4. CONSEQUÊNCIAS DA IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL SOBRE A AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO
Ultrapassadas e fincadas as premissas da possibilidade "teórica" do pedido de conversão da ação de busca e apreensão em depósito, e da impossibilidade da prisão civil de qualquer depositário infiel, questiona-se: há utilidade em se pleitear a mencionada conversão? Acreditamos que a resposta correta é a negativa, passando a fundamentá-la nas linhas seguintes.
Com efeito, caso o credor fiduciário se utilize de tal faculdade, e o magistrado a defira, o processo seguirá o procedimento previsto nos arts. 901 a 906, do CPC, conforme visto no Capítulo 1 deste trabalho.
Caso a sentença (da ação de depósito) seja de procedência (e nos termos do que o STF já decidira), o magistrado não poderá mais consignar a cominação de prisão civil para o caso de descumprimento do mandado previsto no art. 904, caput, do CPC. Deverá ele, segundo a orientação de alguns Ministros daquela corte, julgar procedente a ação de depósito (óbvio, se for mesmo o caso de procedência) e determinar a expedição de mandado de entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro, cuja consequência do descumprimento será, apenas (e caso o credor requeira), o prosseguimento, nos mesmos autos, do procedimento da execução por quantia certa. Eis a redação do art. 906, caput, do CPC:
Art. 906. Quando não receber a coisa ou o equivalente em dinheiro, poderá o autor prosseguir nos mesmos autos para haver o que lhe for reconhecido na sentença, observando-se o procedimento da execução por quantia certa.
Em outras palavras, caso o devedor fiduciante não cumpra o quanto determinado na sentença de depósito, o máximo que poderá lhe acontecer é ter direcionado contra si (repita-se, caso o credor requeira) um procedimento executivo por quantia certa, conforme prescreve o art. 906, do CPC, porém, nunca poderá ser preso civilmente.
Percebe-se, portanto, que, após o pedido de conversão ser deferido, é iniciado um novo processo, desta feita de depósito, sendo determinada nova citação e atos processuais posteriores, demandando tempo até que se chegue a uma nova sentença, cuja eficácia prática seria a formação de um título a ser executado em novo processo executivo (por quantia certa), já que, muito provavelmente (como a prática forense nos demonstra), o devedor não entregará o bem e nem o equivalente em dinheiro. Registre-se que, quando o art. 906, do CPC fala em execução por quantia certa, deve-se ler cumprimento de sentença, nos moldes exatos do art. 475-J e seguintes do Código de Ritos.
Assim, ao final da ação de depósito (caso julgada procedente) o credor terá em mãos uma sentença apta a ser executada, ou seja, caso ele (credor) não desista de se ressarcir financeiramente, terá que iniciar novo procedimento, desta feita executivo (que, em verdade, deve ser tratado como uma fase de cumprimento de sentença, nos mesmos autos da ação de depósito).
Qual, então, a utilidade dessa ação de depósito, se levarmos em conta que o credor já poderia ter iniciado o processo executivo muito antes; previamente, inclusive, ao pedido de conversão, sem ter a necessidade de passar por todo o desenrolar de um novo processo (o de depósito)? Nenhuma. Na verdade, pode-se dizer que o credor perdeu tempo, o que não se coaduna com a idéia de interesse processual. Diante de dois caminhos que levam ao mesmo lugar, sendo um mais curto, menos penoso que o outro, não há porque se escolher o mais longo e tortuoso.
Bastaria o credor (ainda na ação de busca e apreensão), ao invés de pleitear a conversão para a ação de depósito, passar logo para a ação executiva, consoante lhe autoriza o art. 5º, do Decreto-Lei 911/69 [04]. Nesse feito executivo, consoante já dito em linhas anteriores, poderá ele tentar expropriar outros bens do devedor, não ficando limitado ao bem financiado (como na ação de busca e apreensão), observando a ordem do art. 655, do CPC, a exemplo de dinheiro (penhora on-line do Bacenjud), veículos (o próprio alienado ou outros), bens móveis e imóveis em geral etc. Ressai, portanto, muito mais proveitosa (e, portanto, útil) a via executória.
Daí que, em casos onde o bem não é encontrado, sustentamos a falta de interesse no pleito de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, por flagrante desnecessidade e inutilidade da medida. O que, à primeira vista, pode parecer apenas questão de escolha do credor, revela-se, ante as condições da ação, verdadeira via inútil e, portanto, carecedora de interesse processual.
