5. PARÂMETROS PARA A APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO TRABALHISTA
5.1- CÓDIGO CIVIL X CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Verificada a possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho, deve-se determinar qual o dispositivo da legislação pátria mais adequado a regular a utilização do referido instituto na seara trabalhista.
Conforme já ressaltado, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quando de seu surgimento, visava tão-somente a combater as fraudes e os abusos perpetrados pela pessoa jurídica.
CARINA RODRIGUES BICALHO nota:
"a influência da teoria do abuso do direito sobre a teoria da desconsideração cuja aplicação fica autorizada sempre que a personalidade jurídica fora utilizada de forma abusiva, desviando-se dos fins para os quais fora criada e em razão de que o direito lhe confere autonomia patrimonial em face dos sócios. Essa é, sem dúvidas, a vertente tradicional da teoria da ‘disregard’." [22]
O desenvolvimento da teoria, contudo, levou à expansão de seu alcance, que não fica mais limitado aos casos de abuso de direito.
Atualmente, JOSÉ AFFONSO DALLEGRAVE NETTO sugere a classificação das bases da teoria em três correntes doutrinárias:
"A primeira, denominada subjetiva, admitindo o ‘disregard’ somente nos casos em que esteja comprovado o ‘animus’ fraudulento ou de abuso de direito por parte da sociedade devedora;
A segunda, finalística, aplicando-se a teoria da penetração em sintonia com o que dispõe o §5° do art. 28 do CDC, ou seja, a intenção fraudulenta é presumida com a presença do prejuízo do credor no momento da dificuldade da execução;
A terceira, objetivista, aplica amplamente o ‘disregard’, seja em prol do credor ou mesmo do devedor, bastando a presença da separação patrimonial da sociedade como forma de obstáculo a determinado interesse tutelado pelo direito." [23]
Note-se que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é hoje autorizada tão somente em face da inexistência, no patrimônio da sociedade executada, de bens suficientes para satisfazer o crédito trabalhista. Nesse sentido orienta-se a "Teoria Menor" da desconsideração, exposta no capítulo segundo desta monografia.
Os dois principais dispositivos legais que tratam expressamente da teoria em análise, e que tem aplicação subsidiária ao Direito do Trabalho, são os artigos 28 do CDC e 50 do CCB, transcritos alhures.
A norma do Código Civil de 2002, ao regular a matéria, foi mais restritiva, autorizando a desconsideração apenas nos casos de desvio de finalidade e de confusão patrimonial.
Na relação entre particulares, em que as partes envolvidas encontram-se em pé de igualdade, compatibilizando-se os princípios da autonomia privada, da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, a lei foi mais moderada, exigindo a prova do abuso de direito para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica. [24]
Contudo, em se tratando de relação em que uma das partes é hipossuficiente, como se dá no Direito do Trabalho e no Direito do Consumidor, o dispositivo do Código Civil mostra-se inadequado para regular o instituto da desconsideração, já que um dos pólos da relação processual merece tutela especial por parte do Direito.
No caso das relações trabalhistas, impõe-se a aplicação do caput e §5°, do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor, na regulação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, para estender-se aos empregados a tutela legal conferida aos consumidores. Nos dizeres de CARINA RODRIGUES BICALHO:
"O código de defesa do consumidor (...) estabelece norma de tutela ao hipossuficiente assemelhando-se ao objetivo de tutela do direito do trabalho. Essa similitude de finalidade das normas do consumidor e trabalhista justifica a aplicação da normatização mais ampla do direito do consumidor em detrimento do código civil, que apresenta hipóteses mais restritas da teoria em exame, posto que assegurará garantias mais amplas ao crédito trabalhista." [25]
O dispositivo consumerista, conforme visto, apresenta diversas situações em que poderá ser relativizada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica: abuso de direito, infração da lei, excesso de poder, violação dos estatutos ou contrato social, fato ou ato ilícito, estado de insolvência, falência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração e qualquer situação em que a personalidade jurídica seja obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.
A aplicação subsidiária do artigo 28, caput e §5°, do CDC, ao Direito do Trabalho é autorizada pelo artigo 8°, parágrafo único, da CLT, desde que haja compatibilidade com os princípios trabalhistas.
Ora, o Direito do Trabalho guia-se pelo princípio da proteção ao empregado. A possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica tão-somente em face da insolvência da sociedade amplia sobremaneira a garantia de recebimento dos créditos trabalhistas, favorecendo o obreiro, parte materialmente mais fraca da relação de emprego.
