3. Ação afirmativa
3.1. Origem das ações afirmativas
Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2001) evidencia que a declaração de preceitos jurídicos por si mesmos mostra-se insuficiente para contornar situações sociais que estão arraigadas à cultura de cada Estado soberano, principalmente na concepção da coletividade, pois como se verifica, a uma certa parcela de indivíduos é cabível a função de oprimir e, a outra, função consideravelmente de inferioridade ou dependência. Assim, é preciso se certificar que a mudança dessa situação somente será satisfatória se houver uma postura Estatal que se afaste ao máximo da neutralidade no que diz respeito às questões de ordem social. [7]
Essa atuação ativista do Estado, segundo o autor supracitado (2001), deu origem as Ações afirmativas, difundidas com pioneirismo nos Estados Unidos da América e depois estendidas ao mundo inteiro conforme a conveniência de cada País que a adotou. No Brasil, todavia, as ações afirmativas têm sido empregadas com certa timidez devido à resistência encontrada no que tange à sua admissão. [8]
O surgimento das ações afirmativas deu-se num contexto de instabilidade social nos Estados Unidos. Assevera Roberta Fragoso Menezes Kaufmann [9] que:
As ações afirmativas surgiram em um momento social marcado pela iminência de grave conflito civil. Não houve relevante construção teórica prévia, nem dos negros, nem de brancos, nem de partidos de esquerda, nem de direita, sobre as justificativas do princípio da igualdade, a partir de considerações sobre as modalidades de justiça compensatória ou de justiça distributiva, dentre outras questões jurídico-filosóficas. Mesmo porque, o primeiro Presidente dos Estados Unidos que efetivamente adotou política pública concretizadora da integração, Richard Nixon, era um republicano cujo maior apoio na campanha adveio dos eleitores conservadores dos estados sulistas, contrários às medidas de integração. Enquanto os democratas Kennedy e Johnson nada fizeram em termos integrativos, coube a um republicano conservador adotar essas medidas. (KAUFMANN, 2007)
A referida autora (2007) afirma, ainda, que atualmente há vários autores que estudam as ações afirmativas entendendo que essas medidas emergenciais surgiram a partir da evolução do princípio constitucional da igualdade. O Estado passa a agir efetivamente na criação de políticas públicas com a edificação do paradigma do Estado Social, relegando sua postura de Estado neutro. Entretanto, Kaufmann (2007) deixa bem claro que, se as ações afirmativas surgiram num modelo de Estado Social, isso representaria uma grande contradição, pois como se sabe, os Estados Unidos são o exemplo mais evidente no mundo inteiro de um País que se estrutura no modelo de Estado Liberal. [10]
É importante destacar também o entendimento exposto por Sidney Pessoa Madruga da Silva ao afirmar que quanto às ações afirmativas: "[...] ainda que não se restrinjam exclusivamente aos Estados Unidos da América, foi a partir desse país que as políticas de ação afirmativa ganharam espaço e relevo no cenário mundial [...]". (SILVA, 2005, p.66) O autor aludido expõe, ainda, que no momento em que as ações afirmativas foram inauguradas elas tinham por objetivo: "[...] assegurar, sobretudo aos negros, uma parcela maior e mais justa de representatividade na sociedade americana, com destaque para as áreas de educação e do emprego." (SILVA, 2005, p.66)
No Brasil, por outro lado, as ações afirmativas como ressalta Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2001), têm sido superficialmente discutidas do ponto de vista prático. Kaufmann (2007), na mesma linha, ratifica as palavras proferidas pelo eminente autor ao dizer que neste País os debates limitam-se a copiar os tipos de ações afirmativas propostas pelo Estado norte-americano, apenas se fazendo meras adaptações conforme o caso concreto. Kaufmann aduz que há um grande erro no que se refere à implementação de ações afirmativas no Brasil, uma vez que os índices sociais são extremamente desfavoráveis aos negros brasileiros se fosse feita uma comparação com os daquele País, o que representa segundo a autora, uma forma precipitada e superficial de correção dos problemas sociais no Brasil. [11]
Para Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2003) as ações afirmativas surgem como um instrumento elaborado pelo Poder Público de forma transitória para corrigir deformações sociais e evitar que elas cheguem à sua fase mórbida, que é a discriminação. Cruz prossegue afirmando que o não reconhecimento da existência de ações afirmativas implica negar as vantagens que essas medidas trouxeram para o interesse público com a atuação imediata do Estado em certos setores de sua inteira responsabilidade. [12] Assim, o Estado deve agir utilizando-se de medidas emergenciais, denominadas ações afirmativas, cuja duração é efêmera, para viabilizar a inclusão social de certos grupos desprovidos de oportunidades e condições, no intuito de atingir a igualdade entre todos eles.
