5. O alcance da justiça e equidade no âmbito do Direito de Autor no Brasil do século XXI
O núcleo substancial do regime democrático vigente no Brasil neste início de século XXI é composto do binômio direitos fundamentais-ordem social. E para que tal binômio se concretize o Direito tem um papel fundamental, regulando as relações entre os diferentes grupos sociais, de modo a assegurar a todos uma existência digna. No campo autoral, a garantia da preservação da dignidade da pessoa humana passa por salvaguardar os interesses dos criadores, cerne do patrimônio cultural da coletividade, embora essa proteção não possa resultar em um individualismo exacerbado.
Ressalte-se que hoje a proteção da LDA em relação aos autores em inúmeras ocasiões é letra morta - o modelo instituído é desfavorável ao criador (particularmente o desconhecido ou periférico), pois ele cede seus direitos patrimoniais de forma definitiva e jamais tem outra oportunidade de explorar economicamente sua criação.
É inconteste que a rede mundial de computadores e a tecnologia digital abalaram o modelo de comercialização dos bens culturais impactando diretamente no modelo negocial da indústria cultural e de entretenimento. Porém não se pode negar que essa mesma realidade possibilitou a divulgação de quaisquer criações diretamente do produtor para o consumidor final através das redes sociais.
Pessoas que antes não alcançavam a transposição das barreiras de acesso ao mercado criativo agora conseguem nele ingressar e inclusive obter retorno econômico, o que representa uma alternativa remuneratória - "Quanto mais ouvido e conhecido um artista, maior é o consumo de produtos conexos a ele, nos mais diversos âmbitos." 48 Inúmeros são os relatos de artistas que se tornaram conhecidos do grande público graças à divulgação do seu trabalho em endereços eletrônicos como o YouTube. 49
Como forma de alcance da justiça e equidade no caso concreto do direito de autor, atendendo-se a criadores, investidores e coletividade, diferentes propostas têm sido relatadas pelos doutrinadores, algumas inclusive refletidas na proposta do governo em relação à revisão da Lei 9610/98. 50
Ronaldo Lemos, em sua obra, aborda modelos alternativos distintos, ora com o Estado em papel preponderante - "criação de um modelo de incentivo à produção intelectual, inicialmente voltado para música e filmes, gerido pelo Estado, que se encarregaria de coletar os fundos necessários na sociedade e repassá-los aos criadores." 51, ora com a sociedade civil à frente do sistema remuneratório: "criação de "cooperativas" como forma de implementação. Essas cooperativas agregariam autores e produtores de conteúdo, por exemplo, musical, que constituiriam uma relação próxima com seus fãs, a ponto de envolvê-los na própria remuneração e financiamento da produção artística." 52 Refere o autor que qualquer estruturação de sistema de arrecadação deve ser pautada obviamente nas tecnologias digitais disponíveis e baseada no registro das obras.
Outros doutrinadores aventam diferentes hipóteses remuneratórias, a saber: a remuneração coletiva, através da qual as instituições envolvidas pagam um montante global como compensação pela reprografia; a cobrança sobre o usuário final da cópia, taxada de forma unitária; a taxação de hardware e mídias digitais.
Em qualquer circunstância, é cristalino que a presença de um órgão responsável pela política autoral terá um papel relevante na implementação de qualquer uma das opções estudadas, funcionando como fator de regulação e fiscalização de um novo sistema de arrecadação e distribuição de direitos autorais. Aliás, esse entendimento não é novidade, já que é ele o motivador da criação das inúmeras agências reguladoras que atuam nos setores públicos fundamentais. Para tal, é primordial assumir que a cultura é tão importante quanto a energia elétrica, as telecomunicações ou o petróleo, até porque a "economia da cultura no Brasil já responde por cerca de 5% do universo de trabalhadores, apesar da informalidade ainda muito presente." 53 Em busca da concretização dessa noção de cultura como estratégia de desenvolvimento encontra-se na Câmara dos Deputados o projeto de lei 6.722/2010 que cria o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura. 54
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente artigo buscou-se evidenciar o conflito atual entre o marco legal autoral em vigor e a necessidade de acesso aos bens culturais pela coletividade com base nos princípios constitucionais inerentes a cada corrente, ponderando valores e definindo a prevalência da coletividade a partir da aplicação do princípio da função social da propriedade em circunstâncias específicas que resultem no estímulo ao desenvolvimento sócio-econômico da população brasileira em geral.
Não se pode esquecer que a obra autoral representa mais que apenas os interesses individuais dos seus criadores, pois ela reflete os pensamentos, comportamentos, expressividades do grupo social do qual emerge, incorporando-se de tal forma àquela sociedade, que ajuda a construir sua própria identidade, tornando-se símbolo de expressão coletiva.
