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O sentido e o alcance da expressão preceito fundamental: uma construção jurisprudencial

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Agenda 05/11/2010 às 17:15

Nem a Constituição nem a Lei n° 9.882/99 definem o conceito de preceito fundamental ou estabelecem um rol de preceitos fundamentais.

RESUMO: Os preceitos fundamentais são princípios subjacentes à toda ordem constitucional, que contêm valores basilares para o direito pátrio, informando e conformando as relações político-constitucionais. No entanto, nem a constituição nem a Lei n° 9.882/99, que regulamenta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), definem o conceito de preceito fundamental ou estabelecem um rol de preceitos fundamentais a serem garantidos por meio de ADPF. O artigo faz um estudo dos contornos fixados pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para a expressão preceito fundamental, seu sentido e alcance.

PALAVRAS-CHAVES: Preceito Fundamental. Conceito. Sentido. Alcance. Jurisprudência

ABSTRACT: The fundamental precepts are principles underlying to the whole constitucional order, that contain the prominent values that permeate our justice and to which the political and constitutional relationships must comply. However, neither the constitution nor the Law no. 9.882/99, which establishes the procedure for the "allegation of disobedience of fundamental precept", bothered to define the concept or establish a list of fundamental precepts to be guaranteed by means of that constitutional action. The article attempts to set the limits, that is to say, to define the meaning and scope of the expression ‘fundamental precept’ as formulated by the doctrine and by the jurisprudence of our Federal Supreme Court.

KEYWORDS: Fundamental Precept. Concept. Meaning. Scope. Jurisprudence.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O sentido e o alcance da expressão "preceito fundamental". 2.1. Preceito Fundamental na Doutrina 2.1.1. Preceito Fundamental: Conceito. 2.1.2. A arguição de descumprimento de preceito fundamental. 3. Preceito fundamental na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 4. Considerações Finais. 5. The meaning and scope of the expression "fundamental precept": a jurisprudential construction (abstract). 6. Referências Bibliográficas.


1 INTRODUÇÃO

Os preceitos fundamentais subjazem a toda ordem constitucional, consagrando valores basilares para o direito pátrio, informando e conformando as relações político-constitucionais. A importância de tais preceitos é tamanha que a Constituição determinou a sua garantia, subsidiariamente, ou seja, não cabendo outros meios, por ação constitucional própria, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

No entanto, nem a constituição nem a Lei n° 9.882/99, que regulamenta a ADPF, definem o conceito de preceito fundamental ou estabelecem um rol de preceitos fundamentais a serem garantidos por meio de ADPF. Cabe, então, ao Supremo Tribunal Federal a construção jurisprudencial do conceito.

O presente trabalho visa a depreender os contornos fixados pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para a expressão "preceito fundamental", seu sentido e alcance.

Preliminarmente, cumpre esclarecer o significado dos termos preceito e princípio, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Há controvérsia quanto a eventual sinonímia entre os termos, alguns entendendo neste sentido, outros, que preceito seria uma categoria da qual princípio seria uma subclasse, outros, ainda, entendendo que preceito seria sinônimo de regra, em oposição a princípio.

Diante da indeterminação do conceito de preceito fundamental, bem como da omissão dos textos constitucional e legislativo a este respeito, algumas questões importantes se apresentam, como por exemplo, se estariam abrigados neste conceito somente os fundamentos e objetivos da República (arts. 1° a 4° da CRFB); ou se poderiam nele ser incluídos os direitos fundamentais agrupados no art. 5° da CRFB e contemplados ao longo do texto constitucional; ou ainda, se poderíamos incluir no rol também os princípios constitucionais ditos sensíveis (art. 34, VII da CRFB) - aqueles que dão ensejo, em caso de inobservância, à intervenção federal.

O estudo ganha importância diante do crescente uso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental como instrumento de controle concentrado de constitucionalidade, ainda que a indeterminação do conceito dificulte o seu manejo.

Primeiramente, há os princípios sob os quais não paira qualquer controvérsia: aqueles insculpidos nos artigos 1° a 4° da CRFB, ou seja, os fundamentos e objetivos da República, o sistema e regime de governo, as decisões políticas estruturantes.

Há, ainda, aqueles que incluem no rol de preceitos fundamentais os direitos fundamentais do art. 5° e seguintes da CRFB – individuais, coletivos, políticos e sociais, bem como quaisquer outros que estejam contemplados no texto da constituição.