3.2. Fundamento constitucional das ações afirmativas
O artigo 3º da Constituição da República dispõe o seguinte:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Marco Aurélio Mendes de Farias Mello (2002), na obra coordenada por Ives Gandra da Silva Martins, demonstra a fundamentação constitucional da ação afirmativa através de uma interpretação do mencionado artigo, e constata que este instrumento garante a efetivação da igualdade. O eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal pondera que:
Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual. Neste preceito são considerados como objetivos fundamentais de nossa República: primeiro, construir [...] uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional [...], não a uma atitude simplesmente estática, mas a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e por último, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça e sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Pode-se afirmar, sem receio de equívoco, que se proíbe a discriminação, para uma igualização meramente eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si, mudança de ótica, ao denotar ‘ação’. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e encontrar, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo afirmativa. (MELLO, 2002, p. 39)
Mello deixa expresso claramente que para resolver os problemas enfrentados pelo Poder Público de maneira imediata é fazer valer as disposições normativas do próprio texto constitucional através de sua força imperativa. Dessa forma, a velha máxima segundo a qual se deve tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades para se atingir a igualdade, ganha concretude. O objetivo, como se percebe, é assegurar no menor tempo possível a inclusão social daqueles que se encontram marginalizados e, concomitantemente, promover medidas eficazes para consolidar a situação estabelecida em decorrência dos efeitos das ações afirmativas adotadas.
Há, também, discussões teóricas que buscam esclarecer a natureza das ações afirmativas para se entender se elas têm caráter reparatório ou distributivo. Sidney Pessoa Madruga da Silva elucida que: "[...] a justiça compensatória teria o condão de restabelecer a relação de igualdade antes posta em desequilíbrio em função da classe dominante, mediante a adoção de políticas e programas destinados aos desfavorecidos socialmente." (SILVA, 2005, p.94) O autor, então, conclui que: "Compensa-se, portanto, a violação de direitos e vantagens que deixaram de ser destinados às minorias, ‘reparando-se’ a atual geração pela desigualdade estabelecida em desfavor de seus antepassados." (SILVA, 2005, p.94)
Todavia, existem argumentos contrários a esse sistema de compensação que indagam quem seriam os legitimados para receber benefícios com aspecto indenizatório. A preocupação é identificar aqueles que foram vítimas da opressão da sociedade ou do próprio Estado. E, posteriormente, penalizar os verdadeiros culpados pelo mal causado sem, contudo, beneficiar terceiros, uma vez que a reparação do dano deve ser limitada às pessoas vitimadas. [13]
Por outro lado, existem aqueles que defendem o sistema distributivo pautado na igualdade de oportunidades eqüitativas em contraposição à igualdade prevista na lei (igualdade formal). Nesse modelo, assegura-se aos indivíduos plenas oportunidades de acesso aos serviços essenciais prestados pelo Poder Público como: educação, saúde, emprego e outros direitos conferidos ao cidadão.
Esse sistema também sofreu severas críticas como ressalta Silva: "[...] embora a tese da justiça distributiva seja sustentada pela grande maioria dos partidários das ações afirmativas, os seus detratores não se furtam em sublinhar as falhas do (sic) argumentos distributivistas [...]" (SILVA, 2005, p. 97)
Para concluir essa discussão teórica, é imprescindível enfatizar as palavras de Álvaro Ricardo de Souza Cruz ao atestar que:
[...] as ações afirmativas não se sustentam com base na teoria de compensação, e, por conseguinte, não podem ser vistas como mero mecanismo de redistribuição de bens e oportunidades, sob pena de chegarmos às conclusões absurdas acima mencionadas.
Sendo assim, rejeitadas as teorias compensatórias e (re)distributivas (utilitarismo), fixamos finalmente posição favorável à tese pela qual as ações afirmativas se legitimam com base nos princípios do pluralismo jurídico e da dignidade da pessoa humana, estruturadas no paradigma do Estado Democrático de Direito.
[...]
A neutralidade, preconizada pelos liberais, aprofunda e agudiza o problema de uma sociedade que impede a participação de todos. As idéias compensatórias fundadas em concepções convencionais de moral, bem como as idéias utilitárias não se sustentam, posto não levarem em conta aspectos efetivos dos direitos essenciais à humanidade. (CRUZ, 2003, p.181-182)
