O Código de Processo Penal Brasileiro em vigor dispõe em seu art. 302 e seus quatro incisos as modalidades de prisão em flagrante previstas no nosso ordenamento jurídico. Adotando a nomenclatura mais aceita pela doutrina pátria, temos o flagrante próprio, previsto nos incisos I e II, flagrante impróprio, disposto no inciso III e flagrante presumido ou ficto, elencado no inciso IV do dispositivo legal acima referido.
Com o advento da Lei 9034/95, boa parte da doutrina passou a considerar que uma nova modalidade de prisão em flagrante, diferente das três acima mencionadas, passou a existir no direito processual penal brasileiro, qual seja, o flagrante diferido, retardado, postergado ou protelado, que, segundo essa mesma parte da doutrina, veio prevista no art. 2º, inciso II da Lei acima suscitada.
Estabelece o art. 2º, inciso II da Lei 9034/95, in verbis:
Art. 2º Em qualquer fase da persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas":
I.(vetado)
II. a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações.
Dentre os insignes doutrinadores que se filiam à corrente trazida a lume linhas acima, citamos Aury Lopes Jr, [01] que ao comentar sobre o inciso II sob discussão, sustenta:
Tal dispositivo somente pode ser aplicado aos casos de organização criminosa e autoriza a polícia a retardar sua intervenção (prisão em flagrante) para realizar-se em momento posterior (por isso, diferido), mais adequado sob o ponto de vista da persecução penal.
Importante mencionar ainda, sobre o dispositivo supratranscrito, o comentário de Guilherme de Souza Nucci, [02] que também se posiciona pela corrente em testilha:
18. Flagrante diferido ou retardado: é a possibilidade que a polícia possui de retardar a realização da prisão em flagrante, para obter maiores dados e informações a respeito do funcionamento, componentes e atuação de uma organização criminosa.
A despeito das abalizadas opiniões acima transcritas, ousamos discordar. Interpretamos de forma diferente o dispositivo legal sob análise. No nosso entendimento o inciso II, do art. 2º, da Lei 9034/95 não trouxe para o ordenamento jurídico uma nova modalidade de prisão em flagrante e sim, e apenas isto, uma exceção ao art. 301 do Código de Processo Penal.
Estabelece o art. 301 do nosso Código de Processo Penal, in verbis:
"Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito."
O dispositivo acima faculta a qualquer cidadão capturar algum indivíduo que se encontre em estado de flagrância, tendo por norte para a caracterização do flagrante o art. 302 e seus quatro incisos do Código de Processo Penal.
Enquanto o cidadão comum, o "qualquer do povo" na letra do artigo em comento, pode decidir entre capturar ou não o indivíduo em estado de flagrância, as autoridades policiais, leia-se Delegados de Polícia e seus agentes, deverão prender aquele indivíduo cuja conduta se enquadre nas hipóteses de flagrante trazidas pelo processo penal.
Para a polícia não há alternativa. Imperativo prender. Assim dispõe a lei. Caso não prenda, o policial incorre em falta funcional, passível de punição pela via administrativa e, eventualmente, até mesmo em sede criminal, uma vez que a omissão pode caracterizar, em tese, o crime previsto no art. 319 do Código Penal, qual seja, o delito de prevaricação.
Ocorre que a prática policial indica que em algumas situações, sobretudo sob o ponto de vista de coleta de provas e desarticulação de organizações criminosas, prender em flagrante não é a melhor alternativa. Por vezes é melhor, ao invés de prender, seguir monitorando os suspeitos, seja por meio de escuta telefônica, informantes ou mesmo em campana, [03] e aguardar um melhor momento para agir, visando, assim, a desmantelar com maior sucesso, com a prisão de mais suspeitos e com apreensão de maior número de objetos (provas) que liguem os suspeitos à conduta criminosa.
No entanto, o art. 301 do Código de Processo Penal não dá essa faculdade ao policial, que não pode decidir o melhor momento de intervir, sob pena de incorrer em crime. O policial se vê em um verdadeiro dilema. Prende agora por ser seu dever de ofício ou aguarda o melhor momento, para todos os efeitos, principalmente probatório, para efetuar a prisão, correndo o risco de se ver processado, julgado e eventualmente condenado administrativa e até criminalmente?
O art. 2º, inciso II, da Lei 9034/95 foieditadopara permitir aos policiais, aqueles que verdadeiramente possuem, ou pelo menos deveriam possuir, o conhecimento técnico para investigar, realizar seu trabalho com maior eficiência, sem o risco de estarem se omitindo, logo, de estarem incorrendo em falta funcional.
Referido dispositivo legal autoriza, para as hipóteses em que se supõe estar ocorrendo ação praticada por organizações criminosas, que o policial retarde sua intervenção, sem o risco de, agindo assim, ser considerado omisso. Contudo, deve manter sob observação e acompanhamento a organização criminosa, para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação das provas e coleta de informações. Para isso a lei deu o nome de ação controlada.