Aumenta, no entanto, o número daqueles que creem estar incluídos na categoria de preceitos fundamentais também os princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII da CRFB). A responsabilidade de definir os limites de tal conceito, no entanto, não é da doutrina, e sim do STF, como tribunal constitucional. A presente pesquisa, portanto, pretende, a partir dos debates e análises contidos na apreciação das ADPFs, verificar o posicionamento do STF, contribuindo, dessa forma, com a discussão acerca da matéria.

O presente trabalho pretende coletar os conceitos de "preceito fundamental"na doutrina e a jurisprudência pátrias, para, ao final, confrontar os resultados e definir o sentido e o alcance de tal expressão no direito constitucional. Com essa finalidade, será empreendida pesquisa bibliográfica, consultando fontes doutrinárias, além de um estudo de julgados pré-selecionados do STF, em sede de ADPF, por representarem de forma mais consistente a visão do tribunal sobre o tema.

Foram propostas, perante o STF, até setembro de 2010, 218 ADPF´s, conforme informação obtida no site do Tribunal. Destas, foram selecionadas para estudo aquelas em cujo bojo foram travados debates relevantes ao tema, ou aquelas cujos preceitos se alegava violados se mostravam relevantes, ou ainda, aquelas cujo tema teve repercussão nacional, como a ADPF 130 (Lei de Imprensa) e 153 (Lei da Anistia).


2 O SENTIDO E O ALCANCE DA EXPRESSÃO "PRECEITO FUNDAMENTAL"

2.1 PRECEITO FUNDAMENTAL NA DOUTRINA

2.1.1 PRECEITO FUNDAMENTAL: CONCEITO

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Há uma lacuna doutrinária sobre o tema, uma vez que ficou a cargo do STF definir o que seja "preceito fundamental". Silva (2008, p.562), ressalta bem que "preceitos fundamentais" não é expressão sinônima de "princípios fundamentais", sendo aquela mais ampla e arangente do que esta, incluindo, em seu bojo,

"[...]todas as prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal, e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais"(itálico no original).

Bastos e Vargas (2000) comemoraram a promulgação da lei n° 9.882/99, considerando que a ADPF veio fiscalizar os "grandes princípios e regras basilares" da Constituição Brasileira, dentre os quais

"podemos de antemão frisar alguns que, dada sua magnitude e posição ocupada na Carta, não deixam dúvidas quanto à caracterização de fundamentais: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais."

Oliveira (2004, p.95) afirma que, segundo a dogmática constitucional, preceitos fundamentais são as "decisões políticas fundamentais", ou seja, "[...]as competências, prerrogativas e funções que são mais caras ao povo, representado pelo poder constituinte originário". O autor faz uma comparação entre constituições de diversos países, para concluir que todas "dão a certas normas uma nota de especial relevância ao associá-las ao núcleo essencial ou fundamental daquela Constituição" – a constituição espanhola de 1978 fala em "valores superiores", a portuguesa, de 1976, em "princípios fundamentais", a doutrina constitucional americana constrói o conceito de "preferred rights".

Quanto à aparente sinonímia entre princípios e preceitos, o autor a afasta, destacando que a doutrina tradicional "associa os preceitos às normas de conduta, concebidas como imperativos positivos ou negativos a serem seguidos pelos seus destinatários", e que, portanto, a correta exegese do §1° do artigo 102 da CRFB deve identificar preceitos com normas jurídicas, "englobando, desta forma, os princípios e as regras".

Veloso (apud OLIVEIRA, 2004, p.105) louva a opção da lei (n° 9.882/99) de não delimitar um rol de preceitos fundamentais, pois entende que uma enumeração taxativa iria de encontro às aspirações do constituinte, que pretendia que a definição do conceito de preceito fundamental tivesse "sua densidade normativa diminuída no decorrer do tempo".

Bastos e Vargas (apud OLIVEIRA, 2004,p.105) consideram temerosa qualquer delimitação exaustiva da categoria dos preceitos fundamentais, afirmando que a doutrina e a jurisprudência devem laborar no sentido de "gizar as diretrizes a serem seguidas na definição de quais seriam estas normas constitucionais".

Oliveira (ibid.) considera importante, no entanto, que se determinem "parâmetros basilares que deverão informar a existência de um núcleo intangível que não poderá escapar à concepção de preceito fundamental", contra Corrêa (apud OLIVEIRA, ibid.), que afirma que "cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição", por ser o "único, soberano e definitivo intérprete" do texto constitucional.