Dessa forma, o §5°, do artigo 28, do CDC, deve ser o fundamento legal utilizado para desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade empregadora no Direito do Trabalho. Essa norma, de grande amplitude e abstração, deve ser interpretada conforme os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção ao trabalhador, da assunção dos riscos pelo empregador e da natureza alimentar das verbas trabalhistas. [26]
Veja-se o seguinte entendimento jurisprudencial que corrobora a tese apresentada:
"EXECUÇÃO. RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS PELA DÍVIDA DA SOCIEDADE. A desconsideração da personalidade jurídica do empregador é instituto jurídico previsto no artigo 28 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e hoje albergada pelo artigo 50 do Código Civil, que tem como conseqüência a responsabilização dos sócios pelas dívidas da sociedade. Assim, ante a ausência de bens da pessoa jurídica, capazes de satisfazer a dívida, respondem os sócios pelo saldo, hipótese que se verifica de forma especial no processo do trabalho, em face do privilégio assegurado ao crédito." (TRT 3ª R., AP 00559-2005-106-03-00-2, 2ª T., Rel. Convocado Fernando Antonio Viegas Peixoto, publicado em 01.08.2007).
No Direito do Trabalho, portanto, deve-se fazer uma interpretação literal do §5° do artigo 28 do CDC, de modo que, sempre que a autonomia patrimonial for obstáculo à satisfação do crédito do obreiro está autorizada a desconsideração da personalidade jurídica.
5.2. A RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DOS SÓCIOS PELOS CRÉDITOS TRABALHISTAS
Conforme visto, os bens dos sócios da sociedade executada responderão pelos créditos trabalhistas uma vez verificada a insuficiência do patrimônio social.
Por sua vez, o artigo 1.024 do CCB dispõe que "os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais."
No mesmo sentido é o artigo 596, caput e §1°, do Código de Processo Civil – CPC – que prescreve:
"Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.
§1° Cumpre ao sócio, que alegar o benefício deste artigo, nomear bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres e desembaraçados, quantos bastem para pagar o débito."
Dessa forma, a responsabilidade dos sócios, em regra, é subsidiária. A execução, primeiramente, deverá ser direcionada contra quem se tornou inadimplente, ou seja, a sociedade empregadora. Somente depois de verificada a frustração da execução e constatada a insolvência da sociedade é que serão executados os bens particulares dos sócios. [27]
Caso o sócio seja demandado antes do exaurimento do capital social, poderá alegar em seu favor o benefício de ordem, devendo indicar os bens da sociedade situados na comarca, livres e desembaraçados, suficientes para a liqüidação do débito.
Observe-se o seguinte entendimento jurisprudencial a esse respeito:
"EXECUÇÃO. SÓCIO. BENEFÍCIO DE ORDEM. O sócio tem direito de exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade, indicando bens da sociedade livres e desembargados, quantos bastem para saldar o débito (artigo 596, parágrafo 1o, do CPC)." (TRT, 8ª R., AP 02058-1998-011-03-00-8, 5ª T., Rel. Convocado Emerson José Alves Lage, publicado em 19/05/2007).
Contudo, na prática trabalhista, os patrimônios dos sócios têm sido diretamente responsabilizados pelas dívidas da sociedade, em desrespeito ao benefício de ordem garantido pela legislação pátria. Nesse sentido, veja-se o seguintes entendimento jurisprudencial:
"DISREGARD DOCTRINE. BENEFÍCIO DE ORDEM. Em seara trabalhista, basta a inadimplência da empresa reclamada, enquanto devedora principal, para que a execução se volte contra os bens patrimoniais de seus sócios proprietários, inexistindo o chamado benefício de ordem ou responsabilidade de terceiro grau. O Direito, e em última instância o processo, não se poderão prender a formalismos jurídicos enquanto se discute a solução de crédito de natureza alimentar. Agravo a que se nega provimento." (TRT 3ª R., AP 00375-2004-080-03-00-3, Rel. Caio Luiz de Almeida Vieira de Mello, publicado em 11/08/2007).
O entendimento de que o benefício de ordem não se aplica em âmbito trabalhista é equivocado. Isso porque, sendo a sociedade a verdadeira devedora, é o patrimônio social que, via de regra, deve arcar com todas as obrigações da pessoa jurídica. Somente após exaurido o patrimônio da sociedade sem o total pagamento dos credores, é que se pode cogitar o comprometimento do patrimônio dos sócios. Caso contrário, haveria verdadeiro desestimulo à constituição de sociedades empresariais, que são de suma importância para a economia do país e para a sociedade como um todo.