O interesse se concretiza na utilidade potencial da jurisdição, por ser esta capaz de conferir, pelo menos em tese, uma vantagem ou benefício jurídico efetivo ao autor, bem como ao Estado, face o excessivo custo do processo.
Para Nelson Nery Jr., o interesse processual (de agir) reside na necessidade e utilidade da jurisdição, ao afirmar que "existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prático" [05].
Em obra específica sobre o interesse processual, Rodrigo da Cunha Lima Freire assevera que,
na utilidade da tutela jurisdicional muitos vislumbram, entretanto, a própria necessidade da tutela jurisdicional, dentre outros elementos. Com efeito, a necessidade da jurisdição, que alguns autores entendem deva possuir conceito distinto da utilidade da jurisdição, para outros, em verdade, é elemento constitutivo da mesma. É a posição de Cândido Rangel Dinamarco, por exemplo, que adota posicionamento de Liebman [06].
Donaldo Armelin nos traz a seguinte lição:
A utilidade jurídica repele ações ajuizadas com abuso de direito ou com fins subalternos ou ilícitos, e compreende, em seus graus, desde a necessária atuação do Judiciário, no caso de determinadas ações constitutivas, até a inadequação do provimento ou procedimento postulados, tendo, por outro lado, a vantagem de conectar o exercício do direito de ação com o princípio da economia processual, que veda a atuação inócua ou despicienda da jurisdição [07].
Destarte, não se pode buscar o Judiciário pleiteando algo inútil, do ponto de vista prático, eis que, nessa situação, carecerá a parte de interesse processual, como vimos nas lições acima transcritas. A providência solicitada do Poder Judiciário deve ser necessária e útil, o que não entendemos restar presente no pedido de conversão da ação de busca e apreensão em depósito.
Como o pedido de conversão, caso deferido, gerará uma nova ação (de depósito), deve essa nova ação preencher as condições da ação, além, é claro, dos pressupostos processuais. Não preenchendo, portanto, a condição denominada interesse processual (por flagrante inutilidade), deve o pleito de conversão ser indeferido de plano.
Ao indeferir a mencionada conversão, o processo de busca e apreensão não deverá permanecer "vivo", já que, até então, a citação do réu (que é posterior à busca e apreensão liminar do veículo, a qual não ocorreu), pressuposto processual, não terá se operado. Nesse caso, por não ser ad eternum, o processo deverá ser extinto pela falta de citação e de interesse processual, ex vi art. 267, IV e VI, do CPC.
Não deve o magistrado deferir a conversão e, então, extinguir a nova ação de depósito (por falta de interesse), pois isso seria contra os princípios da economia processual e celeridade, já que tal providência já pode ser tomada ainda no processo de busca e apreensão, sem a necessidade de se inaugurar novo processo. Entretanto, caso já tenha deferido a conversão, esse (a extinção) é o caminho a ser tomado.
Este é, portanto, o nosso entendimento acerca da matéria.
5. CONCLUSÃO
Objetivamos, destarte, demonstrar ao longo deste trabalho, que, após a pá de cal jogada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a questão da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, é patente a falta de interesse processual da conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito.
Em que pese a previsão legal de tal conversão no Decreto Lei 911/69, quando não encontrado o bem alienado, entendemos que a mesma esbarra hodiernamente na falta de necessidade e de utilidade, isto é, na falta de interesse, haja vista já ter o credor à mão o que visa obter ao final da ação de depósito, qual seja a via executória aberta para si. A ação de depósito, por ter perdido seu principal atrativo (possibilidade de prisão civil), é desnecessária e inútil nesses casos, pois só pode dar ao credor o que ele já dispõe (possibilidade de executar o devedor).
Assim, face à impossibilidade de prisão civil do depositário infiel, adunada à já disposição pelo credor da via executiva, deve o magistrado, à vista de um pedido de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, extinguir o feito sem resolução de mérito.
REFERÊNCIAS
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Notas
- FIUZA, César. Novo Direito Civil: Curso Completo. 6. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.774
- Cf. art. 2º, do Decreto Lei 911/69.
- CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed., Salvador: JusPODIVM, 2010, p.712.
- Art. 5º. Se o credor preferir recorrer à ação executiva ou, se fôr o caso ao executivo fiscal, serão penhorados, a critério do autor da ação, bens do devedor quantos bastem para assegurar a execução
- NERY JR., Nelson. Condições da ação. Repro, n. 64, São Paulo: RT, 1991, p.37
- FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p.159.
- ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p.64-65.