Tavares (2001, p.112) afirma que o conceito de preceito fundamental, "por ser conceito próprio da Constituição[...]só pode ser haurida na própria Carta Suprema". Fundamenta argumentando que a alusão feita pelo art. 102, no atual §1°, à "arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição" sinaliza que para se auferir o conjunto dos preceitos fundamentais é necessária uma análise do próprio corpo da Constituição.

Ademais, acrescenta, trata-se de preceitos considerados constitucionais, consagrados no corpo da Constituição, constando dele expressamente. Considera, ainda, que "andou bem o legislador infraconstitucional ao não dispor acerca de quais seriam os ‘preceitos fundamentais, decorrentes da Constituição’, a merecerem a proteção por meio da arguição de descumprimento", uma vez que, se tentasse fazê-lo, poderia incorrer no erro de reiterar todos os termos constitucionais, para não omitir qualquer possível preceito fundamental, ou de violar a vontade constitucional, interpretando seus termos de forma indevidamente restritiva ou ampla.(ibid, p.113).

Por fim, o autor reconhece que o conceito carece de interpretação, e atribui esta tarefa ao "intérprete e aplicador da Lei Máxima", que há de conduzi-la dentro do âmbito estritamente constitucional. Ressalva, no entanto, que no atual estágio de evolução democrática, o Supremo Tribunal Federal conta também com a discussão judicial e doutrinária sobre temas de grande relevância (ibid, p.114).

No que concerne ao alcance da expressão "preceito", Tavares (ibid.,p.116ss.) busca orientação na filosofia e na etimologia para concluir que a noção de preceito, que se baseia na ideia de "ordem", "mandamento", "comando", engloba tanto as regras quanto os princípios, tornando-se sinônimo de "norma".

Quanto ao significado da "fundamentalidade", o mesmo autor (ibid., p.120) deduz que quando o preceito "apresentar-se como imprescindível, basilar ou inafastável", se considera fundamental. Afasta, entretanto, a possibilidade de que "preceito fundamental" seja toda e qualquer norma contida na vigente Constituição, uma vez que, se assim fosse, a parte final do §1° do art. 102 seria repetitiva, ao mencionar "preceito fundamental decorrente desta Constituição" (p.121).

Conclui o autor que "preceito fundamental" refere-se ao conjunto formado pela

"somatória entre, de uma parte, parcela dos próprios princípios constitucionais (já que nem todos eles são preceitos fundamentais), bem como, de outra parte, das regras cardeais de um sistema constitucional, constituídas, essencialmente, pelo conjunto normativo assecuratório dos direitos humanos" (p.122).

Para compreender o que sejam os preceitos fundamentais, há que se fazer um estudo dos valores incorporados na Constituição. A Constituição brasileira "incorpora um extenso rol de valores" (Tavares, p. 129), ora referidos como fundamentos do Estado (art. 1°), ora como objetivos fundamentais da República (art. 3°), bem como aludir a inúmeros outros de forma difusa.

Citando Loewenstein e Enterría, Tavares situa a proteção aos direitos fundamentais no núcleo essencial do sistema democrático, sendo a proteção à liberdade equivalente à proteção dos "valores superiores do ordenamento", e da própria Constituição, bem como as regras de estruturação do poder político, por serem essenciais a todas as constituições (ibid., p.149/150).

O autor inclui, ainda, no rol de preceitos fundamentais, os "princípios sensíveis", assim entendidos aqueles que "geram a medida excepcional da intervenção federal ou estadual", uma vez que a Constituição lhes atribui "tamanha importância que chegou a permitir que houvesse a suspensão da autonomia federativa" (ibid.p.150), e as cláusulas pétreas, "porque dotadas de uma garantia também especial: a imutabilidade", sendo princípios aos quais "implicitamente se reconhece [...] uma certa importância, a suficiente para endurecer seus mecanismos de garantia"(p.151).

Barroso e Barcellos entendem como preceitos fundamentais aquelas normas – princípios ou regras – que, se violadas, trazem "consequências mais graves para o sistema jurídico como um todo"(2006,p.42). Desenvolvendo o tema, incluem nessa classe "os fundamentos e objetivos da República, assim como as decisões políticas estruturantes"; reconhecem que "[t]ambém os direitos fundamentais se incluem nessa categoria", assim como "os princípios constitucionais ditos sensíveis". Ressaltam, no entanto, que não se trata de um rol taxativo, mas de "parâmetros a serem testados à vista das situações da vida real e das arguições apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal".