3.3. Objetivo das ações afirmativas: corrigir distorções sociais?
As ações afirmativas constituem-se em mecanismos criados pelo Estado ou pela iniciativa privada com aspecto de obrigatoriedade ou até mesmo de uma faculdade, e são direcionadas à inclusão de pessoas que se encontram em estado de isolamento social por algum motivo, seja em função de alguma de suas características pessoais ou em função de sua situação sócio-econômica. [14] Essas medidas assumem um papel de discriminar licitamente certas pessoas ou grupo de pessoas com o objetivo de ampará-las e inseri-las em meio à vida social, garantindo-lhes, sobretudo, o direito à participação sem qualquer restrição na esfera pública e privada. Assim, assevera Álvaro Ricardo de Souza Cruz que: "As ações afirmativas são, pois, discriminações lícitas que podem amparar/resgatar fatia considerável da sociedade que se vê tolhida no direito fundamental de participação na vida pública e privada." (CRUZ, 2003, p. 182)
Com efeito, as ações afirmativas têm por objetivo promover a efetivação da almejada igualdade de oportunidades e de condições através de políticas públicas afirmativas, propiciando uma transformação no contexto social de tal forma a acabar ou pelo menos mitigar o aviltamento de direitos e garantias fundamentais subtraídos dos indivíduos. Essas políticas representam a necessidade de eliminação da perpetuidade das práticas discriminatórias que assolam o País há muito tempo, precisamente desde o período que remonta à época colonial. Além disso, existe o objetivo de alcançar o ideal pregado pela Constituição da República de 1988 de implantar o pluralismo e a diversidade. [15]
Nesse sentido Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2002) aponta que: "Figura também como meta das ações afirmativas a implantação de uma certa ‘diversidade’ e de uma maior ‘representatividade’ dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada." [16] O referido autor (2002) então conclui que: "[...] o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as ‘barreiras artificiais e invisíveis’ [...]" [17]
Assim, o eminente Ministro arremata que: "[...] a ação afirmativa tem como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar [...] os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais), da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar." (GOMES, 2001, p. 47) Segundo Joaquim Barbosa, ao concluir sua exposição, "Esses efeitos se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados." (GOMES, 2001, p. 47)
Em complemento, Marco Aurélio Mendes de Farias Mello expõe que: "Urge uma mudança cultural, uma conscientização maior por parte dos brasileiros; falta a percepção de que não se pode falar em Constituição Federal sem levar conta, acima de tudo, a igualdade." (MELLO, 2002, p. 40)
É preciso que as ações afirmativas também sejam elaboradas sob um viés de conscientização, enfatizando a importância de haver a participação dos grupos sociais nos diversos setores, independente de ser público e privado. Para efetivar a igualdade não bastam apenas proposições de políticas públicas afirmativas se não existe um trabalho eficaz de conscientização dos afetados por tais medidas.
A correção das deformidades que aviltam as minorias segregadas pelo descaso da própria sociedade e, também do Estado, depende da necessidade de se promover ações de cunho afirmativas para erradicar os desequilíbrios sociais e econômicos entre as pessoas, desde que sejam satisfatórias para atender todo o interesse público.
Então, é importante destacar o que estabelece Friedrich Müller ao afirmar que:
[...] a exclusão de grandes grupos populacionais da participação, disponível de acordo com o patamar de desenvolvimento alcançado pela respectiva sociedade e nesse sentido típico para a mesma, leva aqui, mesmo no caso do ‘desprivilegiamento em só um setor parcial’, a uma ‘reação em cadeia de exclusões’ e, por igual, também à ‘pobreza política’.
Fala-se então de exclusão no sentido de que esses grupos populacionais dependem (negativamente) das prestações dos mencionados sistemas funcionais da sociedade, sem que tenham simultaneamente acesso às mesmas (no sentido positivo). Inversamente, o estado de bem-estar social (welfare state) é concebido por meio do conceito sociológico da inclusão. É certo que a diferenciação funcional da sociedade moderna gera uma diferença nítida entre inclusão, mas acaba solapando a diferenciação pelo fato de não incluir grandes contingentes populacionais ‘na comunicação dos sistemas funcionais’. (MÜLLER, 2003, p. 93)
Para concretizar as normas expressas na Constituição, que é fruto do Poder Constituinte Originário, portanto, criação da soberania popular para assegurar a qualquer pessoa, brasileira ou estrangeira, nata ou naturalizada, sem distinção de qualquer natureza entre uma e outra, direitos e garantias fundamentais à sua sobrevivência, deve-se ressaltar as precisas palavras do eminente professor Bruno Wanderley Júnior:
A Constituição é assim a expressão máxima da vontade de um povo. É indubitavelmente o instrumento indispensável para que um povo possa garantir a efetividade de seus objetivos fundamentais, o exercício soberano de seu poder social e o respeito aos direitos que, em sua concepção, são imprescindíveis para dar dignidade e harmonia a cada um e a todos os membros de sua coletividade. (WANDERLEY JÚNIOR, p.13-14)
Como se pode perceber, todas as pessoas devem receber o mesmo tratamento por parte do Estado, conforme disposição intangível da própria Constituição. Isso, evidentemente, é lógica decorrente da nova ordem constitucional instaurada a partir de 1988, que estabeleceu de forma explícita o princípio da igualdade.
Resumindo, as ações afirmativas na condição de medidas emergenciais e temporárias, destinam-se a corrigir deformidades entrelaçadas no cotidiano social e econômico, primando-se pela inclusão daqueles que foram alijados de participarem em igualdades de oportunidades e de condições da atuação tanto da esfera pública quanto da privada.