Alessandra Tridente considera o direito autoral paradoxal, pois é, ao mesmo tempo, um direito-incentivo e um direito-custo para a atividade criativa. Se dois artistas desconhecidos decidirem criar algo a partir de uma obra de um terceiro que não se encontra em domínio público terão que transpor barreiras que representam embaraço ao progresso das ciências e das artes.
As discrepâncias entre as classes sociais antes encaradas como herança histórica refletida na ordem normativa brasileira – a noção do direito de propriedade como direito absoluto – tem um novo foco: a prevalência do interesse coletivo sobre o individual para que se atinja maior pacificação social, objetivo último da Ciência do Direito. Demonstra-se, assim, que nenhum direito é perpétuo, assim como nenhuma circunstância social é estática. Emerge a noção da função social da propriedade como princípio constitucional fundamental que deve regular as relações dos indivíduos e instituições.
Certamente, a evolução tecnodigital vivida no final do século XX e início deste século, em especial o aprimoramento da rede mundial de computadores, contribuiu para a percepção da importância da coletividade enquanto organismo autônomo. No entanto, o impacto da inovação tecnológica sobre o direito de autor não é propriamente uma novidade, podendo-se mesmo considerar que a tecnologia está na gênese daquele direito, já que a prensa de Gutenberg possibilitou a reprodução de obras escritas em escala.
Ao reiterar-se o entendimento da prevalência do acesso da coletividade aos bens culturais com base na função social da propriedade autoral, tem-se a demonstração da própria evolução da sociedade brasileira ao longo do século XX, quando os direitos sociais adquiriram relevância. Apesar da crescente eficácia, é patente que a proteção aos direitos sociais ainda é frágil numa sociedade como a brasileira, e, portanto, é imprescindível rever as circunstâncias que a afastam da busca do pleno desenvolvimento. De resto, este é um entendimento presente nos mais diferentes países, restando inequívoca que na atual Sociedade da Informação deve prevalecer o acesso à informação e à cultura, inclusive no que se refere ao direito de autor, desde que respeitadas as circunstâncias peculiares de cada caso.
Por conta das considerações expostas, conclui-se que se deve aplicar ao direito de autor a função social da propriedade e dos contratos, assumindo regras concretas para acessibilidade da coletividade a fim de esta possa fruir dos bens culturais, sem, no entanto, esquecer alternativas compensatórias para os criadores, tais como aquelas expostas no item 5 deste artigo. O direito de autor não pode fugir aos novos modos de interação cultural e difusão do conhecimento representados pelas novas tecnologias, que, ao democratizarem o acesso à informação e à cultura, contribuem em última análise para uma sociedade mais desenvolvida e, consequentemente, mais próxima da justiça e equidade.
REFERÊNCIAS
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010.
TRIDENTE, Alessandra. Direito Autoral: paradoxos e contribuições para a revisão da tecnologia jurídica no século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
WILLINGTON, João; OLIVEIRA, Jaury N. de. A Nova Lei Brasileira de Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
Notas
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, p.27.
Ibidem, p. 6.
Idem. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito ConstitucionalBrasileiro in Revista Diálogo Jurídico, Salvador, Ano I-Vol.I-nº6, 2001, p. 21.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 311
Ibidem, p. 270.
O art.22 refere taxativamente que os direitos morais e patrimoniais sobre a obra pertencem ao criador.
COSTA NETTO, José Carlos. Direito Autoral no Brasil. São Paulo: FTD, 2008, p.172.
Ibidem, p.173
ABRÃO, Eliane Y. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002, p.43-44.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p.9.
A invenção da prensa tornou possível a reprodução de textos impressos em escala muito maior do que até então ocorria na Europa medieval, facilitando a difusão das ideias e criações intelectuais.
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TRIDENTE, Alessandra. Direito Autoral: paradoxos e contribuições para a revisão da tecnologia jurídica no século XXI. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p.3-7.
WILLINGTON, João; OLIVEIRA, Jaury N. de. A Nova Lei Brasileira de Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.8.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.18.
Ibidem, p.12.
Cf. art.19, L.9610/98 c/c art.17, L5988/73.
WILLINGTON; OLIVEIRA, op. cit., p.19.
ABRÃO, op. cit., p.146.
ASCENSÃO, José de Oliveira apud TRIDENTE, op. cit., p.71.
TRIDENTE, op. cit., p.15.
BARROSO, Luis Roberto. op. cit.,p.4.
SILVA, José Afonso da. op.cit., p.845
Ibidem, p.311.
A eficácia da efetivação dos direitos culturais constitucionais se dá através da implementação do Plano Nacional de Cultura, previsto no §3º do art.215, e que procura, em última análise, a preservação do patrimônio cultural brasileiro – do qual as obras autorais fazem parte - para que se atinja o pleno desenvolvimento social.
CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p.85.
Ibidem, p.65.
O software GNU/Linux e a enciclopédia eletrônica Wikipedia são exemplos de obras colaborativas, pois resultam na intervenção em rede de diferentes indivíduos para os quais a remuneração ou os direitos autorais têm um caráter secundário diante do interesse coletivo.
A questão central da cópia (e portanto reprodução da obra) no direito autoral é revista: a cópia digital é absolutamente igual ao original – não há perda de qualidade como nos modos de reprodução anteriores, tornando difícil distinguir original de cópia. Entende Guilherme Carboni que, diante dessa realidade, acaba a cópia – somente há original. Desenvolve-se então um novo modelo de socialização – a chamada gift economy: um livro não é mais emprestado, tornando-se temporariamente inacessível para o seu dono, e sim uma cópia do arquivo digital é oferecida de presente, permanecendo aquele dono com sua obra. (CARBONI, op. cit., p.82).
TRIDENTE, op. cit., p.138.
CARBONI, op.cit., p.91.
LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p.83.
Para saber o que é Creative Commons, consultar: www.creativecommons.org
Debate sobre a Política e a Lei de Direito Autoral.Disponível em:<https://www.cultura.org.br/site/2010/04/12/debate-direito-autoral/>. Acesso em: 25 abr. 2010.
ESCLARECIMENTOS à sociedade sobre a revisão da Lei de Direito Autoral. Disponível em:<https://www.cultura.gov.br/ site/2010/04/12/ nota-a-sociedade-sobre-a-revisao-da-lei-de-direito-autoral/>. Acesso em: 25 abr. 2010.
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CARTA de São Paulo pelo Acesso a Bens Culturais. Disponível em:<https://stoa.usp.br/acesso>. Acesso em: 25 abr. 2010
TRIDENTE, op.cit., p.65.
BARROSO, op. cit. p.14.
É significativa a retomada na atualidade dessa concepção da criação e da informação como mercadoria valiosa ante a atuação da indústria de bens culturais, que muitas vezes privilegia a exploração econômica das obras em detrimento da valorização dos criadores, contribuindo para a restrição da liberdade de expressão e da circulação das obras.
SILVA, José Afonso da. op.cit., p.270-271.
Ibidem, p.284.
Os passos para uso livre das obras protegidas estão previstos na Convenção de Berna (âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU)), relativa ao direito internacional de autor e da qual o Brasil é signatário. A função social do direito de autor está expressa no TRIPS (Trade-related aspects of intellectual property rights), celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).
ABRÃO, op. cit., p.151.
CARBONI, op.cit., p.180.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Civil. Recurso Especial. Direito Autoral. Recurso Especial nº 700.240-RS (2004/0155891-6), da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 19 de novembro de 2009.Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200401558916&dt_publicacao=14/12/2009>. Acesso em: 25 abr. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Direitos autorais. Liquidação. Art. 610. do Código de Processo Civil. Direitos morais e direitos patrimoniais. Pedido de indenização ajuizado pela editora e cessionária por utilização não autorizada da obra. Recurso Especial nº 410.734-SP (2002/0014121-7), da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 06 de dezembro de 2002. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200200141217&dt_publicacao=10/03/2003>. Acesso em: 25 abr. 2010.
BRASIL. TJRJ. Agravo de Instrumento. Tutela Antecipada. Concorrência desleal e proteção ao Direito Autoral. Exibição de imagens por emissora concorrente a que detém a titularidade do programa. Agravo de Instrumento nº 2007.002.30274 da Décima Sexta Câmara Cível, Rio de Janeiro, RJ, 10 de junho de 2008. Disponível em: https://www.tj.rj.gov.br/scripts/weblink.mgw>. Acesso em: 25 abr. 2010.
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LEMOS, op. cit., p.183.
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Caso paradigmático é o da piauiense Stefhany, que a partir da divulgação dos seus videos no YouTube se tornou conhecida a ponto do seu trabalho ser objeto de reportagem em canal aberto de televisão com alcance nacional, o que certamente atraiu mais público para seus shows.
Cfr. itens "Transparência na gestão" e "Direitos reprográficos" em REVISÃO da Lei de Direito Autoral (Nº 9610/98). Disponível em: <https://www.cultura.gov.br/site/2010/04/12/pontos-revisao-lda/>. Acesso em: 25 abr. 2010.
LEMOS, op.cit., p.174.
LEMOS, op.cit., p.182.
MINISTÉRIO DA CULTURA. Material informativo sobre o Projeto de Lei que cria o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura. Brasília, 2010, p. 5.
Ibidem, p. 5.