Barroso, escrevendo novamente sobre o tema em sua obra sobre controle de constitucionalidade, ratifica sua posição, ao escrever que

"A locução preceito fundamental, como visto, descreve um conjunto de disposições constitucionais que, embora ainda não conte com uma definição precisa, certamente inclui as decisões sobre a estrutura básica do Estado, o catálogo de direitos fundamentais e os chamados princípios sensíveis." (2009, p.280)

Mendes (2010, p.1333) considera que não se pode negar a qualidade de preceitos fundamentais aos direitos e garantias individuais listados no art. 5° da Constituição, bem como aos princípios protegidos pelas cláusula pétrea do art. 60,§4°: o princípio federativo, a separação de poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico. Inclui na lista, como os demais, os chamados "princípios sensíveis", listados no art. 34, VII, alíneas "a" a "e", da Constituição Federal.

O autor defende, ainda, que se fixe um conceito extensivo de preceito fundamental, de forma a incluir não só princípios fundamentais assentes na ordem constitucional, mas também disposições que confiram a estes densidade normativa ou significado específico (p.1336).

Moraes (G.P., 2004, p.291-293) afirma que o parâmetro da arguição de descumprimento de preceito fundamental compreende "todos os preceitos constitucionais de natureza fundamental, isto é, regras e princípios que expressam valores constitucionais que asseguram a continuidade e a estabilidade do ordenamento jurídico democrático", e inclui, em seu rol:

"i) os princípios fundamentais, subdivididos em princípio republicano, princípio federativo, princípio presidencialista, princípio democrático, princípio da livre iniciativa e princípio da separação de funções estatais, com espeque nos arts. 1° a 4°; ii) os direitos fundamentais, subdivididos em direitos individuais, direitos metaindividuais, deireitos sociais, direito à nacionalidade e direitos políticos, com esteio nos arts. 5° a 14; iii) os princípios setoriais da Administração Pública, subdivididos em princípio da legalidade, princípio da impessoalidade, princípio da moralidade, princípio da publicidade e princípio da eficiência, com fulcro no art. 37, caput e iv) as limitações materiais explícitas ao poder de reforma constitucional, compreendendo as cláusulas pétreas, com fundamento no art. 60, §4°, todos da CRFB."(grifos no original)

A doutrina, portanto, limita-se a dizer quais preceitos constitucionais são inegavelmente fundamentais, não pretendendo enumerá-los de forma exaustiva, deixando para o Supremo Tribunal Federal a tarefa de analisar outras normas para classificá-las ou não nesta categoria.

2.1.2 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi inicialmente prevista no parágrafo único do art. 102 do texto original da CRFB, que depois foi convertido em §1° pela EC n°3 de 13/03/1993, conservando a mesma redação, lacônica: "A arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei".

Até a promulgação da lei que regulamentou o rito da ADPF, o entendimento do STF era pela não auto-aplicabilidade desse dispositivo, conforme se verifica no julgamento do AgRg na PET 1.140/TO, cujo relator foi o Ministro Sydney Sanches, DJU de 31/05/1996:

EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ART. 102, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DECRETO ESTADUAL DE INTERVENÇÃO EM MUNICÍPIO. Arts. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e art. 126 do Código de Processo Civil. 1. O § 1º do art. 102 da Constituição Federal de 1988 é bastante claro, ao dispor: "a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei". 2. Vale dizer, enquanto não houver lei, estabelecendo a forma pela qual será apreciada a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Constituição, o S.T.F. não pode apreciá-la. 3. Até porque sua função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, "caput"). E é esta que exige Lei para que sua missão seja exercida em casos como esse. Em outras palavras: trata-se de competência cujo exercício ainda depende de Lei. 4. Também não compete ao S.T.F. elaborar Lei a respeito, pois essa é missão do Poder Legislativo (arts. 48 e seguintes da C.F.). 5. E nem se trata aqui de Mandado de Injunção, mediante o qual se pretenda compelir o Congresso Nacional a elaborar a Lei de que trata o § 1º do art. 102, se é que se pode sustentar o cabimento dessa espécie de ação, com base no art. 5º, inciso LXXI, visando a tal resultado, não estando, porém, "sub judice", no feito, essa questão. 6. Não incide, no caso, o disposto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual "quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". É que não se trata de lei existente e omissa, mas, sim, de lei inexistente. 7. Igual mente não se aplica à hipótese a 2a. parte do art. 126 do Código de Processo Civil, ao determinar ao Juiz que, não havendo normas legais, recorra à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, para resolver lide "inter partes". Tal norma não se sobrepõe à constitucional, que, para a argüição de descumprimento de preceito fundamental dela decorrente, perante o S.T.F., exige Lei formal, não autorizando, à sua falta, a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito". 8. De resto, para se insurgir contra o Decreto estadual de intervenção no Município, tem este os meios próprios de impugnação, que, naturalmente, não podem ser sugeridos pelo S.T.F. 9. Agravo improvido. Votação unânime.

