível para o seu dono, e sim uma cópia do arquivo digital é oferecida de presente, permanecendo aquele dono com sua obra. (CARBONI, op. cit., p.82).
- TRIDENTE, op. cit., p.138.
- CARBONI, op.cit., p.91.
- LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p.83.
- Para saber o que é Creative Commons, consultar: www.creativecommons.org
- Debate sobre a Política e a Lei de Direito Autoral.Disponível em:<http://www.cultura.org.br/site/2010/04/12/debate-direito-autoral/>. Acesso em: 25 abr. 2010.
- ESCLARECIMENTOS à sociedade sobre a revisão da Lei de Direito Autoral. Disponível em:<http://www.cultura.gov.br/ site/2010/04/12/ nota-a-sociedade-sobre-a-revisao-da-lei-de-direito-autoral/>. Acesso em: 25 abr. 2010.
- CARTA de São Paulo pelo Acesso a Bens Culturais. Disponível em:< http://stoa.usp.br/acesso>. Acesso em: 25 abr. 2010
- TRIDENTE, op.cit., p.65.
- BARROSO, op. cit. p.14, (xérox).
- É significativa a retomada na atualidade dessa concepção da criação e da informação como mercadoria valiosa ante a atuação da indústria de bens culturais, que muitas vezes privilegia a exploração econômica das obras em detrimento da valorização dos criadores, contribuindo para a restrição da liberdade de expressão e da circulação das obras.
- SILVA, José Afonso da. op.cit., p.270-271.
- Ibidem, p.284.
- Os passos para uso livre das obras protegidas estão previstos na Convenção de Berna (âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU)), relativa ao direito internacional de autor e da qual o Brasil é signatário. A função social do direito de autor está expressa no TRIPS (Trade-related aspects of intellectual property rights), celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).
- ABRÃO, op. cit., p.151.
- CARBONI, op.cit., p.180.
- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Civil. Recurso Especial. Direito Autoral. Recurso Especial nº 700.240-RS (2004/0155891-6), da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 19 de novembro de 2009.Disponível em:
- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Direitos autorais. Liquidação. Art. 610 do Código de Processo Civil. Direitos morais e direitos patrimoniais. Pedido de indenização ajuizado pela editora e cessionária por utilização não autorizada da obra. Recurso Especial nº 410.734-SP (2002/0014121-7), da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 06 de dezembro de 2002. Disponível em:
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- BRASIL. TJSP. Ação indenizatória. Direitos autorais. Apelação Cível com Revisão nº 480.378-4/SP da Nona Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, 10 de junho de 2008. Disponível em: < http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/resultadoCompleta.do>. Acesso em: 25 abr. 2010.
- LEMOS, op. cit., p.183.
- Caso paradigmático é o da piauiense Stefhany, que a partir da divulgação dos seus videos no YouTube se tornou conhecida a ponto do seu trabalho ser objeto de reportagem em canal aberto de televisão com alcance nacional, o que certamente atraiu mais público para seus shows.
- Cfr. itens "Transparência na gestão" e "Direitos reprográficos" em REVISÃO da Lei de Direito Autoral (Nº 9610/98). Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/2010/04/12/pontos-revisao-lda/>. Acesso em: 25 abr. 2010.
- LEMOS, op.cit., p.174.
- LEMOS, op.cit., p.182.
- MINISTÉRIO DA CULTURA. Material informativo sobre o Projeto de Lei que cria o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura. Brasília, 2010, p. 5.
- Ibidem, p. 5.
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