Deve-se destacar que, uma vez deflagrado o véu da pessoa jurídica, é facultado ao credor sujeitar à execução os bens dos sócios de maneira solidária. Nesse sentido prescreve o artigo 275 do CCB:
"Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto."
O dispositivo legal transcrito acima determina que todos os sócios são igualmente responsáveis pelos créditos trabalhistas, podendo ser indistintamente cobrados pelo valor da dívida.
CONCLUSÃO
Conforme exposto nesta pesquisa, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica encontra ampla aplicação na prática forense trabalhista.
O instituto da desconsideração, no âmbito do Direito do Trabalho, é aplicado com supedâneo no §5° do artigo 28 do CDC. Assim, basta que o patrimônio social seja incapaz de garantir a satisfação dos créditos dos empregados para que os patrimônios particulares dos sócios sejam chamados a responder pelas dívidas da sociedade.
A responsabilidade dos sócios, contudo, será sempre subsidiária, ou seja, somente existirá em caso de insuficiência do patrimônio da sociedade e após exaurido o capital social. Não é razoável que essa responsabilidade seja solidária, já que a devedora é a sociedade – entidade distinta de seus sócios – e tal circunstância funcionaria como desestimulo ao investimento produtivo, que é de interesse de toda a coletividade.
Os créditos trabalhistas, de natureza alimentar, merecem ampla proteção por parte do ordenamento jurídico. No entanto, a empresa, como atividade econômica de produção e circulação de bens ou serviços, também merece ser resguardada. Dessa forma, a responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade deve ser subsidiária.
9- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BICALHO, Carina Rodrigues. Aplicação sui generis da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no processo de trabalho: aspectos materiais e processuais. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região/MG, vol. 39, n. 69/04.
- CALVO, Adriana Carrera. Desconsideração da Pessoa Jurídica no Direito do Trabalho. In: Ciência Jurídica do Trabalho, vol. 8, n. 53/05.
- COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. II. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.
- CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. A desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região/PE, n. 33/05.
- DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2006.
- JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 2, 36ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
- KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica ("disregard doctrine") e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
- NETO, José Affonso Dallegrave. A execução dos bens dos sócios em face da disregard
Doctrine. In: Execução Trabalhista: Estudos em Homenagem ao Ministro João Oreste Dalazen. Coordenação: José Affonso Dallegrave Neto e Ney José de Freitas. São Paulo: LTr, 2002.
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004.
- PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005.
- PITTA, Daniel Schimidt. Abuso na aplicação da personalidade jurídica no direito brasileiro. Artigo publicado em 15/12/2005, no site navegandi –www.jusnavegandi.com.br. Acesso em 22.07.07.
- SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999.
Notas
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 213.
- Idem.p. 297.
- CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. A desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região/PE, n. 33/05, p. 154.
- Idem. p. 155.
- PITTA, Daniel Schimidt. Abuso na aplicação da personalidade jurídica no direito brasileiro. Artigo publicado em 15/12/2005, no site navegandi – www.jusnavegandi.com.br.
- SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. p. 28.
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 334.
- O desenvolvimento deste segundo ítem do Capítulo 02 será feito, exclusivamente, com fulcro na obra de Fábio Ulhoa Coelho. Nesse sentido, consultar: COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial São Paulo: Editora Saraiva, 2005. p. 35-48.
- COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Op. cit. p.35.
- COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Op. cit. p. 40.
- Idem. p. 43.
- Idem. Ibidem.
- Idem. Ibidem.
- CALVO, Adriana Carrera. Desconsideração da Pessoa Jurídica no Direito do Trabalho. In: Ciência Jurídica do Trabalho, vol. 8, n. 53/05. p. 137.
- CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. Op. cit. p. 161.
- COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Op. cit. p.44.
- DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op cit. p. 406.
- CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. Op. cit. p. 162.
- KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante.Op. cit. p. 170.
- SILVA, Alexandre Couto. Op. cit. p. 112.
- DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do Trabalho. Op. cit. p. 403.
- BICALHO, Carina Rodrigues.Op. cit. p. 03.
- NETO, José Affonso Dallegrave. A execução dos bens dos sócios em face da disregard doctrine. In: Execução Trabalhista: Estudos em Homenagem ao Ministro João Oreste Dalazen. Coordenação: José Affonso Dallegrave Neto e Ney José de Freitas. São Paulo: LTr, 2002.p. 186.
- BICALHO, Carina Rodrigues. Op. cit. p. 05.
- BICALHO, Carina Rodrigues. Op. cit. p. 06.
- BICALHO, Carina Rodrigues. Op. cit. p. 07.
- JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II, 36ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 104.