Em momento algum a lei autoriza que a prisão em flagrante se dê em momento posterior, como sustenta boa e importante parte de nossa doutrina. A lei não menciona prisão, muito menos prisão em flagrante, limitando-se a dispor sobre "interdição policial". Logo, afronta o princípio da legalidade a prisão, dita equivocadamente "flagrante", ocorrida posteriormente.
A melhor interpretação para o inciso II do artigo segundo da Lei 9034/95, ao nosso sentir, não é considerar como sinônimas as expressões "interdição policial" e "prender em flagrante". Por "interdição policial" podemos entender diversas ações praticadas pela polícia, tais como busca pessoal, busca e apreensão e, claro, até mesmo a prisão em flagrante. O agir da policia não redunda, necessariamente, em prisão.
Caso o policial, baseado em seu tirocínio investigativo, opte em não prender em flagrante determinado indivíduo, visando a uma ação policial mais eficaz posteriormente, não poderá, no futuro, prender em flagrante o mesmo indivíduo, eis que não estará mais configurado estado de flagrância.
Isso não significa que, com o sucesso da interdição policial postergada, outras modalidades de prisão cautelar não possam ser decretadas, como a prisão preventiva e a prisão temporária, baseadas, principalmente, nas novas provas colhidas com a bem sucedida empreitada policial diferida. Nem tão pouco nos leva a concluir que o indivíduo não venha a ser processado criminalmente e eventualmente condenado por sua atividade criminosa.
Possível imaginar a prisão em flagrante posterior daquele primeiro indivíduo cuja conduta se amoldava ao art. 302 do Código de Processo Penal e em relação ao qual o policial preferiu esperar. Basta imaginarmos que no momento da ação policial postergada esse mesmo indivíduo se encontre novamente em estado de flagrância. Contudo, aqui, o fundamento da prisão não será aquela primeira conduta, sobre a qual os policiais preferiram não agir, e sim o novo estado de flagrância em que ele se encontra.
O policial terá de escolher: prender em flagrante e perder a chance de obter uma ação policial mais bem sucedida no futuro ou deixar de prender, correndo o risco de não obter maiores informações e ainda não ter mais o embasamento legal para efetivar o flagrante. É uma aposta que se faz. O preparo técnico e a experiência profissional do policial lhe darão os subsídios para decidir o que fazer em cada caso.
Assim, o que é postergada, retardada, protelada, diferida ou aguardada não é a prisão em flagrante e sim a ação (interdição) policial.
Nosso posicionamento não é isolado sobre o tema. Dentre os que possuem pensamento idêntico, citamos, por todos, Gustavo Badaró, [04] que, negando que o flagrante diferido ou retardado seja uma nova modalidade de prisão, assim se posiciona:
há, apenas, uma autorização legal para que a autoridade policial e seus agentes que, a princípio, teriam a obrigação de efetuar a prisão em flagrante (CPP, art. 301, 2ª parte), deixem de fazê-lo, com vistas a uma maior eficácia da investigação.
A Lei 11343/06 que trata da temática das drogas e que, segundo alguns, também abarca o "flagrante diferido", parece que dá guarida aos nossos argumentos, uma vez que estabelece em seu art. 53, inciso II, in verbis:
Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I. (...)
II. a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Pela análise do dispositivo acima transcrito percebemos que mais uma vez a lei nada menciona sobre prisão em flagrante ou sobre a possibilidade de prender em flagrante em outro momento que não o da ocorrência do crime. Ao contrário, a lei de drogas reforça o que preconiza o art. 2º, inciso II da Lei 9034/95, uma vez que estabelece "a não-atuação policial", sem deixar de mencionar que isso não redundará no prejuízo de eventual ação penal, caso essa seja cabível.
As hipóteses de prisão em flagrante em nosso ordenamento jurídico são aquelas previstas no art. 302 do Código de Processo Penal, independentemente da classificação doutrinária que se queira dar a elas. Não existem outras.
Em um Estado que se quer democrático de direito, não podemos perder de vista que a liberdade é a regra e a prisão, sobretudo a pré-cautelar, como é a prisão em flagrante, deve ser a exceção, a "ultima ratio".
Interpretar determinado dispositivo de forma que possa alargar as hipóteses de restrição da liberdade não coaduna com a nossa Constituição Federal.
O art. 2º, inciso II da Lei 9034/95, assim como o faz o art. 53, inciso II da Lei 11343/06, autorizou, apenas e tão somente, que o policial deixe de atuar (realizar busca pessoal, entrevista, prender em flagrante, etc.), sem que com isso incorra em omissão no seu dever funcional. Nem de longe o dispositivo em comento permite que a prisão se dê em outro momento em que o estado de flagrância já não persiste, o que afrontaria mais do que a Lei, a própria Constituição Federal.
Postergada, diferida ou retardada não é a prisão em flagrante e sim a interdição policial.
Notas
- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol. II, 4ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 80.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5ª edição, São Paulo, 2006, RT, p. 593.
- O termo campana é usualmente empregado no jargão da investigação policial como sinônimo de observação ou vigília discreta de criminosos ou ações criminosas, visando a produção de provas e a prisão de suspeitos.
- BADARÓ, Gustavo. Direito Processual Penal. Tomo II. Rio de Janeiro, Elsevier, 2007, PP. 137-138.