(Pet 1140 AgR, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 02/05/1996, DJ 31-05-1996 PP-18803 EMENT VOL-01830-01 PP-00001)(grifos meus)

De fato, somente com a promulgação da Lei n° 9.882/99 é que o STF passou a processar e julgar as ADPFs.

Bastos e Vargas (2000) consideram que, ao julgar a ADPF, "o Excelso Pretório cumpre o seu papel primordial de guardião-mor da Constituição e da ordem jurídica, bem como faz uma ponte entre o controle concentrado e o difuso". Entendem cabível a sua propositura "quando tratar-se de ato, ou omissão, capaz de atingir negativamente estes valores basilares".

Segundo Ferreira Filho (2004, p.41), "Trata-se de uma ação por meio da qual a decisão sobre a inconstitucionalidade ou não de atos federais, estaduais e municipais impugnados perante juízes e tribunais pode ser avocada pelo Supremo Tribunal Federal".

Meirelles (2008, p.501) afirma que a ADPF oferece "respostas adequadas para dois problemas básicos do controle de constitucionalidade no Brasil: o controle da omissão inconstitucional e a ação declaratória nos planos estadual e municipal".

No entender de Mendes, a ADPF, sendo uma ação de perfil relativamente concentrado, veio preencher uma lacuna no sistema de controle de constitucionalidade, "uma vez que as questões até então não apreciadas no âmbito do controle abstrato [...] poderão ser objeto de exame no âmbito da nova ação"(2007, p.56).

Posiciona-se da mesma forma Bernardina (2006, p.79), para quem "uma das principais finalidades da ADPF foi completar o sistema brasileiro de controle concentrado de constitucionalidade, permitindo a apreciação diretamente pelo Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade do direito municipal e de normas pré-constitucionais".

Oliveira (2001, p.111) define a ADPF como uma "ação constitucional voltada à proteção do conjunto dos valores éticos que permeia o texto da Lei Maior", e considera que

"Privilegiar a defesa dos preceitos fundamentais da Carta Política através de um instrumento especialmente dirigido para este propósito não descaracteriza a unidade da constituição, mas, ao contrário, amplia a sua força normativa e colabora para reforçar a sua efetividade."

Barroso (2009, p.284) esclarece que nem toda violação a preceito fundamental enseja a propositura da ADPF, mas apenas aquela que "interfere de forma direta com a fixação do conteúdo e alcance do preceito e independe da definição prévia acerca de fatos controvertidos". Ressalta, ainda, que caso a lesão possa ser solucionada por interpretação do sistema infraconstitucional, não caberá a ADPF.

A ADPF é também o meio mais adequado para desconstituir coisa julgada inconstitucional, conforme conclui Guimarães (2010, p.37), quando ultrapassado o prazo decadencial de dois anos para ajuizamento da ação rescisória e não sendo o caso de impugnação ao cumprimento de sentença, por ultrapassar grande parte das instâncias recursais, não submetendo as partes a um novo processo que pode levar anos até ser julgado com ânimo definitivo.

Percebe-se que a doutrina pátria é uníssona quanto à importância da ADPF no sistema de constitucionalidade brasileiro, e que diverge pouco quanto ao sentido da expressão "preceito fundamental".

Sobre a autora
Maria Thereza Tosta Camillo

Analista Judiciária - Justiça Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Constitucional, Universidade Estácio de Sá). Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Habilitada no Exame de Ordem, área Direito Administrativo (OAB-RJ, 2008.3). Bacharel em Letras - Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMILLO, Maria Thereza Tosta. O sentido e o alcance da expressão preceito fundamental: uma construção jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2683, 5 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17770. Acesso em: 22 nov. 2024.

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